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07/09/2000
-
04h09
TEIXEIRA COELHO, da Folha de S.Paulo
A Mostra do Redescobrimento interessa-me, quando o espaço de discussão é pequeno, sob dois aspectos pelos quais ela se apresentou como evento vivo de cultura e arte: o do público e aquele relativo aos modos de exibição, àquilo que um dia se chamou museografia.
Os demais (como os discutidos problemas de conservação das obras expostas) dizem quase todos respeito à dimensão estática de uma exposição e são relevantes, porém secundários. Fundamental é pôr a arte viva diante do público. E por vezes há um preço a pagar por isso.
Um dos pontos fracos do sistema da arte no Brasil é o público. "Público" não é a quantidade de pessoas que vêem ocasionalmente alguma coisa. "Público" é um conjunto de pessoas com hábitos regulares de consumo ou uso de alguma coisa.
Há um público de cinema e um público de TV, no Brasil; o de arte apenas se esboça -ainda. "Público", por exemplo, é aquele núcleo duro de pessoas que vão a uma bienal e à seguinte, assim como foram à anterior.
Numericamente, é bem inferior à cifra dos que passam eventualmente pelas infames catracas.
A Mostra do Redescobrimento, pelo claro sucesso de público, fez algo de importante para a consolidação do sistema da arte no país. Esse sucesso será -por enquanto, e talvez mesmo neste caso- mais cultural do que artístico: já está bem assim; quando não há outro jeito é por aí que tudo começa.
O outro aspecto vivo foi o do modo de exibição. Ponto alto entre todos: a concepção audaciosa, atrevida, de Bia Lessa para as obras do barroco. Inovadora e no entanto quão orgânica e evidente, além de necessária. O mito modernista, elitista e sacralizador, que propõe o lugar da exposição como um cubo branco neutro e puro, começa a desmoronar. Ele parece "natural" quando é apenas cultural; sua ascendência é forte, será difícil evitá-lo -mas está agora rachado.
A Oca foi, ela também, como o setor do século 19, amplamente bem-sucedida, e o pavilhão Negro de Corpo e Alma, do mesmo modo, felizmente violou algumas regras do "bem-expor" e fez do excesso, da acumulação, uma baliza ativa.
Um princípio organizador que poderia ter sido deixado de lado foi o da "arte do inconsciente". Se era preciso evocar a idéia de alguém para estruturar a mostra, buscar Mário Pedrosa, no lugar dos dois recorrentes Andrades, foi oportuno. Mas a opção de Pedrosa por aquele rótulo, aceito pela Mostra, revela-se agora datado culturalmente. O que está em jogo aqui é de natureza distinta do exibido nas outras seções.
As obras deste segmento eram magníficas e isso deveria ser motivo bastante para expô-las. Mas abrir espaço para a "arte dos loucos", expressão sem sentido, pediria que se acomodassem também, argumentando pelo absurdo, as categorias conexas a essa existentes no interior dos padrões culturais a que remetem.
Um deles, entre outros, é o do código civil brasileiro que, até há pouco tempo, colocava loucos, menores, índios e mulheres na mesma gaveta dos incapazes jurídicos, portanto, sociais. O princípio aqui é claramente de exclusão, traçador das fronteiras da normalidade e do aceitável. Se esse fosse o metro, caberiam então a arte da ingenuidade e a da feminilidade.
Num outro metro, e em outro tempo cultural, caberia, por exemplo, a arte da homossexualidade. Na verdade, no começo do século 21 nada se ganha dizendo que esta ou aquela arte vem do inconsciente. Pelo contrário, muito se perde. Uma homenagem a Nise da Silveira poderia ser feita de outro modo. Mas esta é apenas uma divergência conceitual; importante é que as obras que lá estão ali estivessem.
Feitas as contas, outras polêmicas inclusas ou excluídas, o saldo do evento, visto de sua ótica e sob esses dois aspectos, é positivo. Cabe agora incorporar essa experiência à rotina do sistema da arte local. O evento conta muito em arte, ao contrário do que dizem as advertências prudentes. A rotina, porém, na forma das instituições de arte perenes, precisa caber, ela também, na política cultural maior que envolveu esse evento. Mas essa é uma outra história.
Teixeira Coelho é ensaísta, escritor e diretor do MAC-SP (Museu de Arte Contemporânea), autor, entre outros, de "Niemeyer - Um Romance".
