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01/04/2006 - 02h00

Leia trechos de 2 lançamentos da Nova Era

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da Folha de S. Paulo

Leia trechos de "A Inteligência da Fé", de Mateus Soares de Azevedo, e "Para Compreender o Islã", de Frithjof Schuon, ambos lançamentos da editora Nova Era. A edição impressa da Folha traz hoje texto sobre esses livros.




"A Inteligência da Fé", de Mateus Soares de Azevedo

Introdução

Ao abordar temas do espírito, não podemos descartar a dimensão do conhecimento. Na verdade, é preciso enfatizá-la, pois, além de sua importância intrínseca, ela tem sido obscurecida na religião. Não nos referimos aqui à mera informação quantitativa ou à erudição livresca, mas à inteligência que discerne aquelas verdades fundamentais que permeiam as religiões e que, simultaneamente, envolve a personalidade integral do indivíduo. Muitas vezes, a inteligência é percebida apenas como uma manifestação de orgulho intelectual, sem nos darmos conta de que se trata de uma contradição de termos. Pois a verdadeira inteligência caracteriza-se pela capacidade de ver os fatos como realmente são, portanto, pela objetividade, o que exclui o orgulho. Sem dúvida, as religiões, em suas formulações convencionais, privilegiam uma fé sentimental - que pode ser mais imediatamente captada e realizada pela generalidade dos homens -, mas a fé plena exige o discernimento, sem o qual poder-se-ia ter fé em seja lá o que for. A verdade - objeto e meta da inteligência - delimita, por assim dizer, as fronteiras da fé.
Nos dias de hoje, com a convivência, forçada pela globalização, cada vez mais intensa de culturas e civilizações distintas, a compreensão do fenômeno religioso em sua plenitude se defronta com inúmeros desafios. O mais urgente deles, a meu ver, é justamente o da incorporação da dimensão do conhecimento no sentido de oferecer resistência ao crescente divórcio entre inteligência e espiritualidade; e, mais ainda, de forjar uma aliança entre o conhecimento e o sagrado.

É preciso, também, encarar a religião enquanto tal, e tal ou qual religião em particular, de uma maneira original e universalista, sem contudo desprezar as inegáveis especificidades de cada tradição. Cabe igualmente abordar a espiritualidade e sua diversidade de uma forma global, única realmente apropriada nos nossos dias, plenos de dificuldades, contradições e perplexidades, mas também férteis de possibilidades. Religião em sua plenitude e totalidade, composta que é de exoterismo e esoterismo, de doutrina e ritual, de arte e cultura, e não este corpo amputado de suas dimensões mais elevadas a que seus críticos muitas vezes se referem.

Fenômeno simultaneamente singular e plural, a religião deixa-se ver e permite a participação segundo múltiplos e diferentes aspectos. Aspectos intelectuais e espirituais principalmente, mas também éticos, culturais, sociais e artísticos. Fenômeno plural porque há que se considerar as diversas religiões históricas, como o hinduísmo, o judaísmo, o budismo, o cristianismo, o islamismo. Cada qual com suas duas dimensões fundamentais: o exoterismo (a religião comum, as regras e convenções exteriores) e o esoterismo (a interioridade, a mística, a contemplação); este último constitui, em síntese, a dimensão interior da religião e aponta para aquele misterioso Reino dos Céus que está dentro de nós a que o Cristo se referiu. Mas nosso tema também pode ser encarado, em sua quintessência, no singular, se contemplado da perspectiva da unidade das religiões, a qual abordaremos mais à frente.

Há que se reconhecer, ainda, que não é por acaso que as grandes tradições espirituais da humanidade estão vivas há séculos, ou melhor, milênios, ainda moldando, em vários graus de comprometimento, os corações e as mentes das pessoas, nos quatro cantos do mundo. Para aqueles que se dão conta concretamente do caráter frágil, instável, transitório e evanescente dos empreendimentos puramente terrenos, a durabilidade e a universalidade do fenômeno religioso são dignos de reflexão séria. Isto resulta claramente do fato de as religiões tradicionais não derivarem, em sua essência mais profunda, de ideologias ou interesses puramente humanos, mas de possuírem uma base revelada. Só esta matriz transcendente, conjugada à força da tradição, consegue explicar a sobrevivência da religião no mundo contemporâneo. Algo que uma iniciativa exclusivamente horizontal não poderia jamais realizar, dada justamente a sua instabilidade intrínseca.

