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28/11/2003 - 07h19

Tarkovski modula o tempo e cria a imagem

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TIAGO MATA MACHADO
crítico da Folha

A obra de Andrei Tarkovski (1932-86), tema da mostra no Cinesesc a propósito do lançamento de um pacote em DVD com todos os seus filmes, começa e termina com a mesma imagem: uma criança ao pé de uma árvore.

Apenas o movimento se inverte: vai do céu para a terra no primeiro plano do primeiro filme, "A Infância de Ivan", e da terra para o céu no final do último filme, "O Sacrifício". Natural de Belarus (ex-URSS), Tarkovski ainda não sabia que ia morrer quando rodou esse último plano. Depois, dirigindo a montagem do filme já em seu leito de morte, com um câncer fulminante, talvez se lembrasse do dia em que, numa sessão espírita, teria ouvido o espírito do escritor Boris Pasternak anunciar-lhe que só faria sete filmes na vida. História contada por Chris Marker em "Um Dia com Andrei Arsenevitch".

Filmando os últimos dias de Tarkovski, Marker, outro misterioso devoto dos enigmas do tempo, bem que poderia invocar a célebre frase inicial de seu clássico "La Jetée": "Esta é a história de um homem marcado por uma imagem de sua infância". Longe de sua terra, Tarkovski, exilado, mas não dissidente, reencontra, ao pé de seu leito de morte, o filho, liberado pelo regime soviético: ao momento, Marker dá o peso de uma "imagem-tempo", como se o passado, o presente e o futuro de Tarkovski se elucidassem ali, de uma só vez.

"Imagem-tempo" é o conceito e o nome de um livro do filósofo Gilles Deleuze que servem, de certa forma, de corolário para a obra de Tarkovski. Não que este precisasse: em "Esculpir o Tempo", o cineasta já esboçava sua própria teoria. Para Tarkovski, o essencial no cinema é o modo como o tempo flui (independente) dentro do plano, é a pressão e a modulação do tempo na cena. Essa imagem direta do tempo, Deleuze consagra como própria ao cinema moderno do pós-guerra, como se, por um desvio em sua evolução, essa arte encontrasse enfim a sua essência, encarando o fantasma que sempre a habitara, o tempo.

Tarkovski não se via como moderno. Achava que a modernidade mutilara a alma das pessoas, chamava-a "civilização da prótese". O objetivo da arte, assim, seria oferecer ao homem um alimento para o espírito, cultivar-lhe a alma, prepará-lo para a morte. Para ele, "um artista sem fé é como um pintor que nascesse cego". É por isso que sua obra é povoada pelos "iuródivii", típica figura russa, misto de bobo alegre e louco visionário, cujo maior exemplo é o Príncipe Míchkin de "O Idiota", de Dostoiévski, que Tarkovski por toda a vida sonhou adaptar.

É a vidência e a fé dos "iuródivii" --do personagem-título de "Stalker" ao louco de "Nostalgia"-- que os artistas, os personagens escritores nos filmes de Tarkovski almejam. Se não são crianças, preservam o espírito da infância, os sentidos alertas: fazendo dos "iuródivii" seus intercessores, Tarkovski tenta fixar o tempo em seus signos perceptíveis. De "A infância de Ivan" (infância vivida apenas em sonho) a "O Espelho", ele abandona todo e qualquer pretexto para evocar mais livremente a infância perdida.

Em Tarkovski, o travelling já não é uma "questão de moral" (como exigia Godard, nos anos 60) mas de metafísica. Inclui-se aí a palavra "física": muito de acordo com a mística russa, Tarkovski não dissocia espírito de matéria, Deus e a natureza --crença cuja figura-síntese é o oceano-Deus de "Solaris". Nas grandes sequências desse ex-geólogo há sempre um embate entre os (quatro) elementos da natureza. Toda a primorosa série culmina no plano-sequência do incêndio de "O Sacrifício", desfecho espantoso da obra de um artista que sempre acreditou que o ato de criação equivalia a um ato de sacrifício.

RETROSPECTIVA TARKOVSKI
Onde:
Cinesesc (r. Augusta, 2.075, SP)
Quando: de hoje a 2/12
Programação e roteiros: tel. 0/xx/11/3064-1668
Quanto: grátis
 

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