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08/01/2010 - 09h37

José Luís Peixoto percorre do amor em estado bruto à morte; leia trecho

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da Folha Online

Amor, tempo e morte. A tríade é uma das favoritas do escritor português José Luís Peixoto em seus textos. No romance "Cemitério de Pianos", finalista do Prêmio Portugal Telecom 2009, Peixoto apresenta uma família e um tempo em decomposição. Por meio de constantes passagens temporais, os segredos e as estranhas repetições de fatos, amores e desgostos de geração em geração são revelados.

Em "Uma Casa na Escuridão", recentemente lançado pela editora Record, a narrativa em primeira pessoa denuncia um personagem inquieto com a condição humana. O escritor inicia o volume com a citação "Misericordia tua magna est super me" ("A tua misericórdia é grande sobre mim", em tradução livre). Nesta passagem, Davi refere-se a Deus que livrou sua alma duas vezes --uma em vida e outra em morte-- de dois infernos --o superior e o inferior. Todos os sete capítulos do livro são iniciados por salmos, nos quais o homem coloca sua condição à prova da condenação ou da redenção divina.

O "turning point" da história dá-se com a chegada de bárbaros com vestes de ferro à casa onde todos os personagens coexistiam em um breu solitário. Alguns deles são grafados em minúscula, o que indica, de certa forma, que estão diluídos na trama. São eles: o príncipe de calicatri, a escrava miriam e o visconde de dedodida.

O autor criou a palavra "calicatri" por conta de sua sonoridade. O que é? Ele tem quase certeza de que o termo possa ser um lugar, uma pessoa, uma música, uma folha de outono, um calendário, um poço ou um espelho, mas acredita mesmo ser um segredo. Peixoto, que diz gostar de romances com mecanismos, utiliza nesse uma engrenagem escrita que perpassa do amor em estado bruto à morte.

Leia abaixo um trecho do capítulo inicial de "Uma Casa na Escuridão".

*

O Amor

Divulgação
Volume trata da condição humana como alegoria em meio à barbárie
Volume trata da condição humana como alegoria em meio à barbárie

ERA UMA VEZ O FIM DE TARDE. Era um setembro entre os setembros da minha vida. Estava sentado na varanda, na cadeira de baloiço, a ler um livro de páginas amarelecidas pela última luz. Baloiçava-me muito devagar, como se tivesse adormecido a baloiçar-me e as pernas continuassem mecânicas a fincar-se no chão e a elevar-me lentamente. Na outra ponta da varanda, diante da porta da cozinha, a minha mãe estava sentada no cadeirão grande. A escrava miriam tinha acabado de lhe dar banho e de a pentear. Os gatos estavam deitados em pequenos montes a respirar no chão. Às vezes, levantava-se algum e, muito altivo, passava o corpo nas pernas da minha mãe, ou nas pernas da escrava miriam, ou nas minhas pernas. Ao ser penteada, a minha mãe tinha fechado os olhos. Tinha os cabelos estendidos nas costas do cadeirão, tinha a carne amolecida pela água, tinha a pele corada. Sem que os passos dos seus pequenos pés se ouvissem, a escrava miriam passou para a frente da minha mãe e baixou-se. Tirou do bolso do avental uma tesoura, segurou um dos pés da minha mãe no colo e começou a cortar-lhe as unhas. Levantei o olhar do livro para a ver. Entre os seus dedos finos, o pé gordo da minha mãe era um objecto grotesco. Voltei ao livro e senti as palavras fugirem-me diante do olhar. As palavras, nervosas, agitavam-se como se quisessem sair da página e desaparecer numa liberdade de palavras evadidas no céu. Baixei o livro e olhei para a frente. A montanha diante de mim, a paisagem toda, os últimos pássaros, o jardim e as ervas, tudo continuava na mesma. Fechei o livro com um dedo a marcar a página e vi que era o livro inteiro que tremia. Aquele livro estivera, durante anos, na biblioteca. A sua lombada azul estivera na segunda prateleira, logo em frente da porta, durante anos. A sua lombada azul estivera durante anos entre livros de lombadas vermelhas. Quando eu era pequeno e brincava com os meus carrinhos, arrastava-os pelas prateleiras, que eram auto-estradas, e dos livros, que eram casas altas, aquele livro de lombada azul era sempre a minha casa. Eu segurava o meu carrinho entre o indicador e o polegar e levava-o até à minha casa que era aquele livro de lombada azul, estacionava ao lado das outras casas vermelhas e, na minha imaginação, entrava em casa, ficava a dormir numa noite que passava em segundos e voltava a entrar no meu carrinho e voltava a conduzi-lo pelas auto-estradas das prateleiras. Era esse livro que tremia na minha mão. Por um instante, temi uma revolução das palavras, mas, ao afastar o livro, reparei que era a minha mão que tremia. Era a minha mão direita que tremia. Desconfortável, fiquei um momento a olhar a minha mão a tremer como se não fosse minha, como se fosse a mão de outra pessoa. Fiquei a olhá-la sem conseguir pará-la. A partir desse dia, e durante todos os dias que vieram a seguir, a minha mão direita começava a tremer à hora de o sol se pôr e ficava a tremer durante toda a noite.

