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03/01/2005 - 09h32

Robert Lepage escolhe mineira para criação do Cirque du Soleil

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VALMIR SANTOS
da Folha de S.Paulo

Profundamente identificada com a história do grupo mineiro Galpão, do qual foi uma das fundadoras, há 22 anos, a atriz Teuda Bara não imaginava que a vida como ela é fosse tão além das fantasias criadas em ruas e palcos por onde andou.

Ela foi escolhida pelo diretor de teatro e cineasta canadense Robert Lepage para integrar o elenco do novo espetáculo do grupo Cirque du Soleil, batizado "KÀ", que faz sessões de pré-estréia desde o final de novembro, em Las Vegas (EUA), no MGM Grand, teatro localizado no conglomerado de entretenimento de mesmo nome. A temporada oficial será aberta no dia 3 de fevereiro.

A reviravolta na carreira de Teuda Bara, 64, parece fazer jus ao seu prenome de origem grega, pois deveria se chamar Theoda, "a enviada de deus", como queria a mãe, dona Helena. Mas o cartório registrou Teuda.

Sua aventura começou em 2000, quando o Galpão apresentou "Romeu e Julieta" --espetáculo de rua que projetou o grupo em 1992-- no Shakespeare's Globe Theatre, em Londres, reconstrução do teatro onde William Shakespeare (1564-1616) atuou e era um dos donos.

Além da atriz Vanessa Redgrave, que levou a mãe a uma das sessões daquele julho de 2000, também Lepage (diretor multimídia, responsável por turnês de Peter Gabriel e co-autor da peça "Os Sete Afluentes do Rio Ota", montada recentemente no Brasil por Monique Gardenberg) foi conferir a curta temporada da trupe brasileira e guardou na memória aquela ama interpretada por Bara. A personagem chegava a "dirigir" uma Veraneio "em busca do Romeu de sua Julieta", conforme a concepção popular do encenador Gabriel Villela.

Convidado a dirigir o espetáculo do Cirque du Soleil --grupo canadense nascido há 20 anos, especializado em criações cujas narrativas são apoiadas em recursos visuais, musicais, artes marciais, números circenses etc.--, Lepage pediu que a produção de "KÀ" localizasse Bara para os testes do papel de outra ama, a mulher que cuida dos gêmeos, um menino e uma menina, herdeiros de um reino encantado.

O rei, a rainha e o povo celebram o aniversário dos irmãos quando, subitamente, o canto e a dança são interrompidos pelo ataque de inimigos. O rei e a rainha são mortos. A ama e os gêmeos (os personagens não têm nome) fogem num barco, mas são colhidos por uma tempestade. O menino se perde.

A partir daí, sucedem as cenas, sobretudo aéreas, num espaço cênico cuja estrutura vertical se assemelha à de um prédio sem andares, com várias plataformas.

O público acompanha as perigosas travessias dos protagonistas por mundos desconhecidos, até o reencontro. "O enredo é simples assim, um reino do bem que enfrenta o mal", diz Bara. As palavras são inventadas, ininteligíveis.

Essa história de tintas épicas traz batalhas em florestas e penhascos, muitas delas ancoradas em efeitos cinematográficos, cotejando as faces do elemento fogo: a que cria e a que destrói. "KÀ" é uma antiga expressão egípcia que designa a natureza de dualidade do espírito humano.

Sobre pernas-de-pau

Para quem já bancou a ama em três peças do Galpão (acrescentem-se a Nieta de "Um Molière Imaginário", de 1997, e a Sebastiana de "Partido", de 1999), o difícil foi dar conta dos números circenses de equilíbrio, como andar sobre pernas-de-pau, cantar lá de cima e ainda dançar. No vídeo que mandou para a produção, a própria Bara, sempre risonha, alertou Lepage quanto aos seus dotes artísticos.

"Olha, talvez eu não seja a atriz que você procura. Tenho 62 anos [à época], peso cerca de cem quilos [atuais] e não faço acrobacia... Só estou fazendo aqui para você ver a ruindade que é", afirma a atriz na gravação. Também seguiu para o Canadá, na mesma fita VHS, uma cena de "O Círculo de Giz Caucasiano", de Bertolt Brecht, interpretada por Teuda Bara, conforme pedia o teste.

De nada valeu a dissimulação da mineira. Lepage sacramentou o convite. Bara pensou dez vezes, conversou com os amigos do Galpão. A essa altura, outubro de 2003, ela cumpria a temporada carioca de "O Inspetor Geral".

Pediu licença, deixou o elenco e embarcou para Montreal, no Centro de Treinamento do Cirque du Soleil, onde ensaiou durante cinco meses, às vezes com a temperatura abaixo de zero.

Ao choque térmico, somou-se o da língua (ela não fala inglês, um estorvo para uma "faladeira" assumida). Carece de um tradutor. Não será diferente durante os próximos dois anos, a contar de fevereiro, como reza o contrato que assinou com o Soleil. Só deve voltar de vez para BH em 2007.

Há seis meses em Las Vegas, onde o inverno "é como aquele friozinho de Ouro Preto", Bara mora num apartamento farto em máquinas eletrônicas com as quais não tinha familiaridade. Foi obrigada a aprender a usar computador para trocar e-mails com os dois filhos adultos e os amigos.

Show business

O elenco de 72 artistas de várias nacionalidades (mais sete deles também brasileiros, acrobatas, atores e ginastas de SP, RJ e BH) apresenta duas sessões diárias de "KÀ" (às 19h e às 22h30, com duração de cem minutos cada uma; as folgas são às quartas e quintas). Bara tem consciência de que está na seara do show business, parâmetro bastante diverso da bagagem que cultivou no Galpão.

"Faz mais de um ano que não vejo teatro", diz a atriz, que acha os cassinos um fastio e não tem pique para baladas. "Detesto o som bate-estaca."

O máximo de entretenimento a que se permitiu foi uma visita a uma espécie de museu de Elvis Presley. Fã, assistiu a uma performance de um cover do cantor e comprou uma dessas bonecas russas que embutem outras bonecas menores --só que, em vez de bonecas, são bonecos de Elvis.

Em contrapartida, colhe rara experiência de compartilhar a criação de Lepage, que aprendeu a admirar mais na prática, e fazer parte da engrenagem do Cirque du Soleil, uma superproduzida companhia com fôlego para manter espetáculos simultâneos em outros teatros da Europa e EUA.

E isso, diz Bara, sem descuidar da segurança e da saúde dos seus artistas. Ela, por exemplo, passou por uma bateria de exames médicos. Teve cenas adaptadas para que conseguisse se locomover sem problemas no sobe-e-desce de escadas nas coxias. "A molecada do elenco é atleta. Não dou conta de tudo", reconhece. "E quando a gente termina a primeira sessão, logo a camareira vem com os outros figurinos, passados e lavados, para a segunda."

Mas o que mais impressiona Teuda Bara é ver todos os cerca de 2.000 lugares do MGM Grand ocupados em quase todas as sessões. Pena que o público fique disposto longe do palco. Não há possibilidade de contato com os atores, e vice-versa. Quando acaba, cada um vai para o seu lado, o camarim e a saída. Para quem aprendeu muito da arte de representar nas rodas de ruas e praças, não deixa de ser frustrante.

Especial
  • Leia o que já foi publicado sobre Robert Lepage
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