Revelação e tradição são, assim, as duas condições sine qua non da religião. Associando, numa imagem simples, a religião a um curso d'água, diríamos que a revelação é a fonte de onde brota a mais pura das águas; a tradição é o leito sobre o qual as águas correm, fazendo o rio chegar a sítios distantes sem se perder. Poderíamos também imaginar uma pedra que cai sobre um espelho d'água; sua queda e impacto sobre a superfície figuram a revelação. As ondas que se formam concentricamente em torno deste ponto figuram a tradição; esta última, assim, constitui o principal vetor de continuidade e transmissão, espacial e temporalmente, da mensagem original engendrada por este inaudito e prodigioso contato entre o Absoluto e o relativo, o Perene e o temporal.

Finalmente, convém não esquecer que religião deriva, etimologicamente falando, de re-ligar; reatar algo que já esteve unido e foi rompido. A física e a metafísica, a Terra e o Céu, Deus e o homem. Assim, religião é também, e sobretudo, aproximação e convergência; que podem levar em última análise à união, como exposta por místicos de diversas latitudes.
Pois bem, após estas noções introdutórias gerais, devemos dizer que este vasto e rico universo merece e exige uma abordagem estimulante e elevada, que o liberte dos entraves e obstáculos engendrados pela visão estreita do senso comum, infundindo-lhe ao mesmo tempo frescor e energia. Os vários aspectos das religiões e espiritualidades de todo o mundo têm também de ser apresentados, desde dentro, simultaneamente com discernimento e amor, para que o assunto se torne, como de fato é, acreditamos, a coisa mais interessante que há.

Já fizemos referência ao elemento conhecimento, objeto último da inteligência humana. Mais do que qualquer outro, ele deve caracterizar de especial maneira esta abordagem. Por ser cada vez mais esquecido nas religiões, a ponto de hoje não se encontrarem exposições ou apresentações esclarecedoras deste legado de sabedoria. O que predomina amplamente são argumentos de apelo puramente sentimental ou moral, que não surtem mais o efeito desejado. É preciso, igualmente, não ter receio de enfrentar as questões colocadas pela mentalidade materialista e relativista da modernidade - as quais em geral não têm recebido respostas intelectualmente satisfatórias -, procurando apresentar os tesouros do mundo do espírito de uma forma intelectualmente desafiadora.

Cabe finalmente analisar o fenômeno da religião em toda a sua riqueza, com seus aspectos inextirpáveis de sabedoria e beleza, e não apenas como um fenômeno ideológico ou político - isso seria o mesmo que privá-lo de sua substância. Afinal, a espiritualidade verdadeira envolve o homem por inteiro. Pela inteligência, a qual busca por natureza a verdade; pela vontade, a qual quer fazer o bem; pelo sentimento, o qual ama congenitamente a beleza. É por isso que toda religião genuína se dirige a todo tipo de homem. Seja ele de tendência intelectual, para quem o que importa é sobretudo a verdade e o conhecimento. Seja o homem de tipo sentimental, centrado na devoção. Seja, ainda, o homem de tipo ativo, seguidor fiel das regras e dos procedimentos tradicionais. Ou, segundo a linguagem da sabedoria da Índia, o homem trilha aquele caminho espiritual que, por vocação, é o seu, seja o do conhecimento (jnâna), o da devoção (bhakti) ou o da ação (karma) - caminhos estes que, diga-se, não são mutuamente excludentes. Ou ainda, desta vez de acordo com a tradição cristã, o homem pode seguir a via de Marta (da ação) ou a via de Maria (contemplação, englobando tanto a devoção como a sapiência).
O que estas reflexões preliminares e muito gerais tratam de abarcar e de pôr em questão é nada mais, nada menos, do que o destino espiritual do conturbado e caótico mundo contemporâneo. As páginas que seguem procuram expandir e aprofundar essas idéias, visando encaminhar chaves e propostas para os desafios aqui esboçados.

MATEUS SOARES DE AZEVEDO
São Paulo, 2005

CAPÍTULO 1

O conhecimento e o sagrado

Como Virgílio para Dante na Divina Comédia, também teremos um guia na jornada em busca de chaves e propostas para os desafios apresentados na Introdução. Este farol será para nós a Filosofia Perene. Historicamente, este termo foi formulado pela primeira vez por Agostinho Steuco (1497-1548), e se referia a uma sabedoria universal que englobava a teologia judaico-cristã e a filosofia dos gregos. Sacerdote católico e filósofo, bibliotecário do Vaticano, Steuco foi influenciado pelos escritos de Platão (c. 427-348 a.C.) e do cardeal Nicolau de Cusa (c. 1401-1468); em sua obra De Pace Fidei (Sobre a paz entre os fiéis), Cusa concebeu um diálogo imaginário entre adeptos das diferentes religiões, que busca uma aproximação entre as doutrinas das diversas tradições da humanidade.