Nunca soube por que escrevia. Quando escrevia, sentava-me à escrivaninha, puxava uma folha branca, procurava a minha esferográfica e encontrava, uma a uma, as palavras. Durante anos, habituei-me a ver o meu pai cumprir o mesmo ritual. O meu pai escrevia sonetos. Depois do jantar, todos os dias, sentava-se à escrivaninha, acendia o cachimbo e começava a escrever e a riscar, a escrever e a riscar, a escrever, a ler em silêncio, a meditar, a riscar e a escrever. A minha mãe sentava-se a bordar. Ao fim do serão, o meu pai tinha um soneto pronto e íamos dormir. Quando alguém vinha jantar cá a casa, saíamos da sala de jantar para o salão. As senhoras tossiam baixinho e o meu pai lia alguns sonetos. No fim todos batiam palmas que não se ouviam. As senhoras viravam a cabeça umas para as outras. Os senhores diziam muito bem e davam um aperto de mão ao meu pai. Quando fiz dezasseis anos, o meu pai ofereceu-me a esferográfica com que escrevi o meu primeiro conto, a minha primeira novela, o meu primeiro romance. Tudo o que fez de mim um escritor foi escrito com aquela esferográfica. A mesma que, exactamente dez anos depois de me ter sido oferecida, havia de lançar para o lume até vê-la não ser nada, nem uma brasa a esvair-se, nem um monte de cinza com a forma de esferográfica.

Naquela noite, durante todo o jantar, a escrava miriam entrou e saiu a trazer e a levar travessas cheias e vazias que a minha mãe comia, como se todas fossem a primeira. A minha mãe com molho a escorrer-lhe pelo queixo. A minha mãe, que antes só comia de garfo e faca, enchia a boca de pedacinhos cortados de lombo e arroz com uma colher. Comíamos lombo e arroz todos os dias. Todos os dias a minha mãe tinha molho a escorrer-lhe pelo queixo. Quando começámos a comer lombo e arroz todos os dias, quando a minha mãe deixou de comer de garfo e faca, tentei acompanhá-la. Tentava talvez que ela reparasse em mim. Queria talvez que ela olhasse para mim. Durante algum tempo, tentei comer a mesma quantidade de comida e repetir no mesmo momento. A escrava miriam entrava para pôr lombo e arroz no prato da minha mãe e punha também no meu. Nesses dias, ficava muito cheio. A comida enchia-me todo. Tinha lombo e arroz nos braços, nas pernas, no corpo todo. Sentia que o meu sangue era feito de molho e que o meu coração era feito de lombo e arroz. Os meus pulmões eram feitos de lombo e arroz porque eu respirava lombo e arroz. Um dia, depois do jantar, sentado à escrivaninha, vomitei sobre três páginas de um conto que tinha começado a escrever. Nunca acabei de escrever esse conto e desisti de acompanhar a minha mãe. De qualquer modo, aquelas semanas de esforço não tinham tido qualquer efeito: a minha mãe não reparava em mim e, quando olhava na minha direcção, fazia-o com olhos cegos, olhos grandes de água que não viam o sítio para onde olhavam. Voltei a comer normalmente, de garfo e faca, e desisti da minha mãe. Naquela noite, fiquei sentado, de guardanapo no colo, com o prato vazio, a olhar a mão direita a tremer. Na mesa, travessas rachadas, talheres velhos e gastos por muitos anos, pratos partidos por avós de avós. Levantei-me quando a minha mãe se levantou. Naquela noite, não me sentei à escrivaninha. A mão não parava de tremer e, dentro de mim, tremia uma preocupação. Fiquei na sala. Nessa altura, a maior amiga da minha mãe era a dona do palácio de siliae. Parado, ouvi-as a falarem ao telefone. A voz da minha mãe era um som distorcido pelos corredores e que me parecia uma memória ou qualquer coisa vaga e impessoal. Não percebia realmente o que ela dizia porque não me interessava. No entanto, ouvia-a, pois era o único ruído que se podia ouvir em toda a casa. Antes de a minha mãe discutir com a dona do palácio de siliae e de lhe chamar cabra e de a expulsar a pontapé pelas escadas abaixo, era costume ela vir cá e ficar a sussurrar um bule de chá com a minha mãe. Ela tinha uma escrava, creio que se chamava maria, que tinha um rosto doce e maternal. Tinha um rosto que confortava, um rosto que dizia pronto, pronto, já passou, um rosto que fazia festas só de se olhar para ele. Assim que a minha mãe e a dona do palácio de siliae se fechavam nos seus murmúrios, eu procurava a escrava maria e ficava horas escondido a admirar-lhe tanta ternura. No dia em que a minha mãe discutiu com a dona do palácio de siliae, e lhe chamou cabra, e a expulsou a pontapé pelas escadas abaixo, senti que era o fim de uma fase da minha vida.

