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26/10/2000
-
04h59
da Folha de S.Paulo
Um retrato do inferno em movimento. Assim pode ser definido o longa-metragem "Bicho de 7 Cabeças", de Laís Bodanzky.
Mas um retrato pintado com tanta paixão, competência e integridade que vê-lo é, ao mesmo tempo, um tormento e um prazer.
Tormento por aquilo que ele mostra: um jovem de classe média baixa, Neto (Rodrigo Santoro), sendo sistematicamente inutilizado para a vida, por conta da ignorância, da truculência e da mesquinharia que o cercam.
Da repressão do pai à repressão dos manicômios, o percurso de Neto é uma viagem dolorosa e absurda, uma espécie de "Alice no País das Maravilhas" virada do avesso.
Lembra "Maria de Mi Corazón", um filme mexicano roteirizado por García Márquez e que foi exibido na Mostra de Cinema de São Paulo há uns 15 anos. Nele, a mulher de um mágico de circo, por obra de uma sucessão de equívocos, vai parar num hospício e não consegue mais sair de lá.
Mas "Bicho de 7 Cabeças" é ainda mais terrível, não por ser "inspirado numa história real" (como o mais mentiroso cinema americano gosta de alardear), mas por concentrar dramaticamente milhares de histórias reais.
De onde vem o prazer, então? Da constatação de que ainda podem surgir, neste cínico e deteriorado mercado cultural em que chafurdamos, obras estética, política e moralmente honestas.
Sente-se em cada fotograma de "Bicho de 7 Cabeças" a entrega de seus realizadores, mas o filme fracassaria se se fiasse apenas nas suas boas intenções.
Mas todas as principais opções da diretora são certeiras. O tom documental amplifica a contundência da história contada, ao borrar as fronteiras entre o que é encenado e o que é "real", e a ausência de proselitismo facilita a entrada do espectador no universo dos personagens.
Os diálogos enxutos e cotidianos concorrem para um certo naturalismo que harmoniza as interpretações, evitando que haja descompassos, mesmo entre um ator cultivadíssimo como Othon Bastos e um novato como Rodrigo Santoro.
Este último encarna seu personagem com uma garra e uma intensidade que provavelmente nunca apareceriam se seu trabalho ficasse confinado à televisão.
A montagem, ágil sem ser leviana, acentua o clima de delírio e não deixa cair o pique emocional. É, assumidamente, um filme para emocionar muita gente, sobretudo os jovens, ou os que ainda se lembram de o terem sido.
Desse ponto de vista, a música (de André Abujamra, com canções de Arnaldo Antunes) não poderia ser melhor, condensando a rebeldia e o lirismo do início da vida adulta.
Mas o maior acerto de "Bicho de 7 Cabeças" talvez seja sua plena adesão ao protagonista. Mesmo nos poucos momentos em que ele não está em cena, sentimos que o filme permanece com ele, sofre com ele, compartilha de sua humanidade e a comunica ao espectador. O mundo pode ter-lhe virado as costas. O filme, não.
Bicho de 7 Cabeças
Direção: Laís Bodanzky
Produção: Brasil, 2000
Com: Rodrigo Santoro, Othon Bastos e Cássia Kiss
Quando: hoje, às 22h25, no Espaço Unibanco; amanhã, às 12h, no Cinearte (sessão exclusiva para estudantes com carteirinha da Ubes); 2, às 14h50, no Masp.
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Crítica: "Bicho de 7 Cabeças" é viagem ao inferno em movimento
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Um retrato do inferno em movimento. Assim pode ser definido o longa-metragem "Bicho de 7 Cabeças", de Laís Bodanzky.
Mas um retrato pintado com tanta paixão, competência e integridade que vê-lo é, ao mesmo tempo, um tormento e um prazer.
Tormento por aquilo que ele mostra: um jovem de classe média baixa, Neto (Rodrigo Santoro), sendo sistematicamente inutilizado para a vida, por conta da ignorância, da truculência e da mesquinharia que o cercam.
Da repressão do pai à repressão dos manicômios, o percurso de Neto é uma viagem dolorosa e absurda, uma espécie de "Alice no País das Maravilhas" virada do avesso.
Lembra "Maria de Mi Corazón", um filme mexicano roteirizado por García Márquez e que foi exibido na Mostra de Cinema de São Paulo há uns 15 anos. Nele, a mulher de um mágico de circo, por obra de uma sucessão de equívocos, vai parar num hospício e não consegue mais sair de lá.
Mas "Bicho de 7 Cabeças" é ainda mais terrível, não por ser "inspirado numa história real" (como o mais mentiroso cinema americano gosta de alardear), mas por concentrar dramaticamente milhares de histórias reais.
De onde vem o prazer, então? Da constatação de que ainda podem surgir, neste cínico e deteriorado mercado cultural em que chafurdamos, obras estética, política e moralmente honestas.
Sente-se em cada fotograma de "Bicho de 7 Cabeças" a entrega de seus realizadores, mas o filme fracassaria se se fiasse apenas nas suas boas intenções.
Mas todas as principais opções da diretora são certeiras. O tom documental amplifica a contundência da história contada, ao borrar as fronteiras entre o que é encenado e o que é "real", e a ausência de proselitismo facilita a entrada do espectador no universo dos personagens.
Os diálogos enxutos e cotidianos concorrem para um certo naturalismo que harmoniza as interpretações, evitando que haja descompassos, mesmo entre um ator cultivadíssimo como Othon Bastos e um novato como Rodrigo Santoro.
Este último encarna seu personagem com uma garra e uma intensidade que provavelmente nunca apareceriam se seu trabalho ficasse confinado à televisão.
A montagem, ágil sem ser leviana, acentua o clima de delírio e não deixa cair o pique emocional. É, assumidamente, um filme para emocionar muita gente, sobretudo os jovens, ou os que ainda se lembram de o terem sido.
Desse ponto de vista, a música (de André Abujamra, com canções de Arnaldo Antunes) não poderia ser melhor, condensando a rebeldia e o lirismo do início da vida adulta.
Mas o maior acerto de "Bicho de 7 Cabeças" talvez seja sua plena adesão ao protagonista. Mesmo nos poucos momentos em que ele não está em cena, sentimos que o filme permanece com ele, sofre com ele, compartilha de sua humanidade e a comunica ao espectador. O mundo pode ter-lhe virado as costas. O filme, não.
Bicho de 7 Cabeças
Direção: Laís Bodanzky
Produção: Brasil, 2000
Com: Rodrigo Santoro, Othon Bastos e Cássia Kiss
Quando: hoje, às 22h25, no Espaço Unibanco; amanhã, às 12h, no Cinearte (sessão exclusiva para estudantes com carteirinha da Ubes); 2, às 14h50, no Masp.
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