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20/08/2004 - 09h56

Artigo: Música eletroacústica: eu não me canso de falar

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FLO MENEZES
Especial para a Folha de S.Paulo

Fui tomado de surpresa quando vi, em reportagem na Folha de 11 de agosto, o título do novo show de Gilberto Gil: "Eletracústico". No exato dia anterior, havia proferido depoimento no Centro Cultural de São Paulo, em que lamentei, mais uma vez, a usurpação do termo "eletrônico" pela música praticada pelos DJs e manifestei, iludido, certo alento: ao menos o termo "eletroacústico" sempre nos pertencerá, a nós que atuamos na música radical com seus 800 anos de história, e que, desde o surgimento do gênero em 1948, compomos com recursos tecnológicos.

Mas, ao ler a matéria, não acreditei: apesar do desvio de linguagem --Gil preferiu o termo "eletracústico"--, era evidente sua intenção. "Acho legítimo que o setor popular possa se apropriar de nomenclaturas eruditas", afirmou. Dois dias depois, tem-se outra reportagem na qual, ao que parece, refere-se a mim: "Gil diz que se apropriou do título "Eletracústico" por inspiração de um músico erudito de que não recorda o nome". Gil completa: "Ele se queixava, num artigo contrariado, de essa música eletrônica de festa ser chamada de música eletrônica. Defendia a concepção eletracústica erudita contra usos populares abastardadores. Aí me ocorreu chamar o show de "Eletracústico'".

De fato, em várias ocasiões, declarei meu descontentamento diante da usurpação do termo, e que tenha eu servido de fonte de inspiração a um artista popular de sua envergadura é motivo de satisfação. Mas que agora isto ocorra com o próprio termo "eletroacústico", pelo qual ficou conhecida a elaborada música de estúdio na esfera dita "erudita" (termo sisudo que pouca relação guarda com nossa verve experimental), é algo no mínimo embaraçoso.

Na apresentação ao "Harmonia", de Arnold Schoenberg (Unesp, 2001), discuto a importância que certa designação confere a um fato artístico bem definido, mas cujo lugar na história só passa a ser reconhecido após ganhar um nome. Nomear uma coisa é reconhecer o lugar que esta ocupa em determinado processo cultural. A coisa não se resume a seu nome, mas, a partir do fato de podermos nomeá-la, ela adquire valor, institui-se enquanto singularidade, soma-se ao arsenal mítico do fazer humano.

Nomear é, então, contribuir para que se desenhe mais uma curva na espiral da invenção, não em um simples "progresso" unilateral das linguagens, mas em um processo que podemos designar por "transgresso": uma evolução de índole "quântica", num bosque inventivo em que ramos que florescem num lugar podem dar frutos simultaneamente em outras floradas, distantes de tal ou qual árvore genealógica.

Mas, em meio aos ramos que frutificam, há aqueles que resistem em florir e permanecem incrustados no solo. Quando o sentido de um nome é esvaziado, desloca-se o foco de sua experiência para fazeres não necessariamente relacionados ao processo que lhe deu origem, e o lugar dessa coisa se perde. Em vez de se valer da invenção e desenhar mais uma das curvas possíveis de sua espiral, circunscreve-se um círculo vicioso. "Transgresso" verte-se em regresso. A espiral tende, então, a perder sua propensão evolutiva, essencialmente transgressiva, e instaura-se o que Erza Pound classificava de diluição cultural.

A que serve tudo isso, senão a um desserviço cultural em um país já (e ainda) tão injustiçado? Se genialidade puder ser definida como a capacidade singular de criação dentro de certo âmbito de atuação, qualquer que seja este, será óbvio reconhecer que tanto um Gil quanto um Caetano são, bem acima da média, absolutos gênios da música popular. Em que pese toda a contribuição que o tropicalismo dera ao ideário de libertação das décadas de 60 e 70, duvido em essência, porém, que a genialidade em arte não passe igualmente pela opção quanto ao próprio âmbito de atuação lingüística do artista. Pois a opção mercadológica nunca me convenceu quanto a um mergulho existencial, radicalmente profundo no universo dos sons e da linguagem musical histórica.

O trampolim para este salto, que de ornamental nada tem, reveste-se de outro caráter: "música especulativa".

A música, matemática dos afetos, é a mais difícil das artes. Imbuída de aspectos técnicos, seduz o ser humano por possuir o dom de provocar emoções as mais indomáveis e universais, até mesmo arcaicas. E a cilada da música faz dela mesma a maior vítima: por aliar o cálculo às paixões, talvez constitua a atividade humana de maior abstração intelectual, mas é também, por sua dificuldade, aquela na qual o ser humano mais facilmente se fragiliza.

Em arte, os meios não justificam os fins, e não será suficiente o mero apelo a um recurso tecnológico para que se lance mão de uma terminologia que, de início, define certa poética. Não há, aí, qualquer legitimidade, mesmo que seja para se apartar dos modismos "eletrônicos". É preciso dar nome aos bois: música eletroacústica é a composição especulativa realizada em estúdio eletrônico cujos traços principais são a espacialidade sonora (a forma como os sons são dispostos no espaço) e a investigação harmônica e espectral.

Recentemente fui entrevistado por Arrigo Barnabé em seu notável programa transmitido pela Cultura FM. Ao final da emissão, indagado sobre o animal que gostaria de ser, falei de supetão: macaco. Instintivamente, optei por esse bicho alegre e saltitante, motivado pelo desejo antropofágico de pular de galho em galho no bosque da invenção musical transgressiva, ao qual também me referi naquela ocasião. Mas agora, triste ao ver algo pelo qual lutamos emergir em forma diluída, ainda que pelas talentosas mãos de Gil, me pergunto se ele não tinha razão quando se apropriava de outra expressão e dizia: "Cada macaco no seu galho".

Flo Menezes é professor e compositor

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