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03/04/2004 - 06h13

Romance de Haroldo Maranhão investiga morte de Machado de Assis

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MARCELO PEN
Crítico da Folha de S.Paulo

No "chalet" número 18 da rua do Cosme Velho, à margem do rio das Caboclas, na penumbra condizente com a morte que se avizinha, entre visitantes circunspetos, frascos de xarope e água de Vichy, agoniza longamente nosso maior escritor. Como reflete um dos presentes: "Mas este homem! Apodrece. Fede. E insiste!".

Cuidemos de estabelecer logo: "Memorial do Fim" é livro boníssimo, embora difícil de ser acompanhado por quem desconhece os pormenores da vida e obra de Machado de Assis.

O romance não acompanha apenas as circunstâncias que cercam a morte do escritor. Enredada a elas, temos uma intriga amorosa na forma de mistério. Teria Machado, após a morte da mulher Carolina, nutrido amores por uma jovem leitora?

A narrativa sugere que sim. E mais: o viúvo teria pensado em casar-se com a moça, ainda que "in extremis", a fim de que ela fosse beneficiada pela renda de um montepio. Haroldo Maranhão baseou sua hipótese numa carta de uma certa Hylda. Segundo ele, a epístola faz parte do arquivo da Academia Brasileira.

Mas o autor mistura as peças do tabuleiro. Hylda é identificada com Leonora (paixão do poeta Torquato Tasso) e também com Marcela Valongo, que surge no início do romance e também pode ser Virgínia, de "Memórias Póstumas de Brás Cubas".

O próprio Machado ora aparece como ele mesmo, ora como o Conselheiro Ayres, protagonista de seu último romance. Personagens da ficção do bruxo do Cosme Velho unem-se a criações de Maranhão e personalidades da história brasileira, o crítico José Veríssimo e o médico Miguel Couto.

O romance passeia por essas vias de mão dupla: caracteres históricos X figuras ficcionais, simulacro X realidade, personagens e situações que se multiplicam. Por trás, reside um grande nó relativo ao status do moribundo.

"O nosso morto era excelso, amado, quisto, benigno", declara o narrador. Vulto das letras, merece visita de figurões do governo. Bem diferente da "morte pequena" que sucede antes, na casa vizinha, para a qual "acorreram ralas pessoas, sem emoção de nota".

Não há como negar. Machado faz parte do "establishment" que ele próprio critica. Podemos dizer que há um cisma entre o Machado que denuncia nas entrelinhas o destempero nacional e o Machadinho das jovens leitoras, e dos políticos, e das solenidades.

Maranhão acentua essa dicotomia histórica ao aproximar o escritor de suas personagens (de Ayres, sobretudo), representantes da oligarquia nacional. Propositadamente ou não, volta contra o escritor a ironia antes destinada aos personagens.

A situação repete-se no terreno estilístico, onde o autor parodia, num admirável "tour de force", o estilo de Machado. O pastiche, como ele define, gera incômodo. Se o romance é redigido nos dias de hoje, por que a linguagem calcada na do "mestre"?

Ao promover uma simbiose no campo da expressão, Maranhão faz mais que confundir cópia com original. Faz Machado apear do pedestal de juiz equânime da sociedade, sapecando-lhe pontos de interrogação. E torna equívoca a questão da autoridade, já posta em xeque pelo retrato bifurcado do patriarca moribundo.

Essa ambigüidade encerra-se, não por acaso, na zona fronteiriça e difusa da morte, definida como "uma letra à vista de liquidez incerta, porque não se conhece a tradição na praça do endossante". Mais machadiano, impossível.

Avaliação:

Memorial do Fim: A Morte de Machado de Assis
Autor: Haroldo Maranhão
Editora: Planeta
Quanto: R$ 33,50 (200 págs.)
 

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