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27/12/2009 - 13h50

Em "Hotel Mundo", Ali Smith liga o mundo dos vivos ao dos mortos; leia trecho

da Folha Online

Vencedor do "Scottish Arts Council Book of the Year Award 2002", "Hotel Mundo" (Companhia das Letras, 2009), da escritora escocesa Ali Smith, relata os desdobramentos que um acidente fatal com o elevador do Hotel Global acarreta na vida de cinco mulheres.

A vítima, a camareira Sara Wilb, passa a vagar por uma cidade inglesa indefinida. Tenta recordar sensações e detalhes do passado, como a duração exata da queda que a levara à morte. Paralelamente, histórias de outras quatro mulheres --Claire, a irmã caçula de Sara; Lise, a recepcionista; a moradora de rua Else; e Penny, redatora de um guia de hotéis-- completam a narrativa.

O romance destoa do tempo físico e recorre ao inventivo para parear ausências das personagens aos lugares que, respectivamente, pensam habitar. A autora utiliza-se do fluxo de consciência dessas mulheres para revelar fatos que parecem surgir do próprio ato de narrar. O leitor depara-se entre os limites do isolamento e da convivência entre dois mundos paralelos.

Leia abaixo a introdução de "Hotel Mundo".

*

PASSADO

Uuuuuuu-

-huuuuu que queda que voo que salto que tombo nas trevas na luz que mergulho que lufada baque impacto que altura que loucura que manobra que pavor e que gaita sem foles sem fôlego que estrondo estrago estralo quebrada e rasgada que coração na minha boca que fim.

Que vida.

Que tempo.

O que eu senti. Ali. Foi.

Divulgação
Romance medita sobre os fios invisíveis que ligam a vida à morte
Romance medita sobre os fios invisíveis que ligam a vida à morte

A história é esta; começa pelo fim. Era o auge do verão quando eu caí; as folhas estavam nas árvores. Agora é o rigor do inverno (as folhas caíram já faz tempo) e é só isso, a minha última noite, e hoje à noite o que eu queria mais que qualquer coisa no mundo era ter uma pedrinha dentro do sapato. Estar andando na calçada aqui na frente do hotel e sentir uma pedrinha chocalhando no meu sapato quando eu ando, uma pedrinha pequena e pontuda, para ela pinicar partes diferentes da sola e machucar só o bastante para ser um prazer, que nem se coçar. Imaginar um lugar que está coçando. Imaginar um pé, e uma calçada embaixo dele, e uma pedra, e apertar a pedra com todo o peso do meu corpo contra a pele da sola, ou contra os ossos dos dedos maiores, ou dos menores, ou a curva interna do pé, ou o calcanhar, ou a bolinha de músculo que mantém o corpo de pé, equilibrado e se movendo pela superfície rígida, imóvel, do mundo. De tirar o fôlego.

Porque agora que se pode dizer que o meu fôlego foi tirado eu sinto falta desses detalhes incômodos o tempo todo. Só quero saber dessas coisas. Fico me preocupando sem parar com detalhes que nunca teriam chamado a minha atenção, nem por um só momento, quando ainda estava viva. Por exemplo, só pela paz de espírito, a minha queda. Eu gostaria muitíssimo de saber quanto tempo levou, quanto exatamente, e faria de novo imediatamente se tivesse uma chance, a dádiva de uma oportunidade, a oportunidade de um minuto íntegra, sessenta segundos inteirinhos, tantos. Eu faria se tivesse só uma fração desse tempo com todo o peso do meu corpo de novo se pudesse (e dessa vez eu ia me jogar de propósito uuuuuuu-

- huuuu dessa vez eu ia contar no caminho, um elefante dois elef ahh) se eu pudesse sentir de novo, como bati no chão, do porão, vinda de quatro andares de altura, dos pés à cabeça, morta à beça. Perna morta. Braço morto. Mão morta. Olho morto. Eu morta, quatro andares entre mim e o mundo, foi só isso que precisou para me levar, foi a medida, a dimensão e a morte, a curta desped-.