Leia mais notícias de Ilustrada na Folha Online
Análise: Exposição colabora para formar público de arte
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A Mostra do Redescobrimento interessa-me, quando o espaço de discussão é pequeno, sob dois aspectos pelos quais ela se apresentou como evento vivo de cultura e arte: o do público e aquele relativo aos modos de exibição, àquilo que um dia se chamou museografia.
Os demais (como os discutidos problemas de conservação das obras expostas) dizem quase todos respeito à dimensão estática de uma exposição e são relevantes, porém secundários. Fundamental é pôr a arte viva diante do público. E por vezes há um preço a pagar por isso.
Um dos pontos fracos do sistema da arte no Brasil é o público. "Público" não é a quantidade de pessoas que vêem ocasionalmente alguma coisa. "Público" é um conjunto de pessoas com hábitos regulares de consumo ou uso de alguma coisa.
Há um público de cinema e um público de TV, no Brasil; o de arte apenas se esboça -ainda. "Público", por exemplo, é aquele núcleo duro de pessoas que vão a uma bienal e à seguinte, assim como foram à anterior.
Numericamente, é bem inferior à cifra dos que passam eventualmente pelas infames catracas.
A Mostra do Redescobrimento, pelo claro sucesso de público, fez algo de importante para a consolidação do sistema da arte no país. Esse sucesso será -por enquanto, e talvez mesmo neste caso- mais cultural do que artístico: já está bem assim; quando não há outro jeito é por aí que tudo começa.
O outro aspecto vivo foi o do modo de exibição. Ponto alto entre todos: a concepção audaciosa, atrevida, de Bia Lessa para as obras do barroco. Inovadora e no entanto quão orgânica e evidente, além de necessária. O mito modernista, elitista e sacralizador, que propõe o lugar da exposição como um cubo branco neutro e puro, começa a desmoronar. Ele parece "natural" quando é apenas cultural; sua ascendência é forte, será difícil evitá-lo -mas está agora rachado.
A Oca foi, ela também, como o setor do século 19, amplamente bem-sucedida, e o pavilhão Negro de Corpo e Alma, do mesmo modo, felizmente violou algumas regras do "bem-expor" e fez do excesso, da acumulação, uma baliza ativa.
Um princípio organizador que poderia ter sido deixado de lado foi o da "arte do inconsciente". Se era preciso evocar a idéia de alguém para estruturar a mostra, buscar Mário Pedrosa, no lugar dos dois recorrentes Andrades, foi oportuno. Mas a opção de Pedrosa por aquele rótulo, aceito pela Mostra, revela-se agora datado culturalmente. O que está em jogo aqui é de natureza distinta do exibido nas outras seções.
As obras deste segmento eram magníficas e isso deveria ser motivo bastante para expô-las. Mas abrir espaço para a "arte dos loucos", expressão sem sentido, pediria que se acomodassem também, argumentando pelo absurdo, as categorias conexas a essa existentes no interior dos padrões culturais a que remetem.
Um deles, entre outros, é o do código civil brasileiro que, até há pouco tempo, colocava loucos, menores, índios e mulheres na mesma gaveta dos incapazes jurídicos, portanto, sociais. O princípio aqui é claramente de exclusão, traçador das fronteiras da normalidade e do aceitável. Se esse fosse o metro, caberiam então a arte da ingenuidade e a da feminilidade.
Num outro metro, e em outro tempo cultural, caberia, por exemplo, a arte da homossexualidade. Na verdade, no começo do século 21 nada se ganha dizendo que esta ou aquela arte vem do inconsciente. Pelo contrário, muito se perde. Uma homenagem a Nise da Silveira poderia ser feita de outro modo. Mas esta é apenas uma divergência conceitual; importante é que as obras que lá estão ali estivessem.
Feitas as contas, outras polêmicas inclusas ou excluídas, o saldo do evento, visto de sua ótica e sob esses dois aspectos, é positivo. Cabe agora incorporar essa experiência à rotina do sistema da arte local. O evento conta muito em arte, ao contrário do que dizem as advertências prudentes. A rotina, porém, na forma das instituições de arte perenes, precisa caber, ela também, na política cultural maior que envolveu esse evento. Mas essa é uma outra história.
Teixeira Coelho é ensaísta, escritor e diretor do MAC-SP (Museu de Arte Contemporânea), autor, entre outros, de "Niemeyer - Um Romance".
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