Da época do cardeal Nicolau de Cusa e de Steuco até nossos dias, o termo foi utilizado aqui e ali, de forma intermitente; os neotomistas, por exemplo, nos séculos XIX e XX, valeram-se dele, associando-o à filosofia de Santo Tomás de Aquino, sem esquecer de mencionar a vanguarda literária do início do século XX.4 Foi, contudo, por intermédio de três visionários que este saber encontrou sua mais abrangente e profunda tradução universalista em nossa época: o filósofo das religiões suíço-alemão Frithjof Schuon (1907-1998), o metafísico francês René Guénon (1886-1951) e o crítico de arte e erudito indiano Ananda Kentish Coomaraswamy (1877-1947).

Por outro lado, o romancista e ensaísta inglês Aldous Huxley (1894-1963) também tratou do tema, chegando até a publicar um livro denominado The Perennial Philosophy, mas aqui dentro de um contexto estritamente literário, sem suas concomitâncias religiosas e sapienciais. Fortemente marcado pelo individualismo das vanguardas artísticas, sua abordagem é subjetiva e idiossincrática; Huxley no fundo desconfiava das crenças e dos rituais das religiões.




"Para Compreender o Islã", de Frithjof Schuon

Apresentação

Compreender o islã é, fundamentalmente, sondar os mistérios da religião e da espiritualidade; é perscrutar seu livro sagrado, o Corão; seu porta-voz, o Profeta Mohammed (Maomé); e sua mística, o sufismo.

É exatamente isto o que faz Frithjof Schuon neste livro, com pleno conhecimento de causa, armado de uma vasta erudição e de um discernimento que não se deixa enganar pelas aparências. Sua abordagem desse tema simultaneamente fascinante e de primeira importância no mundo contemporâneo é, ademais, marcada pela originalidade e por um estilo que alia precisão conceitual com beleza literária.

O Corão, para Frithjof Schuon, não é somente a Escritura do islã, é a própria revelação. Este livro é o logos, o "intermediário" ou a "ponte" entre duas ordens de realidade, a da absolutez e a da relatividade, do divino e do humano. Assim como, no cristianismo, "o verbo se fez carne", do mesmo modo se poderia dizer que, no islã, "o verbo se fez livro".
A riqueza e a importância capital do Corão podem ser medidas pelo fato de que ele contém simultaneamente uma metafísica e um código ético e moral, o qual é, por sua vez, a base da Lei islâmica, a Sharî'ah. O Corão é, assim, a principal fonte de conhecimento e de direcionamento moral e social dos muçulmanos, sejam eles árabes, berberes, africanos, asiáticos ou europeus.

O profeta, Mohammed, é o homem através do qual foi transmitida a mensagem contida no Corão. Ele é o "enviado" e o "veículo" da revelação islâmica; é aquele que transmitiu a mensagem essencial do islã e que serve de "modelo" e exemplo de conduta para os fiéis.

É verdade que para os ocidentais, explica Schuon, Mohammed não representa um modelo de perfeição; ele é visto como desigual e ambíguo, dado que envolvido no jogo dos interesses terrenos e políticos - diferentemente de Jesus e de Buda, por exemplo. Mohammed se assemelha, antes, a Moisés e a Abraão, como profeta e legislador sacro de seu povo. Ele foi simultaneamente líder temporal e autoridade espiritual, místico e chefe.

Segundo a doutrina islâmica, Mohammed foi o último dos profetas, o "selo da profecia". A história até aqui não contesta isso. Depois dele não surgiu nenhum outro que o igualasse. Como exprimiu, em History of Turkey, Alphonse de Lamartine, escritor e político francês do século XIX:
Se a grandeza do desígnio, a escassez dos meios e a imensidão dos resultados constituem as três medidas do gênio do homem, quem se atreveria a comparar humanamente qualquer grande figura da história moderna com Maomé? Os mais famosos não moveram mais do que armas, leis, impérios; quando fundaram algo, não foi mais do que potências materiais, derrotadas em geral antes deles. Maomé movimentou exércitos, legislações, impérios, povos, dinastias, milhões de homens sobre um terço do globo habitado; mas, mais do que isto, ele despertou idéias, crenças, almas. Fundou sobre um livro, cujas letras se converteram em lei, uma nacionalidade espiritual que engloba povos de todas as línguas e de todas as raças, e imprimiu, mediante o caráter indelével desta nacionalidade muçulmana, o ódio aos falsos deuses e a paixão pelo Deus uno e imaterial.

