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27/06/2004 - 06h26

Artigo: Isso que está acontecendo me deixa muito humilhado

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TOM ZÉ
Especial para a Folha de S.Paulo

O Brasil, esse caldo infusório, pelo menos em música e até em moda é espermatozóide. Veja Flávio de Carvalho, com aquele conjunto de saia e blusa para homem nos anos 60. Veja o louco do Jânio Quadros usando aquela bata, então chamada de traje safári, enquanto presidente da República. Lembre o surto de tecidos e de modelagem da fábrica Bangu do Rio nos anos 50. Veja, mais atrás, o relógio de pulso de Santos Dumont. E hoje toda essa energia quântica dos desfiles.

Alguns anos atrás, em Nova York, quase na hora de voltar para o Brasil, saí para procurar roupa. Uma moça da Luaka Bop (a gravadora) me acompanhou, aconselhada por Bonnie Byrne, mulher de David, que também desenhava para algumas lojas.

Corri uma porção de magazines. Não se achava nada que desse vontade de vestir. Já desistindo, o funcionário de certa loja, não sabendo que falava com um brasileiro, me disse: "Você, que viaja muito, sabe onde é possível encontrar roupa boa, tecidos finos, estamparia elegante, qualidade de corte? Tudo isso você acha no Brasil e na Itália".

A época do tropicalismo colocou também em questão o que era vestimenta. Até então homem não vestia amarelo e vermelho, por exemplo. Certo dia, em Irará, saí com uma camisa com um filete amarelo, e um menino gritou: "Roupa de mulher!".

Hoje estão bem cotados até os sapatos brasileiros. E Ronaldo Fraga e seus colegas estão engajados num trabalho brilhante, abrindo as fronteiras do consumidor estrangeiro para a mercadoria brasileira. Pode-se dizer que são gênios atuais da produção de moda. Todo mundo sabe como é difícil vender algo ao exterior e como o Brasil precisa disso.

Nos anos 80, eu tinha hábito de ir à rua Clodomiro Amazonas, no Itaim. Depois da avenida Juscelino Kubitschek, as lojas expunham a produção que empresários e estilistas iniciantes propunham para vender a todo o Brasil.

Eu parava o carro e ia a pé, olhando de vitrine em vitrine, como se estivesse num museu ou numa feira de exposição, procurando naquela criatividade vital encontrar inspiração para meu próprio trabalho. O que figura nos meus discos de hoje se deve, parcialmente, a essa instigação.

Domínio público

Pela lei brasileira, um trabalho musical passa a ser considerado de domínio público 150 anos depois da morte do autor. É verdade que fui enterrado vivo em 1970, na divisão do espólio do tropicalismo. Mas, mesmo de acordo com essa contagem, só tenho 34 anos de morto. Então minha música ainda não é de domínio público.

Cacilda Becker que me ajude: não posso dar de graça a única coisa que tenho para vender. Senti muita humilhação com esse episódio. Tenho 67 anos, e o assunto da sobrevivência é tema de pensamento de grande parte dos meus dias, pois até hoje não descobri ainda outro meio de ganhar a vida, de sustentar minha família, de ter dignidade e respeito próprio, a não ser vendendo o que faço.

Ronaldo Fraga alega que está fazendo divulgação de minha obra. Divulgação, é claro, é necessária em qualquer ramo. Ora, várias vezes comprei na loja de Ronaldo Fraga e sempre paguei o que comprei. Apresentei-me em programas de Serginho Groismann e de Ana Maria Braga, por exemplo, usando roupas dele, nem por isso me considerando divulgador visual da marca. Jamais me passou pela cabeça pedir abatimento, quando da compra, porque estaria fazendo divulgação. Quanto mais, alegando que eu estava me convertendo em passivo modelo da loja, argumentar que ele deveria me dar as roupas de graça.

Isso que está acontecendo com a minha música me deixa realmente muito humilhado. Não sou uma vedete, mas imagine se Ana Paula Arósio, que é naturalmente muitíssimo divulgada pela Embratel, não recebesse um honrado pagamento pelo seu trabalho.

Pedi R$ 30 mil, mas, quando João Marcello Bôscoli, presidente da Trama, minha gravadora, me chamou ao telefone, compreendi que, do ponto de vista de artista da gravadora, eu deveria levar em consideração o problema da divulgação. Tanto que autorizei João a negociar com Ronaldo Fraga e aceitar um preço a que chegassem, por acordo.

Para estudantes, cineastas, dramaturgos, encenadores, profissionais iniciantes, concedo uma média superior a dez autorizações por mês, abrindo mão de quaisquer direitos autorais, quando eles me consultam para inserir minhas músicas em seus trabalhos. Em tais casos, estou dialogando com a nova geração, ainda desprovida de recursos, e concedendo-lhe, na minha medida, o que considero meu dever, um mínimo de possibilidades.

Tom Zé, 67, é músico

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