Livraria da Folha

 
27/05/2010 - 22h21

Amigos de Noel Rosa foram acusados de se promover à custa do compositor

da Livraria da Folha

A carreira do compositor carioca Noel de Medeiros Rosa foi curta, o "filósofo do samba" morreu aos 26 anos, em 1937. Pouco mais de uma década depois, a rádio Tupi do Rio de Janeiro transmitia a série "No Tempo de Noel Rosa". Os críticos insinuavam que o programa existia para promover o radialista e os amigos do falecido.

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Divulgação
Livro convida os leitores a saborear as melodias que marcaram época
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As insinuações causaram um grande desconforto aos colegas do músico, que se defenderam afirmando que estavam preservando a memória.

A música é capaz de manter e transmitir diversas informações sobre a cultura. O livro "História e Música no Brasil" (Alameda, 2010) reúne artigos de historiadores e musicólogos sobre a história da música na cultura brasileira.

Com CD de áudio incluso, o volume revela alguns estudos deste diversificado universo. Da música religiosa e dos grupos étnicos no período colonial da corte joanina aos sambas patrioteiros dos anos 1930 e os arranjos "jazzificados" dos salões paulistanos dos anos pós-guerra, os textos analisam diferentes épocas da "história da MPB".

Leia um trecho do artigo escrito por José Geraldo Vinci de Moraes, professor do departamento de história da USP, sobre o programa da rádio Tupi e as acusações de autopromoção.

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Abertura - (§)

Todas as sextas-feiras, entre abril e agosto de 1951, o locutor da rádio Tupi do Rio de Janeiro anunciava às 21h00 o início de um dos programas da série No tempo de Noel Rosa. Imediatamente a orquestra da emissora, regida pelo maestro Carioca, tocava os primeiros acordes de Palpite Infeliz, iniciando a transmissão. A orquestra acompanhava a locução introdutória e lentamente fazia a passagem para outra composição de Noel - Com que roupa? - que cantada em coro servia para apresentar o patrocinador da série, as Casas Barki, conhecida loja de tecidos da Capital. Almirante, idealizador e produtor da série, contava com a presença permanente de Aracy de Almeida e, eventualmente, de Hélio Rosa, sempre anunciados de modo esfuziante. Aracy havia convivido com Noel e era uma das intérpretes preferidas do compositor. Já seu irmão estava ali para tocar o "instrumento-relíquia [o violão usado por Noel!] da mesma maneira como seu dono acompanhava seus próprios sambas". Almirante, na abertura do primeiro programa da série, anunciou seu papel com a voz carregada e grave: "Eu posso dizer cheio de ufania: eu fui amigo de Noel Rosa. Noel Rosa começou sua vida artística comigo". A dupla reunida ao lado do radialista era, portanto, um verdadeiro reencontro de amigos, parentes e parceiros de Noel. Significava também a restauração por meio de seus próprios agentes do "glorioso passado" musical e cultural carioca. Todo este ambiente assegurava ao público ouvinte que as composições seriam interpretadas por Aracy e tocadas pelo irmão ao violão-relíquia, de maneira exata e de acordo com desejos do "filósofo do samba".

Na segunda sexta-feira de maio o corriqueiro encontro semanal registrou certo mal-estar logo no início. Criticado por alguns que insinuavam que o programa pouco falava de Noel e que o radialista e seus colegas estariam na verdade se auto-promovendo à custa do compositor de Vila Isabel, Almirante afirmou em tom de resposta: "não estamos aqui falando de nós; quando nos incluímos nestas evocações é porque na verdade estamos envolvidos nos episódios ligados à vida do filósofo do samba". Para refutar as insinuações ele destacou a importância da memória daqueles que haviam convivido com o compositor e a converteu na fonte mais respeitada para tratar de Noel e seu passado. Baseado neste argumento, ele deu sequência à resposta e anunciou que quase uma centena de composições do sambista terá sido apresentada no final da série. Logo depois deste registro, o programa deste dia 11.05 evoluiu naturalmente de acordo com o roteiro estabelecido: foram contadas histórias da vida cultural da capital da República, falou-se sobre a festa da Penha e do bando dos Tangarás, sempre criando referências com a vida e obra de Noel. Ao final, Aracy interpretou Capricho de rapaz solteiro e Feitio de Oração, encerrando o programa de forma expressiva. A resposta havia sido dada aparentemente de modo convincente!

Este pequeno e passageiro episódio ocorrido nos primeiros minutos do programa não era novidade na trajetória do radialista. Apesar de não assumir perfil polêmico, como era comum entre alguns de seus colegas da crítica musical, Almirante sempre estava envolvido em disputas e controvérsias na sua incondicional defesa e divulgação da música popular. Esse combate em favor da música nacional aumentou nos anos 50, na mesma proporção em que cresceu a divulgação e as "influências da música estrangeira", gerando grande insatisfação, estampada
na série Pessoal da Velha Guarda. De maneira geral, um dos principais argumentos que apresentava nesta autêntica militância estava apoiado justamente na ideia da autoridade das evocações-memória e a veracidade de suas fontes. A idoneidade daquele que evoca e testemunha a veracidade dos acontecimentos próprios e alheios, sempre foi elemento central na construção da memória e no convencimento de uma narrativa. Almirante manejou muito bem este núcleo, desde seus primeiros programas de rádio no final dos anos 30 e permaneceu utilizando- os nos mais recentes, como revela em No tempo de Noel Rosa. Como ele foi reiterado à exaustão, durante anos, nas centenas de programas que produziu e apresentou, alcançando grande repercussão pelas ondas do rádio, o argumento acabou identificado com o radialista. Foi por essa razão que, no início dos anos 60, Edigar de Alencar descreveu Almirante se equilibrando com maestria entre a autoridade da memória e os procedimentos metodológicos do historiador que trabalha de modo infatigável em busca da autenticidade das fontes e da verdade histórica:

"Ninguém poderia contar a vida de Noel Rosa melhor do que Almirante. Não somente por ter acompanhado de perto o imortal compositor popular em toda sua rápida, mas fulgente trajetória artística, como, sobretudo, pelo senso de medida, pela exatidão com que enumera fatos, pela segurança com que alinha episódios e datas. (...) Almirante é um fetichista da verdade. Passa semanas e semanas revolvendo documentos, consultando pessoas, na pesquisa de uma data. É a vocação mais extraordinária de historiador que tenho notícias. De historiador consciente de sua missão de registrar o fato para coevos e pósteros, sem a capacidade inventiva ou fantasiosa. Com ele não tem bandeira. Conta-se o caso como o caso foi."

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"História e Música no Brasil"
Organizadores: José Geraldo Vinci de Moraes, Elias Thomé Saliba
Editora: Alameda
Páginas: 412
Quanto: R$ 78,00
Onde comprar: pelo telefone 0800-140090 ou pelo site da Livraria da Folha

 
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