Livraria da Folha

 
03/01/2010 - 09h31

Livro contesta versões anteriores sobre o motim no HSM Bounty; leia trecho

da Livraria da Folha

Normalmente, é comum que tenham simpatia pelos revolucionários lutam romanticamente para se livrar da opressão e tirania das pessoas que estão governando ou comandando a vida de outras pessoas. Talvez seja por isso que, durante muito tempo, aceitou-se a tese de que estes haviam sido os motivos pelos quais a tripulação do navio britânico HSM Bounty se rebelou, em um dos mais célebres motins da história.

Divulgação
O Motim no Bounty
Livro traz nova versão sobre o famoso motim no HSM Bounty

A jornalista e historiadora Caroline Alexander, no entanto, apresenta no livro "O Motim no Bounty" uma versão um pouco diferente dos fatos. Contestando diversos livros e filmes já realizados sobre o episódio, ela afirma que nem Fletcher Christian era o grande herói e nem o capitão William Bligh o carrasco pintados em longas-metragens como "O Grande Motim", com Clark Gable e Charles Lawghton, respectivamente, nos papéis principais.

Segundo ela, o motivo do levante não foram as condições desumanas a que os homens da embarcação eram submetidos e nem os eventuais castigos corporais utilizados para punir as falhas mais graves.

Na versão de Caroline, a razão era muito mais complexa e menos nobre: após a estadia de cinco meses na qual o navio ficou ancorado no Taiti para que as mudas de fruta-pão fossem coletadas --o que constituía o principal objetivo da empreitada--, muitos marujos acabaram criando vínculos afetivos com mulheres da ilha e perderam a disciplina exigida em grandes navegações. Para evitar maiores problemas, Bligh enrijeceu a disciplina no trajeto de volta e, após três semanas, um pequeno grupo liderado por Fletcher resolveu se rebelar.

A autora evita cair nos erros das interpretações anteriores de tentar simplificar os fatores que levaram ao motim, e oferece um dos mais rigorosos e interessantes levantamentos sobre o trágico confronto.

Leia a seguir um trecho de "O Motim no Bounty" :

*

Prelúdio

SPITHEAD, INVERNO DE 1787

Com sua pequena embarcação jogando de proa a popa no tempestuoso mar de inverno, um jovem tenente naval britânico esperava impaciente para embarcar na mais importante e assustadora viagem de sua carreira ainda incipiente mas muito promissora. William Bligh, de 33 anos, fora escolhido pelo governo de Sua Majestade para coletar mudas de fruta-pão na ilha do Taiti, no Pacífico Sul, e transportá-las para as plantações das Índias Ocidentais. Como a maior parte do Pacífico, o Taiti - Otaheite - era pouco conhecido; em todos os séculos de viagem marítima, menos de uma dúzia de navios europeus tinha ancorado em suas águas. O próprio Bligh estivera numa dessas primeiras viagens, dez anos antes, quando navegara sob o comando do grande capitão Cook. Agora ia liderar a sua própria expedição numa única pequena embarcação chamada Bounty.

Com o navio provido de tripulação e abastecido para dezoito meses, Bligh esperava ansiosamente, desde sua chegada a Spithead no início de novembro, as ordens finais do Almirantado, que lhe permitiriam navegar. Tinha pela frente uma viagem de cerca de 16 mil milhas, incluindo a travessia do cabo Horn, uma das áreas mais tempestuosas para se velejar no mundo. Qualquer outra demora, Bligh sabia, faria com que ele se aproximasse do Horn no auge de suas piores condições de tempo. Quando as ordens chegaram, no fim de novembro, o tempo na própria Spithead também tinha se deteriorado a ponto de Bligh não ser capaz de ir além da ilha de Wight, de onde escreveu uma carta frustrada ao tio de sua mulher e seu mentor, Duncan Campbell.

Se alguma punição deve ser imposta a um grupo de Homens por negligência, tenho certeza de que deve ser ao Almirantado [escreveu, irritado, em 10 de dezembro de 1787], pela minha demora de três semanas neste lugar durante um vento bom e favorável, que conduziu para fora do canal todos os navios com destino ao exterior, exceto o meu, que disso mais necessitava.

