Livraria da Folha

 
31/03/2010 - 08h19

HQ mostra busca de menino por quilombo paradisíaco; leia entrevista com autor

GUILHERME SOLARI
colaboração para a Livraria da Folha

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"O Quilombo Orum Aiê" é uma HQ do quadrinista André Diniz que conta a história de um jovem escravo chamado Capivara que sai em busca de um quilombo lendário, onde seu pai está vivendo.

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HQ traz visual inspirado na estética africana e roteiro cuidadoso
HQ traz visual inspirado na estética africana e roteiro cuidadoso

No Quilombo Orum Aiê não há guerras ou desavenças e todos vivem por muitos anos com perfeita saúde. Dinheiro, leis e governantes lá não tem vez: são inúteis a um povo que vibra na mais pura harmonia. Para que leis, se lá todos se respeitam? Fazer o que com dinheiro em um lugar onde tudo é de todos?

E em sua jornada a esse quilombo idílico, Capivara se junta a outros personagens em uma narrativa que apresenta temas como a natureza real da sabedoria e a busca pela felicidade e pelo amor.

Diniz cria com detalhes a Salvador de 1835, transmitindo a sensação de uma cidade viva. Ele retrata diferenças poucas vezes encontradas em uma obra que tem a escravidão como pano de fundo, como as diferenças entre escravos recém-chegados, escravos urbanos ou do campo, de diferentes etnias e falando diferentes idiomas.

O traço do autor é bem característico, fortemente influenciado pela estética da arte africana, o que ajuda o leitor a entrar em um mundo novo, mas ao mesmo tempo reconhecível. E se obras nas quais o mundo é visto pelas lentes de uma criança são relativamente comuns, é interessante ver como seriam essas lentes em um garoto de origem africana.

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Apesar do visual inovador, um dos pontos mais fortes de "Quilombo Orum Aiê" é o roteiro e a criação dos personagens, que o diferencia dos quadrinhos educativos sobre a história do Brasil. André Diniz foge de qualquer caracterização já pronta de escravos oprimidos e brancos opressores, dando dimensões diversas aos seus personagens. Diálogos afiados que fazem com que o leitor se esqueça que está lendo uma história, mas sinta estar assistindo pessoas conversando.

O próprio Capivara é um exemplo disso. Dono de uma sabedoria inata, se aproxima instintivamente de temas abordados por grandes pensadores da humanidade mesmo sendo analfabeto. Junto a ele seguem o recém-chegado Abul, forte negro iorubá de coração bom que não fala português, a jovem Sinhana, escrava questionadora e de personalidade forte, e Antero, um branco ex-prisioneiro de passado incerto, que possui grande erudição, mas parece sempre esconder segredos.

Veja abaixo a entrevista que André Diniz concedeu à Livraria da Folha, na qual foi discutido o seu processo de criação a pesquisa histórica e o atual estado do mercado de quadrinhos no Brasil.

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Livraria da Folha - De onde veio a ideia da HQ?

André Diniz - Eu sempre me interessei por pegar períodos históricos e criar uma narrativa por cima. Quando fazia produções independentes, que eu chamava de meu "perde-pão" porque eu só gastava e não ganhava nada [risos], eu já gostava de fazer isso. Agora, em particular com o tema da escravidão, o que me motivou muito foi mudar aquela visão única que encontramos dos escravos na ficção brasileira, quase sempre falando português e retratado como um conquistado estereotipado. A realidade é muito mais complexa, com muitas etnias, algumas que já tinham histórias entre si, idiomas diferentes, uma forte influência do islamismo e diversos tipos de escravos, os urbanos, os rurais...

Livraria da Folha - Como foi a pesquisa histórica e das referências visuais e culturais, como lendas africanas?

Diniz - Ah, eu usei uns 20 livros de referência, mais ou menos. Foi um processo mesmo de sentar e ler, ler e ler. Quanto à parte visual, a estilização a arte africana sempre foi uma paixão minha, e é algo que se incorporou ao meu traço mesmo quando abordo outros temas. Foi algo também muito pesquisado em diversos livros e tem influências não só de máscaras como das estatuetas africanas, que eu gosto muito. Um lugar que foi bem importante também nesse aspecto foi o Museu da Cultura Afro Brasileira, em São Paulo.

Livraria da Folha - A história traz dois personagens que criam uma tensão marcante na narrativa: o garoto escravo Capivara, que mesmo sem saber ler tem uma sabedoria inata, e o branco Antero, que possui grande erudição, mas tem rompantes de violência. Por que a escolha de personagens tão particulares para o período?

Diniz - Esse foi o ponto de partida para criar um personagem escravo que fugisse ao estereótipo de escravo. O Capivara não só tem ideias filosóficas como ainda por cima é vegetariano, daí o apelido dele, porque só come capim. Algo bem absurdo para o século 19 e quase inconcebível pra um escravo do século 19. Quando estava começando a criar a história eu tentava ser vegetariano, fiquei um ano inteiro sem comer carne [risos]. Mas por mais que fosse um traço aparentemente sem sentindo, é um traço que até poderia caber em um filósofo nato, afinal muitos filósofos ao longo da história foram vegetarianos. E achei que o Antero seria uma contrapartida interessante para o Capivara, por possuir um grande conhecimento, mas um conhecimento que ele não necessariamente aplica na sua vida.

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Livraria da Folha - Que dificuldades você encontra para criar quadrinhos autorais no Brasil?

Diniz - Olha, não é o ideal, mas perto do que foi há uns 8, 10 anos, hoje o mercado é um paraíso. Na verdade, antes de editoras, mercado, o principal obstáculo pra mim é o tempo. Porque criar uma história em quadrinhos demora muito e você precisa aprender a integrar o projeto à sua rotina, se organizando e sabendo utilizar o tempo. Nem que seja pra acordar às 5h pra já começar a trabalhar.

Sobre essa maior abertura no mercado, eu acho que o público de quadrinhos cresceu e se diversificou muito. Perdeu-se aquela ideia preconcebida que quadrinho era algo menor e o formato está sendo mais valorizado. Antes, os quadrinhos eram só para aficcionados que compravam títulos importados e caros em lojinhas escondidas e o público em geral só entrava em contato com quadrinhos em gibis ou revistas de super-heróis nas bancas. Hoje, eu percebo que muitos leitores de algumas das minhas histórias não são desse público cativo de quadrinhos. Se vão se tornar, eu não sei, mas antes eles nem entrariam em contato com esse universo.

Livraria da Folha - Você acha que a internet teve um papel importante nessa difusão dos quadrinhos?

Diniz - Sem dúvida nenhuma. Com a internet ficou mais fácil para os leitores conhecerem novas HQs, mas também foi muito importante para os autores, porque facilitou a troca de ideias entre os quadrinistas. E hoje também é possível acompanhar o que é feito fora do país. Eu acho que toda essa troca de informações, mais do que apenas divulgar, acaba tornando mais madura a produção nacional de quadrinhos no Brasil.

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"Quilombo Orum Aiê"
Autor: André Diniz
Editora: Galera Record
Páginas: 112
Quanto: R$ 32,90
Onde comprar: Pelo telefone 0800-140090 ou pelo site da Livraria da Folha

 
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