Sem conseguir escrever, sem conseguir pensar, sem ânimo, fui para a cama. Vesti o pijama e enfiei-me debaixo do peso dos cobertores e dos lençóis. Ainda que fosse demasiado cedo para ter sono, queria obrigar-me a dormir. A mão entre os lençóis tremia. O último livro que tinha escrito deixara-me exausto. Um romance que tinha um pai e um filho que morriam, que tinha dois irmãos siameses que morriam, que tinha um homem muito velho que morria. Um romance que tinha sido obsessivamente a minha vida durante um ano. Um romance onde as palavras eram tudo aquilo em que eu acreditava. Cheguei a pensar que tivesse sido essa a causa dos tremores na mão. Escrevia sempre com a esferográfica que o meu pai me dera. Escrevia sempre com a mão direita. A minha mão direita tem uma história. Quando era pequeno, a escrava madalena, mãe da escrava miriam, apercebeu-se de que eu fazia tudo com a mão esquerda. Disse à minha mãe, a minha mãe disse ao meu pai, e o meu pai mandou a escrava madalena atar-me a mão esquerda numa bolsa atrás das costas. Andei dois meses com a mão atada, a fazer tudo com a direita. Quando me desataram a mão, numa cerimônia que teve a presença de toda a família, até dos primos do estrangeiro, nunca mais consegui fazer nada com a esquerda. Passei a ser um menino normal. Creio que cheguei a lembrar-me disto quando estava deitado sem conseguir dormir. Dava voltas na cama. Virava-me para um lado e depois para outro, virava-me de costas para cima e depois de barriga para cima e depois de lado, virava-me e não estava bem em posição nenhuma. Os lençóis, que tinham sido frescos, transformaram-se numa pasta morna colada à pele, um incómodo viscoso e espesso. Então, fechei os olhos com força e fixei-me no que via. Esta era uma das coisas que fazia desde pequeno, que tinha descoberto por acaso e que imaginava ser eu a única pessoa a fazer no mundo. Fechava os olhos e via. Via o que se vê com os olhos fechados. Via o negro dentro de mim e via os pontos de luz que o quebram, as vagas de luz, as figuras abstractas de luz, os vultos de luz, as sombras de luz dentro da luz do negro dentro de mim. Isto é o que se vê quando fechamos os olhos e continuamos a ver: a cor negra e os pequenos seres de luz que a habitam. E não se consegue olhar fixamente nem para o negro, nem para a luz. Os pontos ou as linhas ou as figuras de luz fogem da atenção. O negro é tão absoluto, tão profundo e tão infinito que o olhar avança por ele sem encontrar um lugar onde possa deter-se. Mas, naquela noite, comecei a distinguir algo dentro desse negro. Lentamente, devagar, um a um, os pequenos pontos luminosos deslizaram no negro e, pela primeira vez, vi que tinham uma direcção. Lentamente aproximaram-se uns dos outros numa harmonia que existia ainda sem lógica. Depois, lentamente, tudo muito lentamente, os pontos de luz formaram cordões de luz que eram linhas de luz sobre o negro. Depois, começou a surgir cada contorno de um rosto e de um corpo. Muito lentamente, muito devagar, um a um, começaram a surgir os traços do rosto mais lindo que alguma vez tinha visto e do corpo mais lindo que alguma vez tinha visto. Era um corpo de luz sobre o negro. Era uma mulher. Olhei-a até ser completa. Olhei-a até ter a certeza de que nunca, nunca iria ver uma mulher mais bonita na vida. Deslumbrante. E, mesmo depois dessa certeza, continuei a olhá-la. Ela olhava-me também. Tímida, sem saber talvez se podia sorrir. E a pele, que não podia tocar, era a pele de uma noiva pura que apetece beijar e não se pode, a pele impossível de uma noiva a caminhar para o altar com flores nos cabelos. As mãos eram toda a ternura e toda a elegância do mundo, se houvesse mundo suficiente para tanta ternura e tanta elegância. Tinha um vestido leve, que era um pano branco a moldar-lhe o corpo. Tinha uns lábios finos. Tinha uns cabelos longos de mulher. Quando abri os olhos e me levantei da cama, tinha aquele milagre vivo dentro de mim. Descalço, despenteado, em pijama, atravessei a casa. Sentei-me à escrivaninha. Com a mão a tremer, segurei na esferográfica. E, assim que pousei a ponta da esferográfica sobre a folha de papel, a mão parou de tremer. Comecei a escrever as primeiras palavras daquele que, imaginava com uma certeza infinita, iria ser o meu melhor livro. Tinha vinte e cinco anos, seis meses e dezanove dias.