Quase duas semanas depois, ele tinha voltado para Spithead, ainda enfrentando o mau tempo.

É impossível dizer qual será o resultado [escreveu Bligh a Campbell, com ansiedade crescente]. Vou me esforçar para superar [o Horn]; mas com tormentas pesadas, se acompanhadas de saraiva miúda e neve, o meu pessoal não será capaz de suportar. [...] Na verdade, sinto que minha viagem será árdua, e a minha única esperança é que em troca, aconteça o que acontecer, a subsistência da minha pobre pequena Família estará garantida. Tenho o consolo [continuou com alguma complacência] de que minha saúde é boa, e não sei de nada que possa ocorrer que não tenha recursos para enfrentar - O meu pequeno Navio está na sua melhor forma e meus Homens e oficiais estão todos bem e sentem-se felizes sob minhas orientações.

Por fim, em 23 de dezembro de 1787, o Bounty partiu da Inglaterra e depois de uma passagem turbulenta chegou a Santa Cruz, em Tenerife. Ali foram adquiridos víveres frescos e feitos alguns consertos, pois o navio tinha sido danificado por fortes tempestades.
"O primeiro mar que nos atingiu carregou todas as minhas vergas de reserva e algumas vergônteas", noticiou Bligh, escrevendo de novo a Campbell; "- o segundo quebrou os calços dos Botes e rebentou-os e fiquei enterrado no Mar com a minha pobre pequena tripulação. [...]"

Apesar da demora exasperante da sua partida, da passagem tumultuosa e das milhas incontáveis que ainda tinha pela frente, o espírito de Bligh estava agora animado - manifestamente mais animado do que quando partira. Em 17 de fevereiro de 1788, ao largo de Tenerife, ele aproveitou a passagem de um baleeiro britânico, o Queen of London, para mandar algumas linhas a Sir Joseph Banks, seu patrocinador e o principal responsável pelo arriscado empreendimento da fruta-pão. Escreveu Bligh:

Estou feliz e satisfeito no meu pequeno Navio e agora estamos preparados para dar a volta em dez mundos, os Homens e os oficiais dóceis e bem-dispostos; animação e contentamento no semblante de todos. Tenho certeza de que nada é mais propício para a saúde. - Não tenho motivos para aplicar castigos pois não tenho transgressores, e tudo corresponde às minhas expectativas mais otimistas.

"Meus Oficiais e Jovens Cavalheiros estão todos dóceis e bem-dispostos", continuou na mesma veia para Campbell, "e agora nos entendemos tão bem que vamos continuar assim durante toda a viagem..."

Bligh esperava realmente que essas fossem as suas últimas comunicações na viagem ao exterior. Mas o tempo monstruoso ao largo do cabo Horn superou até as suas piores expectativas. Depois de enfrentar tempestades e vendavais contrários durante um mês inteiro, ele se deu por derrotado e desviou sua rota para o cabo da Boa Esperança. Chegaria ao Taiti pelo caminho do oceano Índico e da Terra de Van Diemen (atualmente Tasmânia), um desvio que acrescentaria bem mais de 10 mil milhas a sua viagem original.

"Cheguei aqui ontem", escreveu a Campbell em 25 de maio da ponta mais ao sul da África, "depois de experimentar o pior dos tempos perto do cabo Horn por 30 Dias. [...] Achava que tinha visto o pior de tudo o que poderia ser enfrentado no Mar, mas nunca vi ventos tão violentos, nem Mares tão montanhosos." Um navio holandês, ele não resistiu a acrescentar, também chegara ao cabo com trinta homens mortos a bordo e muitos outros gravemente doentes; Bligh conseguira levar toda a sua tripulação, sã e salva.

O Bounty passou um mês no cabo se recuperando e estava pronto a navegar no fim de junho. Ainda tinha pela frente uma viagem árdua, mas a confiança de Bligh era agora muito maior do que quando tinha embarcado; na verdade, nesse aspecto ele se mostrava o comandante ideal, alguém cujos estado de espírito, coragem e entusiasmo eram reforçados, e não intimidados, pelas dificuldades e demoras. Junto com seu navio e seus homens, ele tinha suportado as piores labutas que poderia razoavelmente esperar enfrentar.