Uns andares bem altos e espaçosos, uns andares de qualidade. Ninguém poderia negar que a minha saída de cena foi de primeira classe; os quartos tinindo de novos e elegantemente mobiliados com camas boas firmes e caras e tetos altos ornamentados com cornijas no primeiro e no segundo, e uma larga escadaria imponente por trás da paralela à qual eu caí. Vinte e um degraus entre cada andar e dezesseis até o porão; caí tudo isso. Uma distância bem considerável entre cada carpete grosso de cima e cada carpete grosso abaixo, apesar de que o porão é de pedra (eu lembro, dura) e o tombo foi curto, menos de um completo e glorioso segundo por andar eu estimo agora tão depois do acontecido, descida, fim. Foi bacana. A queda. A sensação. A pancada sem igual; o voo até o amargo fim, o trajeto inteiro até beija a poeira.

Um bocado de pó seria legal. Dava para pegar quando você quisesse, não?, na hora que desse vontade, dos cantinhos dos quartos, de embaixo das camas, de cima das portas. Os cabelos enrolados e as coisas secas e os fragmentos de o que um dia foi pele, todos os glamorosos dejetos de criaturas de fôlego moídas até restar só sua essência e coladas de novo com restos de teias usadas e flocos de uma mariposa, as escamas translúcidas da asa desmantelada de uma varejeira. Seria fácil (pois você consegue fazer uma coisa dessas quando quiser, se quiser) você cobrir a mão de pó, enrolar um nadinha de pó entre um dedo e o polegar e ver ele formar um carimbo da tua digital, tua, única, de mais ninguém. E daí você podia limpar com uma lambida; eu podia limpar com a minha língua, se tivesse língua de novo, se a minha língua fosse molhada, e eu pudesse sentir o gosto de verdade. Sujeira linda, cinza e vintage, o encardido da vida, grudando no céu ósseo de uma boca e sabendo a quase nada, o que é sempre melhor que nada.

Eu daria qualquer coisa para sentir um gosto. Poder provar só pó.

Porque agora que eu quase fui embora, eu estou mais aqui do estava antes. Agora que eu sou só ar, eu só quero respirar. Agora que estou quieta para sempre, rarrá, são só palavras palavras palavras comigo. Agora que eu não posso simplesmente esticar a mão e tocar as coisas, é só o que eu quero, isso.

Foi assim que acabou. Eu entrei no, no. O elevador de pratos, uma cabininha bem pequena pendurada no alto de um poço cheio de nada, eu esqueci a palavra, ele tem um nome só seu. As paredes, o teto e o chão eram todos de um metal cor de prata. A gente estava no último andar, o terceiro; era o alojamento dos criados duzentos anos atrás, quando a casa tinha criados, e depois a casa foi um bordel e era lá em cima que punham as meninas baratas, as mais doentes ou as que estavam envelhecendo mais, para vender o que tinham para vender, e agora que ela é um hotel e que cada quarto custa dinheiro toda noite os quartos menores ainda custam um pouco menos porque o teto fica mais perto de tocar o chão ali no alto da casa. Eu tirei os pratos e larguei no carpete. Tomei cuidado para não derramar nada. Era só a minha segunda noite. Eu estava sendo boazinha. Subi, para provar que conseguia; eu me enrolei que nem um caracol na concha, o pescoço e a nuca dobrados para dentro, bem apertados contra o teto de metal, rosto entre os braços, peito entre as coxas. Fiz um círculo perfeito e o quarto balançou, a corda rompeu, a cabine caiu uuuu-

- huuuuuu e quebrou no chão, quebrada eu também. O teto desceu, o chão subiu para me encontrar. As minhas costas quebraram, o meu pescoço quebrou, o meu rosto quebrou, a minha cabeça quebrou. A gaiola em volta do meu coração se quebrou e o meu coração saiu. Acho que era o coração. Ele se libertou do meu peito e se enfiou na minha boca. Foi assim que começou. Pela primeira vez (tarde demais) eu soube o gosto do meu coração.

