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01/11/2006
-
10h12
JOSÉ GERALDO COUTO
da Folha de S.Paulo
De acordo com a tradição, o imperador do Japão descende do deus sol e é, ele próprio, uma divindade. Quando os Estados Unidos bombardeiam Hiroshima e Nagasaki, o Japão arrasado sofre uma pressão insuportável para se render aos aliados.
Mas a condição divina do imperador Hirohito impede que ele capitule diante de um mortal. É no momento desse impasse, em agosto de 1945, que o cineasta russo Aleksandr Sokúrov concentra a ação de "O Sol".
Os últimos dias antes da rendição são filmados por Sokúrov de forma lenta e hierática, no labirinto subterrâneo que era o bunker de Hirohito (interpretado como uma máscara imóvel pelo excelente Issey Ogata).
Enquanto o mundo desaba lá fora, Hirohito continua a se comportar como um ser quase decorativo. Move-se com gestos engomados, litúrgicos, e precisa de um lacaio até para se vestir. Antes de se encontrar com o general McArthur (Robert Dawson), comandante das forças de ocupação, não abre mão de acompanhar num laboratório o andamento de uma pesquisa científica. É um homem de outro tempo, ou fora do tempo.
Na superfície, o filme de Sokúrov --fecho de uma trilogia do poder que inclui "Moloch" (sobre Hitler) e "Taurus" (sobre Lênin)-- remete a outra obra recente, "A Queda - Os Últimos Dias de Hitler", de Oliver Hirschbiegel. Mas na essência são filmes opostos.
Se há desespero e frenesi nas últimas horas de Hitler, o tom em "O Sol" é de tragédia lenta e muda, em que o sentido do drama parece deslocado, filtrado e silenciado pela liturgia do império do sol nascente.
Dois momentos são memoráveis: a cena em que, visando evitar mais sofrimento de seu povo, Hirohito renuncia à sua condição divina para poder assinar a rendição, e o diálogo entre o imperador e McArthur.
Contrastes
A mediação do intérprete, nessa reunião, seria tecnicamente dispensável, uma vez que Hirohito falava bem inglês, mas, do modo como está no filme, é essencial para pontuar a distância entre dois mundos: um império em ascensão, o outro no ocaso. É um contraste de figurinos, de gestos, de linguagem, como se de repente o cinema americano invadisse ruidosamente um filme contemplativo do Oriente.
A energia de McCarthur, sua conversa pragmática, transbordando de saúde e vulgaridade, amplificam a humilhação japonesa, tornando dolorosa, patética mesmo, a retidão doentia do imperador Hirohito.
Raras vezes o cinema soube captar em tão poucas cenas, em tão poucos gestos e palavras, um ponto de inflexão tão decisivo da história moderna. Ao ver "O Sol", percebemos de um modo profundo, sensorial, por que o Japão nunca mais seria o mesmo depois daquelas poucas horas. A ocidentalização chegava como um rolo compressor.
E Sokúrov, o russo que conta essa história nipo-americana, volta a colocar seu enorme talento para a composição plástica a serviço de uma idéia estética e ética, depois de alguns filmes em que a beleza do estilo se impunha a todo o resto.
Especial
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Sokúrov analisa a lenta e muda agonia de Hirohito em "O Sol"
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da Folha de S.Paulo
De acordo com a tradição, o imperador do Japão descende do deus sol e é, ele próprio, uma divindade. Quando os Estados Unidos bombardeiam Hiroshima e Nagasaki, o Japão arrasado sofre uma pressão insuportável para se render aos aliados.
Mas a condição divina do imperador Hirohito impede que ele capitule diante de um mortal. É no momento desse impasse, em agosto de 1945, que o cineasta russo Aleksandr Sokúrov concentra a ação de "O Sol".
Os últimos dias antes da rendição são filmados por Sokúrov de forma lenta e hierática, no labirinto subterrâneo que era o bunker de Hirohito (interpretado como uma máscara imóvel pelo excelente Issey Ogata).
Enquanto o mundo desaba lá fora, Hirohito continua a se comportar como um ser quase decorativo. Move-se com gestos engomados, litúrgicos, e precisa de um lacaio até para se vestir. Antes de se encontrar com o general McArthur (Robert Dawson), comandante das forças de ocupação, não abre mão de acompanhar num laboratório o andamento de uma pesquisa científica. É um homem de outro tempo, ou fora do tempo.
Na superfície, o filme de Sokúrov --fecho de uma trilogia do poder que inclui "Moloch" (sobre Hitler) e "Taurus" (sobre Lênin)-- remete a outra obra recente, "A Queda - Os Últimos Dias de Hitler", de Oliver Hirschbiegel. Mas na essência são filmes opostos.
Se há desespero e frenesi nas últimas horas de Hitler, o tom em "O Sol" é de tragédia lenta e muda, em que o sentido do drama parece deslocado, filtrado e silenciado pela liturgia do império do sol nascente.
Dois momentos são memoráveis: a cena em que, visando evitar mais sofrimento de seu povo, Hirohito renuncia à sua condição divina para poder assinar a rendição, e o diálogo entre o imperador e McArthur.
Contrastes
A mediação do intérprete, nessa reunião, seria tecnicamente dispensável, uma vez que Hirohito falava bem inglês, mas, do modo como está no filme, é essencial para pontuar a distância entre dois mundos: um império em ascensão, o outro no ocaso. É um contraste de figurinos, de gestos, de linguagem, como se de repente o cinema americano invadisse ruidosamente um filme contemplativo do Oriente.
A energia de McCarthur, sua conversa pragmática, transbordando de saúde e vulgaridade, amplificam a humilhação japonesa, tornando dolorosa, patética mesmo, a retidão doentia do imperador Hirohito.
Raras vezes o cinema soube captar em tão poucas cenas, em tão poucos gestos e palavras, um ponto de inflexão tão decisivo da história moderna. Ao ver "O Sol", percebemos de um modo profundo, sensorial, por que o Japão nunca mais seria o mesmo depois daquelas poucas horas. A ocidentalização chegava como um rolo compressor.
E Sokúrov, o russo que conta essa história nipo-americana, volta a colocar seu enorme talento para a composição plástica a serviço de uma idéia estética e ética, depois de alguns filmes em que a beleza do estilo se impunha a todo o resto.
Especial
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