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19/03/2004
-
05h05
MÁRCIO SELIGMANN-SILVA
Especial para a Folha de S.Paulo
"No princípio era o verbo", lemos no Evangelho de S. João. Já no Evangelho de Mel Gibson, do princípio ao fim o que impera é a violência e a escarnação. Não se trata, no entanto, da idéia fáustica de Goethe, que reverteu a frase bíblica em "No Início foi o Ato", o que levou Freud a pensar as origens traumáticas do Eu e da humanidade. Em Gibson não existe reflexão, apenas o mais tosco esteticismo da violência (aliás, onipresente no cinema atual).
Ele e seus seguidores denominam essa fixação na brutalidade de "realismo" e "fidelidade" à história. Nada poderia ser menos verdadeiro. Apesar da aura que se tentou criar em torno de "A Paixão de Cristo" (sua origem em uma "crise pessoal" de Gibson, seu "low budget" de "apenas" US$ 25 milhões), o filme mantém as características das megaproduções de Hollywood --e muito da estrutura do pensamento maniqueísta que costuma marcá-las.
Na verdade assistimos ao desfile de chavões como aquele típico do cinema-ilusão que, seguindo as doutrinas fisiognômicas do século 19, estabelece que os bons devem ter cara de anjinhos (no filme de Gibson eles devem ter dentes perfeitos) e os maus (no caso, os judeus e os torturadores romanos) são feios (têm cara de malvados avaros, ou simplesmente têm dentes podres). Do ponto de vista hollywoodiano, James Caviezel não poderia ser mais "realista" e "fiel". É um atleta, ex-jogador de basquete, que representa um superJesus ariano com olhos de mel. Mônica Bellucci, a Maria Madalena, aparentemente não se desvencilhou do papel de Persephone de "Matrix Reloaded", o que torna tudo quase "surrealista".
Assistimos à história de Jesus, de sua prisão no Getsêmani até sua crucificação e ressurreição. O roteiro pegou de cada evangelho o que quis. Introduziu elementos narrativos e simbólicos como um Satanás andrógeno (que parece ter escapado do set de filmagens de algum filme de terror pueril). A suposta fidelidade do filme consistiria na apresentação em "primeiro plano" da Paixão (dor) de Cristo. Nesse ponto pode-se falar apenas de uma superexposição da tortura do corpo que beira o mau gosto e faz lembrar a expressão que Godard cunhou nos anos 60 para criticar a exploração das imagens de terror do Holocausto: estilo "pornoconcentracionário". Gibson foi original neste ponto: criou o estilo "pornocristão".
O filme é anti-semita? Difícil ser mais anti-semita do que os evangelhos. Mas não resta dúvida que Gibson faz uma seleção das passagens dos evangelistas e foca no ódio dos judeus com relação a Jesus. Seu pensamento maniqueísta (inspirado em religiosas anti-semitas do século 18 que ele admira) tende para um fundamentalismo cristão que é canhestro, mas também, hoje, pode vir a ser perigoso.
Sua intenção evangelizante e "cruzada", de conversão pelas imagens que deveriam chocar (chocam apenas pela má qualidade do resultado), traz água para o moinho das lutas fundamentalistas. Fazer hoje um filme com esse enfoque não pode ser considerado algo inocente. O pai de Gibson não precisava ajudar a recordar essa mensagem anti-semita, ao insistir publicamente em relativizar e banalizar o Holocausto. O filme fala por si. Aliás, ele não fala (sua linguagem é muda, pois incompreensível e artificial: aramaico e latim), mas, sim, pretende de modo anti-racional pregar pelas imagens, como na Idade Média e na contra-Reforma. Em vez da mensagem de "tolerância, amor e perdão", que o diretor diz ter visado, vemos uma mensagem de violência e ódio.
Mas é claro que seu fundamentalismo cristão (e a polêmica daí decorrente) também converge para o "fundamentalismo capitalista". As salas de cinema estão cheias. Gibson já esteve muito melhor ao atuar como ator no papel de Rocky, o galo voador de "A Fuga das Galinhas". Pelo visto ele nunca mais conseguirá atingir as mesmas alturas.
