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16/07/2006
-
04h15
da Folha de S.Paulo
Para Luiz Felipe de Alencastro, o debate sobre a introdução de cotas está chegando tarde ao Brasil. Signatário do manifesto a favor das ações afirmativas, o professor titular de história do Brasil na Universidade de Paris-Sorbonne e autor de "O Trato dos Viventes" (Companhia das Letras) não acha que a universalização e qualificação do ensino sejam suficientes para mudar injustiças históricas.
Em entrevista à Folha, defende as práticas adotadas nos EUA, que teriam permitido o acesso dos negros a posições de destaque na sociedade.
Folha - O sr. é a favor da adoção de cotas?
Luiz Felipe de Alencastro - Sou, assinei o manifesto na versão modificada. A primeira versão falava de genocídio. E, como historiador, é inaceitável falar isso. Houve genocídio de populações ameríndia, indígena, enquanto a questão do tráfico negreiro eram empresas mercantis cujo objetivo não era extinção nem de etnias nem de grupos.
Folha - A adoção do sistema de cotas não introduz um conflito e uma tensão que não existem atualmente?
Alencastro - A tensão existe o tempo todo. Se você pegar as vítimas da polícia nos ataques recentes em São Paulo [15/5], eram jovens e negros. O conflito existe o tempo todo e está feito. A idéia de que se vai criar um conflito onde não existe é a mesma idéia de quando ocorreu a introdução do voto feminino, o voto das mulheres iria dividir as famílias. A tensão existe, está lá. Os signatários do manifesto contra as cotas passam a vida viajando para os Estados Unidos, onde encontram negros o tempo todo na sala de aula, que não estão nas salas de aula deles, numa população negra que é muito maior. Acho que a divisão já existe, está escrita na nossa sociedade.
Folha - Essa divisão que o sr. citou é entre brancos e negros ou entre elite e marginalizados?
Alencastro - Ela é a reprodução do sistema. A Igreja Católica está há 500 anos no Brasil evangelizando todo mundo, todos são filhos de Deus. Mas aí você vai olhar o número de padres e só tem mil padres negros para 12 mil padres brasileiros. No comando do Exército e no Itamaraty isso se reproduz e já causou problemas nas representações brasileiras na África. Sobre o argumento de que isso é imitar coisas americanas, não há só defeitos nos EUA. Que eu saiba, o habeas corpus e o federalismo não são heranças nem do direito português nem dos costumes tupiniquins.
Foram copiados diretamente do sistema americano e funcionam muito bem no Brasil. Além disso, o Brasil e os EUA são as únicas sociedades em que a escravidão esteve embutida na organização do Estado nacional, são os únicos países que modernizaram a escravidão colonial.
A Folha [em 5/7/2006] fala em seu editorial por que não [ação afirmativa] para os homossexuais, os judeus? Porque nem os judeus tiveram escravidão no Brasil, e os bissexuais não sofrem discriminação hereditária. Os negros têm esse duplo "handicap".
Folha - O fato de as pessoas precisarem declarar sua raça e sua cor não é um retrocesso? Isso está ocorrendo inclusive nas escolas, com as crianças.
Alencastro - Desde o censo de 1980 isso existe. Bem, acho que as crianças terão a opção de dizer "não sei".
Folha - A idéia não é justamente despertar a consciência de raça?
Alencastro - Não acho que seja um absurdo você se habituar à alteridade, à diferença. A idéia de que todo negro tem que ser bom jogador de futebol e sambista também é um estereótipo. Isso de colocar a identificação sempre existiu no Brasil, até na carteira de identidade.
Folha - A universalização e a qualificação do ensino não seriam as ferramentas mais eficientes para mudar a porcentagem de negros nas universidades?
Alencastro - Os EUA, que são o país mais rico do mundo, acharam que não. Colin Powell [ex-secretário de Estado dos EUA] e Condoleeza Rice [atual secretária de Estado] subiram e alcançaram a posição em que estão agora graças a políticas afirmativas.
Hoje, nas universidades, não há mais o sistema que havia antes porque a Suprema Corte entendeu que o sistema de cotas era anticonstitucional. Mas há um sistema de pontuação que beneficia quem vem dos bairros desfavorecidos.
A educação pública é uma obrigação do Estado brasileiro. A proibição dos votos aos analfabetos, que durou até 1985, foi feita com o objetivo explícito de barrar a ascensão à cidadania aos ex-escravos. Já existia no Império mas foi consolidada na República. A maioria da população analfabeta adulta era negra. Essa gente esteve excluída da cidadania na maior parte do século 20.