Quanto ao sufismo, trata-se da mística ou via espiritual no seio do islã. É o caminho através do qual a religião comum pode ser "aprofundada", ou "elevada", ou mesmo "embelezada". A mística islâmica é "fazer tudo como se Deus estivesse nos vendo, pois mesmo que nós não o vejamos, Ele não obstante sempre nos vê" (hadith, ou dito do profeta).

Mas, nesta obra verdadeiramente notável - talvez o melhor livro sobre o islã já escrito por um autor ocidental -, Frithjof Schuon vai além. Pois, para ele, compreender o islã é compreender a religião, a religião em si e como tal; a "religião" subjacente a toda religião. Compreender o islã, portanto, é entender todas as religiões, especialmente suas contrapartidas monoteístas anteriores, o cristianismo e o judaísmo. Nessa compreensão do islã, que percebe todas as religiões, Schuon expõe igualmente, de maneira sintética certamente, mas suficiente, iluminada e elevada, o cerne dessas outras religiões. Acerca da tradição cristã, e em particular sua dimensão sapiencial, suas intuições e análises são fulgurantes, como se pode verificar sem dificuldade pelas extensas passagens ao longo do Capítulo 4.

Vê-se, assim, que o islã de Frithjof Schuon é uma tradição universal, profunda, bela e tolerante, a qual passa ao largo do "islã" fanático, violento e intolerante dos modernos agrupamentos militantes. Este islã tradicional e integral tampouco é a civilização puramente política e econômica como refletida nas páginas dos nossos jornais e revistas e nas telas de nossas emissoras de TV. Ele é incomparavelmente mais rico, mais matizado e mais complexo, como convém aliás a uma tradição de mais de 1.400 anos de realizações impressionantes em intelectualidade, cultura, artes e ciências.

Quanto ao autor deste livro axial, trata-se de um dos mais importantes e originais pensadores do século XX, uma figura que trouxe raras e notáveis contribuições à filosofia das religiões, aportes estes reconhecidos tanto por autoridades de diversas tradições religiosas como dos principais centros de conhecimento do mundo.

O Nobel de literatura, T. S. Eliot, por exemplo, disse a respeito do primeiro livro de Schuon, A unidade transcendente das religiões (Dom Quixote, 1991): "É a obra mais impressionante sobre as religiões do Ocidente e do Oriente que já li".1 S.H. Nasr, professor em Harvard e na George Washington University, afirmou que Schuon é um dos "maiores vultos intelectuais e espirituais do mundo", um autor "com influência global". Ainda para Nasr, autor de Knowledge and the Sacred, entre outras obras, Schuon é "incomparável em sua habilidade para cruzar fronteiras religiosas e para comparar e relacionar em profundidade os vários elementos das diversas religiões, revelando sua unidade interior e ao mesmo tempo respeitando sua diversidade formal".

William Stoddart, autor de O budismo ao seu alcance: princípios e expansão (Nova Era, 2004), anotou que "Schuon alcançou alturas insuperáveis em sua exposição da verdade essencial que vive no coração de toda forma revelada". Huston Smith, autor de As religiões do mundo (Cultrix, 2001) e de Por que a religião é importante? (Cultrix, 2002), considerou-o "o maior pensador da religião de nossa época". Kenneth Oldmeadow, da universidade de Sidney, Austrália, disse que seus escritos "constituem a mais extraordinária obra do século XX no campo dos estudos da religião".

Nascido em Basiléia, na Suíça alemã, em 18 de junho de 1907, e falecido em Bloomington, no meio-oeste norte-americano, em 5 de maio de 1998, Schuon é autor de 23 livros, já traduzidos para as principais línguas do mundo, entre elas o português. Em nossa língua, já foram publicados: O homem no universo (Perspectiva, 2001), O sentido das raças (Ibrasa, 2002), O esoterismo como princípio e como caminho (Pensamento, 1985) e uma antologia intitulada Islã, o credo é a conduta (Imago, 1990), além do já citado A unidade transcendente das religiões (Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1991).

