Livraria da Folha

 
24/07/2010 - 13h19

Cientista discute contágio de personalidade no transplante de órgãos

da Livraria da Folha

Existem registros de pessoas que adquiriram novos comportamentos após terem órgãos transplantados. O mais impressionante destes relatos é o fato destes novos gostos e atitudes serem recorrentes no dono original do órgão.

Reprodução
Cientista questiona a intuição por trás da irracionalidade e da razão
Cientista questiona a intuição por trás da irracionalidade e da razão

A ideia de absorver memórias e comportamento de alguém ao ter parte de seu corpo dentro de você está presente em muitas culturas primitivas. As tribos canibais espalhadas ao redor do globo carregavam em seus rituais exatamente este conceito. Estes povos acreditavam que a coragem e a força do inimigo passaria a ser daquele que ingerisse parte da carne do derrotado.

Este é o tema abordado no capítulo "Você Receberia um Transplante de Coração Voluntariamente se o Doador Fosse um Assassino?" do livro "Supersentido: Porque Acreditamos no Inacreditável". De autoria do cientista Bruce Hood, disseca superstições e crenças comuns à cultura popular e mostra como as pessoas ainda acreditam nelas.

Com exemplos práticos e pesquisas científicas, Hood analisa em cada capítulo um tipo diferente de fenômeno sobrenatural. Ao final, antes de passar o tema seguinte, o cientista interpreta o que foi apresentado até então.

Leia abaixo trecho em que Hood discute a possibilidade de absorvermos memórias através de transplantes.

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Memórias Celulares

Pode ser que eu nunca tenha a oportunidade de questionar Armin Meiwes a respeito de suas crenças Sobrenaturais, mas conversei com Ian Gammons, uma pessoa muito mais afável e amigável, que mora com sua esposa, Lynda, na pequena vila de Weston em Lincolnshire, Inglaterra. Lynda e Ian são casados há mais de 30 anos e compartilham uma intimidade muito maior e mais profunda do que a maioria dos casais conseguiria ter.

Em 2005, Ian Estava sofrendo de insuficiência renal quando os médicos descobriram que Lynda era uma doadora compatível. Ela nem mesmo hesitou, e a operação salvadora foi um sucesso. Cerca de dois meses após a cirurgia, Lynda e Ian estavam fazendo compras quando algo interessante aconteceu. Ian se voltou para Lynda e disse: "Eu realmente estou gostando disso".

Ian e Lynda sempre foram muito próximos, mas sempre tiveram interesses diferentes. Ian é um homem típico, que detesta fazer compras, cuidar do jardim, cozinhar e realizar todas as outras atividades que Lynda aprecia. A ideia de que Ian gostasse de fazer compras era muito estranha. Ian começou a gostar de ajudar no cuidado com o jardim e a cozinhar, sendo que anteriormente não fazia mais do que esquentar alguma comida congelada para a janta. Quando Lynda mencionou seu desejo de ter um cachorro de estimação, Ian concordou, apesar de sempre ter gostado mais de gatos. E as similaridades vão além de hobbies e gostos:

Minhas experiências ainda estão se desenvolvendo. Estou ficando mais intuitivo e tenho uma percepção maior. Em particular, nós sonhamos várias vezes com as mesmas coisas. Na noite passada, Lynda acordou e disse que tinha tido um sonho estranho, com uma casa branca em um campo verdejante próximo do mar. Eu tive exatamente o mesmo sonho. Será verdade que nosso DNA está se misturando? É assim que isso pode acontecer?

Ian é um homem que fala com tranquilidade e que genuinamente quer saber como explicar suas experiências. Ele não é o hippie típico da Nova Era que fala sobre essências, energias vitais ou conectividade do cosmos. A única resposta sensata, de acordo com Ian, é que ele e Lynda agora têm uma ligação em comum porque uma parte da esposa está dentro dele. Ele absorveu uma parte dela e agora está se transformando nela, de certo modo.

Não é uma alegação incomum em pacientes que passaram por transplantes. Cerca de um em cada três pacientes de transplantes acredita herdar as propriedades psicológicas do doador. O exemplo mais famoso foi Claire Sylvia, que recebeu o coração e os pulmões de um jovem na década de 1980. Após a cirugia, ela desenvolveu o gosto por cerveja e por comer nuggets de frango. Para uma bailarina, isso era algo bem estranho. Mais estranho ainda foi o fato de ela se sentir atraída por mulheres loiras de baixa estatura. A namorada do falecido doador era loira e tinha baixa estatura. Ah, e ele gostava de cerveja e de nuggets de frango, que foram encontrados em seu casaco após o acidente de moto que o matou.

Tais relatos são apresentados como exemplos de memórias celulares, uma crença sobrenatural de que aspectos psicológicos de um indivíduo são armazenados em tecidos orgânicos e podem ser transferidos para um receptor. Alguns alegam que todas as células corporais estão conectadas. Se o cérebro cria a mente e as células cerebrais contém os estados psicológicos da memória, então outras células no corpo também compartilham essa informação. Aparentemente, parece haver lógica na crença de Ian de que ele havia incorporado os estados mentais de Lynda por meio do seu DNA transplantado.

Em certo momento, parece ter havido evidências científicas para uma noção tão bizarra. James McConnel é uma figura polêmica na comunidade científica. Nas décadas de 1950 e 1960, ele fez experimentos com minhocas para determinar quanto tempo elas levavam para aprender a sair de um labirinto. Após ter treinado um monte de minhocas para rastejar ao longo do labirinto, ele fez uma coisa bem incomum: fatiou as minhocas treinadas em pequenos pedaços e deu para as minhocas não treinadas comerem. As minhocas canibais conseguiram aprender a rastejar pelo labirinto com mais rapidez se comparadas às outras minhocas que não haviam recebido a dieta canibal.

Outros estudos com roedores pareciam sugerir que animais ingênuos alimentados com os corpos de animais treinados aprendiam a sair de labirintos mais rapidamente. Como isso poderia acontecer se não fosse pela memória celular? Entretanto, o treinamento envolvia estressar o animal com choques elétricos para que ele evitasse repetir erros no labirinto. Lembra-se de John Watson e do pequeno Albert nas experiências sobre condicionamento? Esse tipo de estresse libera hormônios que permanecem no corpo. Os matadouros, por exemplo, tentam reduzir o estresse dos animais porque as mudanças associadas a ele afetam a qualidade da carne. Quando corações e fígados de camundongos treinados foram dados para que camundongos novatos comessem, eles produziram uma diferença mensurável no desempenho destes ao aprender como evitar os choques. Seria isso uma evidência de memória celular? Não se os camundongos que nunca tivessem sido treinados no labirinto fossem estressados de outro modo - por exemplo, colocados dentro de um pote e chacoalhados com força - e posteriormente mortos e dados de comer para outros camundongos novatos, os novatos também mostrariam uma capacidade maior de aprendizado no labirinto. Não era a memória que estava imbuída, mas sim um coração ou um fígado enriquecido com hormônios. É como acontece quando você toma uma pílula com anfetaminas para estudar para um teste: você aprende muito mais rápido se estiver mais agitado. Nenhum cientista que tenha uma reputação a zelar faz esse tipo de pesquisa hoje em dia. Mesmo assim, isso não impediu que a hipótese da memória celular se espalhasse, podendo ainda ser encontrada em livros escolares de ciências.

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Supersentido: Porque Acreditamos no Inacreditável
Autor: Bruce Hood
Editora: Novo Conceito
Páginas: 319
Quanto: R$ 39,90
Onde comprar: Pelo telefone 0800-140090 ou pelo site da Livraria da Folha

 
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