Eu ando sentindo falta disso de ter um coração. Tenho saudade do barulhinho que ele fazia, de como ele conseguia mandar o calor para cá e para lá, de como ele conseguia me manter acordada. Eu vou de um quarto para o outro aqui e vejo camas bagunçadas depois do amor e do sono, depois camas limpas e feitas, esperando de novo que corpos escorreguem para dentro delas; lençóis frescos dobrados, camas com a boca aberta dizendo bem vindo, anda, entra aqui, o sono está chegando. As camas são tão tentadoras. Elas abrem a boca em todo o hotel toda noite para que os corpos se metam nelas uns com os outros ou sozinhos; todo mundo com o coração batendo, escorregando para dentro de espaços que outras pessoas deixaram vazios para elas, pessoas que foram sabe Deus para onde, que esquentaram esses mesmos espaços poucas horas antes.

Anda. O sono está chegando. As cores estão indo embora. Eu vi que o trânsito hoje estava descolorido, todo o inverno da rua desbotou, ficou por demais exposto ao vento e ao sol. Hoje até o sol estava descolorido, e o céu. Eu sei o que isso significa. Eu vi os lugares onde o verde costumava estar. Quase não vi vermelhos, e nada de azuis. Eu vou sentir saudade do vermelho. Vou sentir saudade do azul e do verde. Vou sentir saudade dos contornos de mulheres e homens. Saudade do cheiro dos meus pés no verão. Vou sentir saudade dos cheiros. Os meus pés. O verão. Os prédios e a disposição de suas janelas. A embalagem brilhante em volta das comidas. Moedinhas pequenas que não valem muito, o peso delas num bolso ou na mão. Vou sentir saudade de ouvir uma música ou uma voz saindo do rádio. Ver fogueiras. Ver a grama. Ver os pássaros. As asas deles. Os redondinhos deles. As coisas que eles usam para enxergar. As coisas que a gente usa para enxergar, duas, espetadas em um rosto em cima de um nariz. A palavra foi embora. Estava na ponta da língua agorinha. Nos pássaros elas são pretas e parecem continhas. Nas pessoas são buraquinhos cercados de cor: azul, verde ou marrom. Às vezes podem ser cinza, cinza também é uma cor. Eu vou sentir saudade de ver. Vou sentir saudade da minha queda, que me destruiu, que me tornou uuuuuuu-

- huuuu a pessoa que sou hoje. Que bosta, para sempre, pelos séculos dos séculos mundo sem fim com um fim afinal, amém. Eu ia ficar me jogando sem parar. Eu vou toda noite desde que caí no último verão (o meu último) lá para o último andar, e apesar de terem tirado o elevador, sabe Deus onde ele foi parar, removido por algo que lembra bom gosto (notória, uma tragédia, não mencionada, uma história oculta, a minha morte um dia estava nos jornais, e no outro tinha evaporado, um hotel tem que ganhar a vida), o poço ainda está lá suspenso por trás da escadaria com sua promessa fatal desde lá o bem no alto até o embaixo, e eu me jogo dali e acabou, fico pairando no buraco, pouso no chão como neve desinteressante. Ou se eu me arremesso, faço o esforço especial de voar rápido para bater na pedra, atravesso direto como se a pedra fosse de água, ou eu fosse uma faca quente e a pedra fosse manteiga. Eu não consigo deixar marcas em nada. Não tenho mais o que quebrar em mim.

*

"Hotel Mundo"
Autora: Ali Smith
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 232
Quanto: R$ 45
Onde comprar: Pelo telefone 0800-140090 ou na Livraria da Folha

 
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