Neste Para compreender o islã, Schuon mostra que a força e a influência extraordinária do Corão, e por conseqüência do islã, não passam somente pela mensagem teórica que ele expõe; há de se levar em conta também sua eficácia psicológica, sua força teúrgica, seu perfume místico. Afinal, suas sentenças e capítulos têm sido gravados na memória e recitados de cor por gerações de fiéis. E o Corão é também utilizado como amuleto protetor, assim como um cristão usa a cruz ou um ícone e um judeu o mezuzá. O poder do Corão é atestado, ademais, por sua influência no mundo; isto aparece particularmente na espantosa e fulminante expansão da religião. Enfim, os feitos e façanhas engendrados pelo Corão, na geografia e na história, transcendem infinitamente sua expressão puramente literária e seu sentido literal.

Ao propor uma abordagem universalista da religião, Para compreender o islã situa, em suma, o legado intelectual e espiritual da tradição islâmica em relação às demais grandes civilizações do mundo. Obra abrangente e profunda, discute qual é afinal a "originalidade" do islã, onde está a fonte de sua força e de sua influência. Raríssimos são os livros sobre o assunto que conseguem ser tão estimulantemente instrutivos e cativantes; sua leitura é fonte privilegiada de entendimento e fruição; seu estudo vale plenamente cada hora a ele dedicada.

Por Mateus Soares de Azevedo, autor de Ye Shall Know the Truth: Christianity and the Perennial Philosophy EUA (World Wisdom, 2005), Iniciação ao islã e sufismo (Nova Era, 2001, 4ª ed.),
Mística islâmica (Vozes, 2000, 3ª ed.) e
A inteligência da fé (Nova Era, 2006).

Prefácio

Como o título deste livro indica, nossa intenção é menos descrever o islã do que explicar porque os muçulmanos nele acreditam, se é permitido exprimir-se assim. As páginas que seguem pressupõem, por conseqüência, algumas noções elementares da religião islâmica por parte do leitor, as quais ele encontrará sem dificuldade em outras obras.

O que temos em vista, neste livro como nos precedentes, é no final das contas a scientia sacra ou a philosophia perennis, a gnose universal que sempre foi e que sempre será. Poucos discursos são tão ingratos como as queixas convencionais sobre as "buscas" jamais satisfeitas do "espírito humano". Na realidade, tudo já foi dito, mas falta muito para que tudo tenha sido compreendido por todos. Está fora de questão, portanto, apresentar "novas verdades"; em compensação, o que se impõe em nossa época, e mesmo em toda época afastada das origens, é fornecer chaves renovadas - mais diferenciadas e mais reflexivas do que as antigas, mas não melhores - para ajudar a redescobrir verdades que estão inscritas, numa escritura eterna, na própria substância do espírito do homem.
Assim como em nossas obras anteriores, não nos restringimos neste livro a um programa exclusivo; nas páginas que seguem, encontram-se, portanto, um certo número de digressões que parecem sair dos limites de nosso tema, mas que nós nem por isto julgamos menos indispensáveis em seu contexto. A razão de ser das expressões ou das formas é a verdade, e não o inverso. A verdade é simultaneamente única e infinita, daí a diversidade perfeitamente homogênea de sua linguagem.

Este livro dirige-se em primeiro lugar a leitores ocidentais, em razão de sua linguagem e de sua dialética, mas não duvidamos que leitores orientais de formação ocidental - e tendo, talvez, perdido de vista o caráter sólido da fé em Deus e da tradição - possam igualmente dele tirar proveito e compreender, em todo caso, que a tradição não é uma mitologia pueril e superada, mas uma ciência terrivelmente real.

F.S.

CAPÍTULO 1

O islã

O islã é o encontro entre Deus como tal e o homem como tal.
Deus como tal: isto é, Deus encarado não da maneira como se manifestou em determinada época, mas independentemente da história e na medida em que Ele é o que é, portanto, Ele enquanto cria e revela segundo Sua natureza.

O homem como tal: isto é, encarado não como ser decaído necessitado de um milagre salvador, mas como criatura deiforme dotada de uma inteligência capaz de conceber o absoluto e de uma vontade apta a escolher o que leva ao absoluto.

Dizer "Deus" é dizer "ser", "criar", "revelar", ou, em outros termos: "realidade", "manifestação", "reintegração". E dizer "homem" é dizer "deiformidade", "inteligência transcendente", "vontade livre". São essas, ao nosso ver, as premissas da perspectiva islâmica, aquelas que explicam todos os seus modos de atuar e as quais é preciso nunca perder de vista se quisermos compreender qualquer aspecto do islã.