Seguiu-se o silêncio havia muito antecipado; mas, quando depois de mais um ano ele foi de repente quebrado, a correspondência de Bligh não vinha do cabo Horn nem de nenhum outro porto de escala na esperada rota para casa, mas de Coupang (Kupang), nas Índias Orientais Holandesas. As novas que ele transmitia nas cartas a Duncan Campbell, a Joseph Banks e sobretudo a sua mulher, Elizabeth, eram tão inteiramente inesperadas, tão incoerentes com o fluxo das cartas determinadas e complacentes do ano anterior, que eram quase incompreensíveis.

"Minha Querida Querida Betsy", Bligh escreveu com sensível esgotamento à mulher em 19 de agosto de 1789, "estou agora numa região do mundo que nunca pensei conhecer, é no entanto um lugar que me proporcionou alívio e salvou a minha vida...

"Saiba, então, minha Querida Betsy, perdi o Bounty..."

PANDORA

Taiti, 1791

À luz de um dia bonito, aprazível e ventoso de março, um jovem com pouco menos de vinte anos se despediu da mulher e saiu de sua cabana simples, construída pitorescamente entre jardins de frutas cítricas ao pé de um morro, para uma excursão pelas montanhas. Com um forte bronzeado e as costas cobertas por tatuagens com os tradicionais padrões de virilidade, o jovem poderia ter passado por um dos taitianos que o encontraram fora da cabana. Mas Peter Heywood era inglês, e não "índio", e uma observação cuidadosa teria revelado que uma das tatuagens desenhadas na sua perna não era nativa, mas o símbolo de ilha de Man. O jovem Heywood ali vivia, na sua idílica casa entre as folhagens logo além da baía Matavai, desde setembro de 1789, quando o Bounty, sob o comando do ajudante de navegação Fletcher Christian, deixara-o no Taiti junto com outros quinze companheiros de bordo - e depois sumira na noite, para nunca mais ser visto.

Faltavam apenas algumas semanas para Peter Heywood, antigo aspirante no Bounty, completar dezessete anos quando irrompeu o motim e seu amigo chegado e parente distante Fletcher Christian tomou conta do navio. Por ordens de Christian, o tenente Bligh e dezoito homens leais a ele foram forçados a deixar o Bounty num dos escaleres do navio, onde, balançando no imenso Pacífico, tinham sido abandonados à morte certa.

O controle de Fletcher Christian sobre os amotinados não iria durar mais que cinco meses. Quando finalmente dirigiu o Bounty de volta ao Taiti para o que seria a sua visita final, ele o fez porque a sua tripulação se desintegrara em facções. A maioria de seu pessoal queria deixar o Bounty e arriscar-se no Taiti, apesar de saber que um navio de guerra britânico viria finalmente procurá-los; alguns desses homens tinham sido leais a Bligh, mas foram mantidos a contragosto a bordo do Bounty.

Peter Heywood fora um dos últimos homens a se despedir de Christian, por quem ainda mantinha uma simpatia afetuosa. Depois, quando o Bounty partiu para sempre, ele retornou da praia para começar a tratar de construir uma nova vida. Agora, num dia fresco de março, um ano e meio depois da partida de Christian, Peter se dirigia para as montanhas com alguns amigos. Não se afastara mais de cem metros de casa quando um homem veio apressado atrás dele para anunciar que havia um navio à vista.

Correndo para o morro atrás da casa, com seu conveniente ponto de observação sobre o mar, ele localizou o navio parado a apenas algumas milhas de distância. Peter afirmaria mais tarde que vislumbrara essa visão "com a maior Alegria", mas é provável que suas emoções tivessem sido um tanto mais complicadas. Precipitando-se morro abaixo, ele foi para a vizinha casa de seu amigo íntimo, o aspirante George Stewart, contar as novidades. Quando ele e Stewart conseguiram abrir caminho espadanando até o navio, outro homem, Joseph Coleman, o armeiro do Bounty, já estava a bordo. Ao se apresentarem como antigos membros da tripulação do Bounty, Heywood e Stewart foram presos e confinados. O navio, Pandora, fora especificamente encarregado de capturar os amotinados e levá-los à Inglaterra para serem julgados. Aquelas horas matinais de 23 de março de 1791 foram as últimas que Peter Heywood passou no Taiti.