Márcio Seligmann-Silva é doutor em teoria literária pela Universidade de Berlim, professor na Unicamp e autor de "Adorno" (Publifolha), entre outros
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"No princípio era o verbo", lemos no Evangelho de S. João. Já no Evangelho de Mel Gibson, do princípio ao fim o que impera é a violência e a escarnação. Não se trata, no entanto, da idéia fáustica de Goethe, que reverteu a frase bíblica em "No Início foi o Ato", o que levou Freud a pensar as origens traumáticas do Eu e da humanidade. Em Gibson não existe reflexão, apenas o mais tosco esteticismo da violência (aliás, onipresente no cinema atual).
Ele e seus seguidores denominam essa fixação na brutalidade de "realismo" e "fidelidade" à história. Nada poderia ser menos verdadeiro. Apesar da aura que se tentou criar em torno de "A Paixão de Cristo" (sua origem em uma "crise pessoal" de Gibson, seu "low budget" de "apenas" US$ 25 milhões), o filme mantém as características das megaproduções de Hollywood --e muito da estrutura do pensamento maniqueísta que costuma marcá-las.
Na verdade assistimos ao desfile de chavões como aquele típico do cinema-ilusão que, seguindo as doutrinas fisiognômicas do século 19, estabelece que os bons devem ter cara de anjinhos (no filme de Gibson eles devem ter dentes perfeitos) e os maus (no caso, os judeus e os torturadores romanos) são feios (têm cara de malvados avaros, ou simplesmente têm dentes podres). Do ponto de vista hollywoodiano, James Caviezel não poderia ser mais "realista" e "fiel". É um atleta, ex-jogador de basquete, que representa um superJesus ariano com olhos de mel. Mônica Bellucci, a Maria Madalena, aparentemente não se desvencilhou do papel de Persephone de "Matrix Reloaded", o que torna tudo quase "surrealista".
Assistimos à história de Jesus, de sua prisão no Getsêmani até sua crucificação e ressurreição. O roteiro pegou de cada evangelho o que quis. Introduziu elementos narrativos e simbólicos como um Satanás andrógeno (que parece ter escapado do set de filmagens de algum filme de terror pueril). A suposta fidelidade do filme consistiria na apresentação em "primeiro plano" da Paixão (dor) de Cristo. Nesse ponto pode-se falar apenas de uma superexposição da tortura do corpo que beira o mau gosto e faz lembrar a expressão que Godard cunhou nos anos 60 para criticar a exploração das imagens de terror do Holocausto: estilo "pornoconcentracionário". Gibson foi original neste ponto: criou o estilo "pornocristão".
O filme é anti-semita? Difícil ser mais anti-semita do que os evangelhos. Mas não resta dúvida que Gibson faz uma seleção das passagens dos evangelistas e foca no ódio dos judeus com relação a Jesus. Seu pensamento maniqueísta (inspirado em religiosas anti-semitas do século 18 que ele admira) tende para um fundamentalismo cristão que é canhestro, mas também, hoje, pode vir a ser perigoso.
Sua intenção evangelizante e "cruzada", de conversão pelas imagens que deveriam chocar (chocam apenas pela má qualidade do resultado), traz água para o moinho das lutas fundamentalistas. Fazer hoje um filme com esse enfoque não pode ser considerado algo inocente. O pai de Gibson não precisava ajudar a recordar essa mensagem anti-semita, ao insistir publicamente em relativizar e banalizar o Holocausto. O filme fala por si. Aliás, ele não fala (sua linguagem é muda, pois incompreensível e artificial: aramaico e latim), mas, sim, pretende de modo anti-racional pregar pelas imagens, como na Idade Média e na contra-Reforma. Em vez da mensagem de "tolerância, amor e perdão", que o diretor diz ter visado, vemos uma mensagem de violência e ódio.
Mas é claro que seu fundamentalismo cristão (e a polêmica daí decorrente) também converge para o "fundamentalismo capitalista". As salas de cinema estão cheias. Gibson já esteve muito melhor ao atuar como ator no papel de Rocky, o galo voador de "A Fuga das Galinhas". Pelo visto ele nunca mais conseguirá atingir as mesmas alturas.
Márcio Seligmann-Silva é doutor em teoria literária pela Universidade de Berlim, professor na Unicamp e autor de "Adorno" (Publifolha), entre outros
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