Livraria da Folha

 
14/08/2010 - 10h06

Comparado a "Moby Dick", livro narra aventuras de explorador no oriente desconhecido

da Livraria da Folha

Divulgação
Romance biográfico narra aventuras de explorador inglês pelo coração da áfrica
Romance biográfico narra aventuras de explorador inglês pelo coração da áfrica

"O colecionador de Mundos", do escritor alemão de origem búlgara Ilija Trojanow, conta a história do inglês Richard Francis Burton (1821-1890), um dos maiores exploradores do século 19 e responsável pela tradução de "A Mil e Uma Noites" para sua língua, tornando-a conhecida no ocidente.

O romance biográfico, um dos principais lançamentos da Companhia das Letras em agosto, foi comparado pelo alemão Günter Grass, prêmio Nobel de Literatura de 1999, ao clássico "Moby Dick" do americano Herman Melville (1819-1891).

Na obra, Trojanow retrata três momentos da trajetória do explorador inglês. Primeiro na Índia, onde Burton trabalhou como oficial e informante, depois sua peregrinação no trajeto sagrado de Meca a Medina e em seguida quando, disfarçado de muçulmano, ele fez uma expedição até o coração da África, na qual descobriu a nascente do rio Nilo.

A obra tem sido elogiada pela crítica internacional pela forma como costura várias vozes e cruza universos culturais diferentes.

Leia trecho.

*

Ele morreu de manhãzinha, antes ainda que fosse possível distinguir um fio preto de outro, branco. As orações do padre foram silenciando; ele umedeceu os lábios e engoliu a saliva. O médico a seu lado, tão logo deixou de sentir o pulso na ponta dos dedos, não mais se moveu. Apenas a teimosia mantivera o paciente vivo; no fim, a vontade sucumbira a um coágulo. Sobre os braços cruzados do morto jazia uma mão cheia de pintas, que recuou para depositar um crucifixo no peito nu. Grande demais, pensou o médico, os tensivamente católico, tão barroco quanto as cicatrizes no tronco do falecido. A viúva estava postada defronte dele, do outro lado da cama. Não ousava olhá-la nos olhos. Ela se voltou, caminhou calmamente rumo à escrivaninha, sentou-se e começou a escrever alguma coisa. O médico viu o padre pôr no bolso o vidrinho com o óleo consagrado e tomou o gesto como um sinal para recolher também suas seringas e a bateria elétrica. Havia sido uma noite longa; ele teria de procurar nova colocação. Era mesmo uma pena, porque tinha gostado daquele paciente, gostara de morar ali, em sua villa sobre a cidade, bem no alto, com vista para o golfo e muito além, para o Mediterrâneo. Sentiu-se corar e, com isso, enrubesceu ainda mais. Afastou-se do morto. O padre, alguns anos mais jovem que ele, olhava furtivamente pelo cômodo ao redor. Numa parede, um mapa do continente africano espremido entre estantes de livros. A janela aberta o inquietava, assim como tudo mais o inquietava naquele momento. Os ruídos murmurantes lembraram-lhe outras noites insones. O belo e incompreensível desenho à sua esquerda, ao alcance do braço, o deixara inseguro desde o princípio. Lembrava-o de que aquele inglês vagara por terras sem Deus, só visitadas por desavisados e petulantes. Sua obstinação era notória. Dele, o padre não sabia muito mais do que isso. De novo, o bispo se desvencilhara de uma tarefa desagradável. Não era a primeira vez que o padre precisara dar a extrema-unção a um desconhecido. Use de bom-senso - essa havia sido toda a ajuda que o bispo lhe prestara. Estranho conselho. Não tivera tempo de se preparar. A esposa o pegara de surpresa. Ela o compelira, demandara o sacramento para o moribundo, como se o padre lhe devesse aquilo. Cedera à vontade dela e já se arrependia de tê-lo feito. Parada junto da porta aberta, ela entregava um envelope ao médico e lhe falava com insistência. Devia dizer alguma coisa? O padre aceitou o agradecimento, feito em tom suave, mas decidido - dizer o quê? -, e, com ele, o pedido manifesto para que partisse. Sentiu o cheiro do suor dela e permaneceu em silêncio. No vestíbulo, ela lhe estendeu o casaco e a mão. Ele girou para partir, mas não se moveu, não podia sair pela noite com tamanho peso nos ombros. Tornou a se voltar para ela de sopetão.

- Signora...

- Perdoe-me se não acompanho o senhor até a porta.

- Eu não devia ter feito isso. Foi um erro.

- Não!

- Preciso comunicar ao bispo.

- Era seu último desejo. O senhor tinha de atendê-lo. Me perdoe, padre. Tenho muito que fazer. Suas preocupações são infundadas. O bispo já sabe.

- A signora pode estar segura, mas eu não compartilho dessa segurança.