As novas do motim a bordo do Navio Armado de Sua Majestade Bounty tinham chegado à Inglaterra havia quase exatamente um ano. O modo como a notícia chegara fora ainda mais extraordinário do que o motim - pois o mensageiro não tinha sido outro senão o próprio tenente William Bligh. Depois que Fletcher Christian o pusera e aos homens que lhe eram leais na lancha do Bounty perto da ilha de Tofua, Bligh, contra todas as probabilidades imagináveis, conduzira a pequena embarcação de sete metros de comprimento ao longo de 3618 milhas durante um período de 48 dias até Timor, nas Índias Orientais Holandesas. Ali, seus homens, famintos e aflitos, tinham tido uma recepção gentil por parte das incrédulas autoridades holandesas. Por fim, foram conseguidas passagens rumo ao lar para ele e seus homens, e Bligh chegara à Inglaterra em 13 de março de 1790, demonstrando triunfo e raiva intensa.

A notícia do motim e uma descrição dos amotinados foram rapidamente despachadas para os portos britânicos e holandeses. Na baía Botany, as novas inspiraram dezessete condenados a fugir, numa tentativa de se juntarem aos "piratas" no Taiti. Embora se tivesse a princípio suposto que dois navios de guerra espanhóis que já estavam no Pacífico poderiam ter apreendido o Bounty, o Almirantado decidiu não correr riscos e começou a mobilizar uma expedição para caçar os amotinados. O custo e a responsabilidade de mandar mais um navio ao Pacífico não eram atraentes: a Inglaterra parecia à beira de travar nova guerra com a Espanha, e todos os homens e navios disponíveis estavam sendo destinados a esse fim. No entanto, forçar um oficial de Marinha britânico a abandonar o navio no meio do Pacífico e fugir com uma propriedade de Sua Majestade eram afrontas que não podiam ficar impunes. Por fim, uma fragata de 24 canhões chamada Pandora foi despachada sob o comando do capitão Edward Edwards para caçar os amotinados.

Partindo no início de novembro de 1790, o Pandora realizou uma passagem rápida e tranqüila até o Taiti, evitando as horrendas tempestades que tinham afligido o Bounty três anos antes. Enquanto o Bounty tinha uma tripulação de 46 homens, o Pandora levava 140. O comandante do Pandora, capitão Edwards, havia sofrido uma ameaça de motim nove anos antes, quando estava no comando do Narcissus perto da costa noroeste da América. Por fim, cinco dos supostos amotinados nessa conspiração frustrada tinham sido enforcados, e dois outros condenados a ser açoitados com duzentas e quinhentas chibatadas, respectivamente, enquanto o líder do motim fora acorrentado e enforcado. Como mostrariam os acontecimentos, o capitão Edwards nunca esqueceu que ele, quase vítima de um motim, estava agora perseguindo amotinados verdadeiros.

Também no Pandora, recentemente promovido a terceiro tenente, estava Thomas Hayward, um aspirante do Bounty que acompanhara Bligh na sua épica viagem em barco aberto. Com as lembranças da sede, da quase-morte pela fome, da exposição às condições climáticas severas e do puro horror daquela viagem ainda frescas na mente, Hayward estava ansioso por ajudar a abater os responsáveis por sua provação. A familiaridade dele com as águas e o povo taitianos ajudaria a navegação e a diplomacia na ilha; sua familiaridade com os antigos companheiros de bordo identificaria os amotinados.

Foi assim que em março de 1791, sob um céu sem nuvens e com brisas amenas, o Pandora avistou os picos exuberantes e dramáticos do Taiti. Com a aproximação, as cascatas das montanhas, as palmeiras graciosas e as faiscantes praias negras vulcânicas podiam ser vistas além das ondas e da arrebentação retumbantes. Os poucos navios que ali tinham ancorado haviam tentado descrever a beleza visionária do primeiro vislumbre dessa ilha surgindo do Pacífico azul. Bligh chamara o Taiti de "o Paraíso do Mundo".