O homem se apresenta, a priori, como um duplo receptáculo feito para o absoluto; o islã vem preenchê-lo, antes de tudo, com a verdade do absoluto e, depois, com a lei do absoluto. O islã é, assim, essencialmente, uma verdade e uma lei - ou a Verdade e a Lei -, a primeira respondendo à inteligência e a segunda à vontade. É assim que o islã almeja abolir a incerteza e a hesitação, e a fortiori o erro e o pecado: o erro de que o absoluto não é, ou que ele é relativo, ou que há dois absolutos, ou ainda que o relativo é o absoluto; o pecado situa esses erros no plano da vontade ou da ação.

A idéia da predestinação, tão fortemente presente no islã, não abole a idéia da liberdade. O homem está submetido à predestinação porque ele não é Deus, mas é livre pois é "feito à imagem de Deus"; só Deus é absoluta liberdade, mas a liberdade humana, apesar de sua relatividade - no sentido do "relativamente absoluto" -, não é outra coisa que liberdade, como uma luz débil não é outra coisa do que luz. Negar a predestinação significaria pretender que Deus não conhece "antecipadamente" os acontecimentos, que Ele não é, pois, onisciente; quod absit.

Em resumo: o islã confronta o que há de imutável em Deus com o que há de permanente no homem. No cristianismo, o homem é, de início, vontade ou, mais precisamente, vontade corrompida; a inteligência que, com toda a evidência, não é negada, não é tomada em consideração a não ser a título de aspecto da vontade; o homem é a vontade e esta, no homem, é a inteligência. Quando a vontade é corrompida, a inteligência também o é, no sentido de que a inteligência não poderia de nenhuma maneira corrigir a vontade; é preciso, por conseqüência, uma intervenção divina: o sacramento. No islã, em que o homem é inteligência e onde esta existe "antes" da vontade, é o conteúdo ou a direção da inteligência que possui eficácia sacramental: é salvo quem admite que o absoluto transcendente é o único absoluto e transcendente, e que tira disso as conseqüências volitivas. O Testemunho de Fé - a Shahâdah - determina a inteligência, e a Lei em geral - a Sharî'ah - determina a vontade; no esoterismo - a Tarîqah -, há as graças iniciáticas, as quais possuem o valor de chaves e fazem somente realizar nossa "natureza sobrenatural". Uma vez mais, nossa salvação, sua textura e seu processo são prefigurados por nossa deiformidade: porque somos inteligência transcendente e vontade livre, é esta inteligência e esta vontade, ou a transcendência e a liberdade, que nos salvarão. Deus apenas enche novamente as taças que o homem esvaziou, mas não destruiu; o homem não tem o poder de destruí-las.

Do mesmo modo: somente o homem é dotado da palavra, pois só ele, entre todas as criaturas terrestres, é "feito à imagem de Deus" de uma maneira direta e integral. Ora, se é esta deiformidade que opera, graças a um impulso divino, a salvação ou a liberação, a palavra terá aí sua parte da mesma maneira que a inteligência e a vontade. Estas são, com efeito, atualizadas pela oração, que é simultaneamente palavra divina e humana, o ato3 referindo-se à vontade e o conteúdo à inteligência; a palavra é como o corpo imaterial e não obstante sensível de nosso querer e de nosso compreender. No islã, nada é mais importante do que a oração canônica (Çalât) dirigida à Caaba, e a "menção de Deus" (dhikru 'Llâh) dirigida ao coração; a palavra do sufi repete-se na prece universal da humanidade, e mesmo na prece, muitas vezes inarticulada, de todos os seres.

A originalidade do islã não é ter descoberto a função salvadora da inteligência, da vontade e da palavra - pois esta função é evidente e toda religião a conhece -, mas ter feito dela, no quadro do monoteísmo semítico, o ponto de partida de uma perspectiva de salvação e de liberação. A inteligência se identifica com seu conteúdo salvador, ela não é outra que o conhecimento da unidade - ou do absoluto - e da dependência de todas as coisas em relação ao um. Da mesma maneira, a vontade é al-islâm, isto é, a conformidade ao que Deus - o absoluto - quer com respeito à nossa existência terrestre e nossa possibilidade espiritual, de uma parte, e com respeito ao homem como tal e ao homem coletivo, de outra; a palavra é a comunicação com Deus, ela é essencialmente prece e invocação. Visto desse ângulo, o islã lembra ao homem menos o que ele deve saber, fazer e dizer, do que o que são, por definição, a inteligência, a vontade e a palavra: a revelação não acrescenta elementos novos, mas ela desvenda a natureza profunda do receptáculo.
 

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