- Por favor, reze pela alma dele. É o melhor para nós todos. Até logo, padre.

Ela passou dois dias junto do leito de morte do marido, rezando, conversando, vez por outra interrompida em suas orações por aqueles que desejavam prestar ao moribundo uma última homenagem. No terceiro dia, acordou a criada mais cedo que de costume. A serviçal vestiu um xale sobre a roupa de dormir. Titubeou pela escuridão lanosa da noite até o galpão onde dormia o jardineiro, que só respondeu aos chamados depois de ela golpear a porta com uma enxada. Anna, gritou ele, aconteceu algo de ruim de novo? A signora precisa de você, respondeu ela, e acrescentou: Agora mesmo.

- Massimo, você já cortou a lenha?

- Já, signora, semana passada, logo que esfriou. Temos bastante...

- Eu quero que você faça uma fogueira.

- Sim, signora.

- No jardim, não muito perto da casa, mas não muito longe também.

Ele ergueu uma pequena pilha de achas, como a que é feita em sua aldeia no solstício. O esforço o aqueceu um pouco. Os dedos molhados de orvalho faziam que desejasse um bom fogo. Anna saiu da casa trazendo na mão uma caneca, os cabelos desgrenhados, como ramos secos. O jardineiro sentiu o cheiro do café ao apanhar a caneca da mão dela.

- Será que o fogo vai pegar?

- Contanto que não chova...

Ele se inclinou sobre a caneca, como se tentasse reconhecer alguma coisa no líquido. Bebericou.

- Quer que eu acenda?

- Não. Quem é que sabe o que ela quer. Melhor esperar.

O golfo aclarou-se, um barco de três mastros arriava a vela. Trieste acordava ao som das charretes e dos carregadores. A signora atravessou o gramado em um de seus vestidos volumosos e pesados.

- Acenda o fogo.

O jardineiro obedeceu. Queima, queima, noiva do sol, luze, luze, esposo da lua, sussurrou ele às primeiras chamas. Era a canção que seu pai cantava no solstício. A signora aproximou-se dele; foi-lhe difícil não recuar. Ela estendeu-lhe um livro.

- Jogue na fogueira!

A signora quase o tocara. A ordem ocultava um quê de desamparo. Ela não atiraria o livro na fogueira com as próprias mãos. Ele passou os dedos pela capa, pela lombada, pela costura, afastou-se um pouco das chamas, acariciou o couro em busca de uma lembrança, até que lhe ocorreu o que sentia: era como se seus dedos tocassem a cicatriz nas costas de seu primogênito.

- Não.

O fogo açoitava o ar em todas as direções.

- A signora peça a outra pessoa. Eu não posso.

- Mas vai fazer. Imediatamente!

A fogueira se endireitara. Ele não sabia o que responder a ela. A voz de Anna açoitou-lhe o ouvido.

- Não é da nossa conta. Se ela partir... a carta de recomendação, os presentes de despedida...

Que diferença faz para você este livro? Dê aqui, quem se importa?

Ele não viu o livro voar rumo à fogueira, só ouviu um estalo, as brasas, as chamas a estremecer; quando viu o livro no fogo, o volume torcia-se como uma unha disforme do pé. A criada acocorou-se; no joelho nu, uma enegrecida marca de nascença. Queima o couro de camelo, uma careta crepita, inflamam- se os números das páginas, ardem os sons dos babuínos, emudecem o marati, o guzerate, o sindi, deixando apenas garatujas a revoar feito faíscas, antes de se depositarem no chão como pó de carvão. Ele, Massimo Gotti, um jardineiro do Karst, perto de Trieste, reconhece na fogueira o falecido signore Burton, ainda jovem, vestindo uniforme antigo. Massimo estende os braços, chamusca os pelos nas costas das mãos, as páginas ardem, os bilhetes, os fios, os marcadores e os cabelos, os sedosos cabelos negros dela, longos cabelos negros pendendo da extremidade de uma tábua, soprados ao vento lamentoso. A morta jaz logo adiante da parede de chamas, sua pele se dissolve, a cabeça explode, ela começa a encolher, até restar dela algo que pesa menos que os belos cabelos negros compridos. O jovem oficial não sabe como ela se chama ou quem é. Não suporta mais aquele cheiro.

Richard Francis Burton se afasta depressa. Imagine só, formula ele em pensamento a primeira carta sobre a terra desconhecida: Depois de quatro meses em alto-mar, você finalmente chega e, na praia, amontoando pedaços de madeira na areia, eles queimam seus mortos, bem no meio desse buraco fétido e sujo chamado Bombaim.

*

"O colecionador de Mundos"
Autor: Tonya Reiman
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 416
Quanto: R$ 40,90 (preço especial, por tempo limitado)
Onde comprar: 0800-140090 ou na Livraria da Folha

 
Voltar ao topo da página