Livraria da Folha

 
24/09/2010 - 12h04

"Tira livre" rompe tradição e ganha força na HQ nacional, diz pesquisador Paulo Ramos

FELIPE JORDANI
colaboração para a Livraria da Folha

Arquivo pessoal
Paulo Ramos, pesquisador de quadrinhos, usa o termo "tira livre" para nomear quadrinhos que se diferenciam do estilo tradicional
Paulo Ramos, pesquisador de quadrinhos, usa o termo "tira livre" para nomear quadrinhos que se diferenciam do estilo tradicional

Em reportagem recente, a Livraria da Folha falou da quebra de tabu das tiras tradicionais em uma tendência identificada como "tira livre". Quem cunhou o termo foi o jornalista e pesquisador de quadrinhos Paulo Ramos, autor do Blog dos Quadrinhos, um dos mais acessados do gênero no país.

Em entrevista, por e-mail, à Livraria da Folha, Ramos fala sobre o que chama de "tira livre", além de indicar suas publicações nacionais preferidas em 2010 e traçar um panorama sobre o mercado de HQs.

O escritor, que se envolveu academicamente com as narrativas gráficas durante seu doutorado na USP (Faculdade de Letras na Universidade de São Paulo), lançou em maio o livro "Bienvenido: Um Passeio pelos Quadrinhos Argentinos". Também é autor de "A Leitura dos Quadrinhos" e participa como coautor de "Como Usar as Histórias em Quadrinhos na Sala de Aula", entre outros títulos.

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Obra analisa principais quadrinistas argentinos, como Liniers e Quino
Obra analisa principais quadrinistas argentinos, como Liniers e Quino

Livraria da Folha: No último Congresso da Intercom (Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação) você apresentou uma nova tendência dentro das tiras brasileiras que nomeou de "tira livre". Poderia caracterizar quais são as mudanças e como surgem a partir das tiras tradicionais?
Ramos: A principal característica da tira cômica é produzir um desfecho inesperado, que leve ao humor, tal qual uma piada. O que se vê no que tenho chamado de "tira livre" é uma ruptura com esse elemento. Sempre houve exemplos de casos assim, mas eles começaram a ganhar mais força por conta das produções de Laerte na Folha de S.Paulo, mais ou menos por volta de 2005. Eram tiras que não traziam humor, mas pensatas, muitas delas levando a uma interpretação aberta por parte do leitor.

Outros autores começaram a se aproximar do mesmo modelo, ora com pensamentos, ora com crônicas, ora com experimentações gráficas. O que une todas parece ser a liberdade, tanto temática quanto visual, e a ausência do humor tradicional. Por ser ancorada nessa liberdade, optei pelo nome de "tira livre".

Livraria da Folha: Pode citar alguns dos quadrinistas que classificaria como autores de "tiras livres" e as características que enquadrariam seu trabalhos nesse gênero?
Ramos: As características são a liberdade temática e, em alguns casos, a experimentação gráfica. Na lista, podem ser incluídos Gabriel Bá e Fábio Moon, Rafael Sica, algumas das tiras de Orlandeli produzidas para a internet, os trabalhos publicados por Lourenço Mutarelli e Marcello Quintanilha no "O Estado de S. Paulo" durante o primeiro semestre deste ano. A internet seguramente guarda outros exemplos, prontos a serem descobertos.

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Volume propõe usos didáticos para quadrinhos nas salas de aulas
Volume propõe usos didáticos para quadrinhos nas salas de aulas

Livraria da Folha: De que forma se equilibra o conflito entre a academia, que precisa classificar para analisar (como a criação do termo "tira livre"), e os autores, que tendem a negar rótulos e movimentos? Você chegou a conversar com artistas sobre esse novo nome? Se sim, como reagiram?
Ramos: Há um pesquisador francês, Dominique Maingueneau, que aborda exatamente este assunto. Segundo ele, antes de criar qualquer categoria ou termo, caberia ao pesquisador averiguar como o gênero é usado entre os autores, como é recebido pelos leitores e de que modo a editora rotula o produto. Tudo isso interfere no modo de percepção da história. No caso específico, ainda não há um consenso sobre o assunto. Daí a necessidade de se indicar um nome inicial, mesmo que seja revisto futuramente, para pelo menos dar início à discussão.

Livraria da Folha: Como é o espaço para a pesquisa de quadrinhos no Brasil? Há preconceito da academia com o tema?
Ramos: Houve muito preconceito nas primeiras gerações de pesquisadores. Hoje, há bem menos, mas ainda existe aqui e ali alguns acadêmicos que ainda apresentam um pouco de resistência em relação ao tema, talvez por não compreendê-lo. É algo mais sugerido, não propriamente explícito.

O fato é que o número de estudos nos programas de pós-graduação brasileiros têm aumentado vertiginosamente na primeira década deste século. Na Universidade de São Paulo, por exemplo, o volume de mestrados e doutorados sobre quadrinhos produzidos neste século é superior a tudo o que a USP pesquisou sobre o assunto ao longo do século 20.

Livraria da Folha: Quais quadrinhos lançados neste ano chamaram mais a sua atenção? Por quê?
Ramos: As produções nacionais com narrativas mais longas. Não é algo inédito, mas trata-se de uma forma de produção de que não tínhamos tradição. "Quilombo Orum Aiê", de André Diniz, "Xampu", de Roger Cruz, "Yeshuah - O Círculo Interno, o Círculo externo", de Laudo Ferreira Jr., e "Bando de Dois", de Danilo Beyruth, estão seguramente entre os dez melhores lançamentos de quadrinhos do ano no Brasil.

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Título explica elementos básicos da narrativa gráfica e como analisá-los
Título explica elementos básicos da narrativa gráfica e como analisá-los

Livraria da Folha: Como você vê o mercado de histórias em quadrinhos neste ano? Há consumo o bastante para absorver o número de lançamentos?
Ramos: Há diferentes aspectos a serem observados. O primeiro é que há editoras que passaram a investir no setor, particularmente em adaptações literárias, especificamente para emplacar as obras nas gordas listas de compras de quadrinhos do governo federal. Cada compra equivale a uma média de 30 mil exemplares. Note que o público-alvo não é necessariamente o leitor, mas o governo.

O segundo aspecto é que se encontrou nas livrarias um novo nicho de mercado, um leitor mais crítico e de maior poder aquisitivo que passa a comprar quadrinhos junto com livros. Não é por acaso que praticamente todas as editoras nacionais investem nesse segmento, com previsão de retorno a médio e longo prazos, algo que seria inviável nas bancas de jornal. Estas estão mais destinadas a vender os quadrinhos japoneses, os super-heróis e os quadrinhos infantis, dos quais Mauricio de Sousa é o principal produtor.

 
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