"A divisão já existe, está escrita na nossa sociedade", diz Alencastro
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Para Luiz Felipe de Alencastro, o debate sobre a introdução de cotas está chegando tarde ao Brasil. Signatário do manifesto a favor das ações afirmativas, o professor titular de história do Brasil na Universidade de Paris-Sorbonne e autor de "O Trato dos Viventes" (Companhia das Letras) não acha que a universalização e qualificação do ensino sejam suficientes para mudar injustiças históricas.
Em entrevista à Folha, defende as práticas adotadas nos EUA, que teriam permitido o acesso dos negros a posições de destaque na sociedade.
Folha - O sr. é a favor da adoção de cotas?
Luiz Felipe de Alencastro - Sou, assinei o manifesto na versão modificada. A primeira versão falava de genocídio. E, como historiador, é inaceitável falar isso. Houve genocídio de populações ameríndia, indígena, enquanto a questão do tráfico negreiro eram empresas mercantis cujo objetivo não era extinção nem de etnias nem de grupos.
Folha - A adoção do sistema de cotas não introduz um conflito e uma tensão que não existem atualmente?
Alencastro - A tensão existe o tempo todo. Se você pegar as vítimas da polícia nos ataques recentes em São Paulo [15/5], eram jovens e negros. O conflito existe o tempo todo e está feito. A idéia de que se vai criar um conflito onde não existe é a mesma idéia de quando ocorreu a introdução do voto feminino, o voto das mulheres iria dividir as famílias. A tensão existe, está lá. Os signatários do manifesto contra as cotas passam a vida viajando para os Estados Unidos, onde encontram negros o tempo todo na sala de aula, que não estão nas salas de aula deles, numa população negra que é muito maior. Acho que a divisão já existe, está escrita na nossa sociedade.
Folha - Essa divisão que o sr. citou é entre brancos e negros ou entre elite e marginalizados?
Alencastro - Ela é a reprodução do sistema. A Igreja Católica está há 500 anos no Brasil evangelizando todo mundo, todos são filhos de Deus. Mas aí você vai olhar o número de padres e só tem mil padres negros para 12 mil padres brasileiros. No comando do Exército e no Itamaraty isso se reproduz e já causou problemas nas representações brasileiras na África. Sobre o argumento de que isso é imitar coisas americanas, não há só defeitos nos EUA. Que eu saiba, o habeas corpus e o federalismo não são heranças nem do direito português nem dos costumes tupiniquins.
Foram copiados diretamente do sistema americano e funcionam muito bem no Brasil. Além disso, o Brasil e os EUA são as únicas sociedades em que a escravidão esteve embutida na organização do Estado nacional, são os únicos países que modernizaram a escravidão colonial.
A Folha [em 5/7/2006] fala em seu editorial por que não [ação afirmativa] para os homossexuais, os judeus? Porque nem os judeus tiveram escravidão no Brasil, e os bissexuais não sofrem discriminação hereditária. Os negros têm esse duplo "handicap".
Folha - O fato de as pessoas precisarem declarar sua raça e sua cor não é um retrocesso? Isso está ocorrendo inclusive nas escolas, com as crianças.
Alencastro - Desde o censo de 1980 isso existe. Bem, acho que as crianças terão a opção de dizer "não sei".
Folha - A idéia não é justamente despertar a consciência de raça?
Alencastro - Não acho que seja um absurdo você se habituar à alteridade, à diferença. A idéia de que todo negro tem que ser bom jogador de futebol e sambista também é um estereótipo. Isso de colocar a identificação sempre existiu no Brasil, até na carteira de identidade.
Folha - A universalização e a qualificação do ensino não seriam as ferramentas mais eficientes para mudar a porcentagem de negros nas universidades?
Alencastro - Os EUA, que são o país mais rico do mundo, acharam que não. Colin Powell [ex-secretário de Estado dos EUA] e Condoleeza Rice [atual secretária de Estado] subiram e alcançaram a posição em que estão agora graças a políticas afirmativas.
Hoje, nas universidades, não há mais o sistema que havia antes porque a Suprema Corte entendeu que o sistema de cotas era anticonstitucional. Mas há um sistema de pontuação que beneficia quem vem dos bairros desfavorecidos.
A educação pública é uma obrigação do Estado brasileiro. A proibição dos votos aos analfabetos, que durou até 1985, foi feita com o objetivo explícito de barrar a ascensão à cidadania aos ex-escravos. Já existia no Império mas foi consolidada na República. A maioria da população analfabeta adulta era negra. Essa gente esteve excluída da cidadania na maior parte do século 20.
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