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28/02/2004 - 08h23

Em "Casanova", Fellini filma amor deslocado

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MARCELO COELHO
colunista da Folha

Pouca gente lê, hoje em dia, os incontáveis volumes de memórias do veneziano Giacomo Casanova (1725-1798). Gabola, jogador e charlatão, pretendia-se diplomata, filósofo, matemático, romancista; seu nome ficou para a história como sinônimo de conquistador e aventureiro. Não é um personagem antipático. Em filmes como "Casanova e a Revolução", de Ettore Scola, por exemplo, surge como uma espécie de sábio envelhecido e tolerante, a quem Marcello Mastroianni, já em fim de carreira, conferia o maior charme.

À primeira vista é difícil saber por que, depois do sucesso de "Amarcord" em 1974, Federico Fellini decidiu-se a adaptar as "Memórias" de Casanova para o cinema. O diretor tem uma indisfarçável antipatia pelo personagem --mas o filme não se torna menos notável por isso.

Ao lado de "Satyricon" (1969) e de "Roma" (1972), "Casanova" (1976) pertence ao grupo dos filmes "frios" (isto é, sardônicos, modernos, anti-sentimentais) de Federico Fellini. Não encontramos mais aquelas almas inocentes e brutalizadas presentes nos filmes da década de 1950, como "La Strada" ou "Noites de Cabíria". Tampouco a nostalgia agridoce de "Amarcord" e de "A Entrevista" se deixa vislumbrar nas cenas, sempre bizarras e elípticas, desta viagem de Fellini através das memórias do famoso libertino do século 18.

Tudo, a começar pela figura do protagonista (vivido por um Donald Sutherland descorado, exangue, como que feito de parafina) é feito para provocar no espectador o estranhamento, quando não a repugnância.

Não faltam, claro, as assustadoras mulheres fellinianas --embora o diretor desta vez tenha evitado as gordíssimas; aposta mais nas velhas, nas lunáticas e matusquelas. Mesmo a ótima música de Nino Rota não oferece seus habituais e envolventes prazeres ao ouvinte: é áspera, lembrando Stravinsky e Prokofieff.

As cenas de sexo, a que Casanova se dedica com profissionalismo e indiferença de ginasta, sucedem-se numa variedade estonteante de cenários, pretextos e países: uma ilhota em Veneza, uma estalagem em Dresden, um caótico palácio em Roma, um misto de santuário e laboratório alquímico em Paris acolhem as atividades do protagonista --que se vê em companhia, respectivamente, de uma freira que parece chinesa, de uma corcundinha de língua agilíssima, de uma italiana frígida e de uma anciã demente e ocultista.

Não é preciso dizer que, em todas essas ocasiões, Casanova está na verdade sempre só. A palavra "amor", algumas vezes pronunciada durante o filme, parece propositalmente deslocada e sem sentido.

Apatia e saciedade

Dizia-se muito, nos anos 70, que a voga da liberdade sexual terminaria provocando apatia e saciedade, depois dos escândalos iniciais. O filme de Fellini sem dúvida procura comprovar essa tese, exaurindo Donald Sutherland --e também o espectador-- ao longo de mais de duas horas de maquinais estrepolias.

Mesmo assim, quase 30 anos depois da estréia, "Casanova" não envelheceu. As estranhezas de estilo e as interrupções da narrativa parecem ter-se suavizado com o passar do tempo, abrindo mais espaço para a deslumbrante magia do filme. O contraste entre as cenas "vazias" --neve, bruma esverdeada, noite-- e os momentos de saturação quase oriental da tela --carruagens, brocados, adereços-- é operado magistralmente por Fellini, como que simbolizando o destino do personagem, que se alterna entre a promiscuidade e a solidão.

Não há praticamente nenhuma cena de nudez em "Casanova". Já as belas roupas, as cortinas, as cobertas, os véus, lenços, veludos e rendas funcionam como verdadeiros personagens do filme --do mesmo modo que o célebre plástico preto de uma das cenas iniciais. Utilizado por Fellini para fazer de conta que é água do mar, sua evidente falsidade serve para denunciar o artifício de tudo.

É que justamente o gosto do artifício, da cerimônia, da ilusão, aproxima o século 18 europeu do mundo tipicamente felliniano dos palhaços, do circo, do teatro, do Carnaval. O Casanova de Donald Sutherland é também um "clown", gélido e lamentável, caminhando sempre para o declínio --e Fellini não hesita em traçar uma hierarquia civilizacional entre as nações, que vai dos refinados salões franceses à rigidez espanhola, à esbórnia inglesa e à franca barbárie alemã.

Duas cenas antológicas valem o filme inteiro. O apagar das luzes num teatro em Dresden, enquanto Casanova fica de pé, sozinho, na platéia; e a aparição da carruagem do papa, fulgurante de ouro, sobre as águas congeladas do Gran Canale de Veneza, a que se segue uma dança estilizada e fúnebre do protagonista com sua derradeira amante. Quase insuportável; maravilhoso também.

Avaliação:

Casanova de Fellini (Il Casanova di Federico Fellini)
Produção: Itália/EUA, 1976
Direção: Federico Fellini
Com: Donald Sutherland, Tina Aumont e Cicely Browne
Quando: em cartaz no Cinesesc
 

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