Escrevi até o princípio da manhã aparecer na janela. O sol a iluminar os olhos dos gatos espalhados na sala, sentados, deitados de olhos abertos. O sol a iluminar o sofá grande, o vermelho ruço debaixo de uma cobertura de pêlo dos gatos. O sol a chegar à escrivaninha e a ser dia nas folhas brancas. Escrevi duas páginas. Descrevi-lhe o rosto, os olhos, os lábios, a pele, os cabelos. Descrevi-lhe o corpo, os seios sob o vestido, o ventre sob o vestido, as pernas. Descrevi-lhe o silêncio. E, quando me parecia que as palavras eram poucas para tanta e tanta beleza, fechava os olhos e parava-me a olhá-la. Ao seu esplendor seguia-se a vontade de a descrever e, de cada vez que repetia este exercício, conseguia escrever duas palavras ou, no máximo, uma frase. Quando a manhã apareceu na janela, levantei-me e voltei para a cama. Adormeci a olhá-la. Adormeci com ela dentro de mim.

Nunca me tinha apaixonado verdadeiramente. A partir dos dezasseis anos, conheci muitas mulheres, senti algo por todas. Quando lhes lia no rosto um olhar diferente, demorado, deixava-me impressionar e, durante algumas semanas, achava que estava apaixonado e que as amava. Mas depois, o tempo. Sempre o tempo como uma brisa. Uma aragem suave, mas definitiva, a empurrar-me os sentimentos, a deixá-los lá ao fundo e a mostrar-me na distância que eram pequenos, muito pequenos e sem valor. E sempre só a solidão. Sempre. Eu sozinho, a viver. Sozinho, a ver coisas que não iriam repetir-se; sozinho, a ver a vida gastar-se na erosão da minha memória. Sozinho, com pena de mim próprio, ridículo, mas a sofrer mesmo. Nunca me tinha apaixonado verdadeiramente. Muitas vezes disse amo-te, mas arrependi-me sempre. Arrependi-me sempre das palavras.

*

"Uma Casa na Escuridão"
Autor: José Luís Peixoto
Editora: Record
Páginas: 304
Quanto: R$ 42,90
Onde comprar: 0800-140090 ou na Livraria da Folha

 

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