Agora, enquanto navegava sereno pelas claras águas azuis, trazendo justiça e vingança, o Pandora era recepcionado por homens que se aproximavam de canoa ou a nado.

"Antes de Ancorarmos", escreveu Edwards no seu relatório oficial ao Almirantado, "Joseph Coleman, Armeiro do Bounty, e vários dos Nativos vieram a bordo." Coleman era um dos quatro homens a quem Bligh tinha especificamente identificado como inocentes no motim e detido contra a sua vontade. Uma vez a bordo, Coleman imediatamente se prontificou a contar o que acontecera com as diferentes facções. Dos dezesseis homens deixados por Christian no Taiti, dois já tinham sido responsáveis por suas respectivas mortes. Charles Churchill, o mestre-d'armas e homem descrito como "o mais assassino" dos amotinados, fora de fato assassinado por seu companheiro de refeições Mathew Thompson, um marinheiro de primeira classe da ilha de Wight. A morte de Churchill fora por sua vez vingada pelos seus amigos taitianos, que tinham assassinado Thompson oferecendo-o "como Sacrifício a seus Deuses", conforme relatou Edwards desapaixonadamente.

Enquanto isso, a caminho do navio ancorado, Peter Heywood ficara sabendo por outro amigo taitiano que seu antigo companheiro de tripulação Thomas Hayward estava a bordo. O resultado de uma indagação amistosa, como Peter relatou numa longa carta que escreveu a sua mãe, não foi o que ele tinha ingenuamente esperado.

[N]ós perguntamos por ele, supondo que poderia provar nossas Afirmações, mas, como todos os outros Mundanos quando elevados um pouco na Vida, ele nos recebeu friamente e fingiu Ignorância de nossas Atividades. [...] De modo que, sendo as Aparências tão contrárias a nós, fomos postos a Ferros e considerados - Palavras infernais! - Vilões piratas.

Quando a tripulação do Pandora entrou no Taiti, determinada inexoravelmente a cumprir sua missão, ficou claro que não seria feita nenhuma distinção entre os homens capturados. Coleman, identificado como inocente pelo próprio Bligh e o primeiro homem a se render voluntariamente, foi posto a ferros junto com o indignado aspirante. Edwards tinha determinado que sua tarefa era apenas capturar todos aqueles que pudesse, indiscriminadamente, e deixar que a corte marcial os classificasse quando voltassem à Inglaterra.

Pelos taitianos que, cheios de curiosidade, se aglomeravam a bordo, Edwards logo se assegurou do provável paradeiro dos outros onze fugitivos. Alguns ainda estavam nas imediações de Matavai, outros tinham por coincidência navegado apenas um dia antes, numa escuna coberta de nove metros de comprimento que eles próprios tinham construído com muito esforço e engenhosidade, rumo a Papara, uma região na costa sul onde o restante dos homens do Bounty tinha se estabelecido. Com a zelosa assistência das autoridades locais, começou a busca dos amotinados, e, às três horas do segundo dia Richard Skinner, marinheiro de primeira classe do Bounty, estava a bordo do Pandora.

Um grupo sob o comando dos tenentes Robert Corner e Hayward foi então despachado para interceptar os homens restantes. Ajudando-os na busca estava um certo John Brown, um inglês deixado no Taiti no ano anterior por outro navio, o Mercury, devido a suas atitudes problemáticas, por exemplo, entalhar a face de um companheiro de bordo com uma faca. O Mercury partira do Taiti apenas algumas semanas antes do retorno final de Christian com o navio - havia até visto fogueiras na ilha de Tubuai, onde os amotinados tinham se estabelecido a princípio, mas decidira não investigar. Brown, ficou claro, logo se indispusera com seus compatriotas.

Em Papara, os homens de Edwards descobriram que os amotinados, avisados da sua vinda, haviam abandonado a escuna e fugido para a floresta nas montanhas.

"[S]ob o manto da noite tinham se abrigado numa cabana na mata", escreveu o médico de bordo do Pandora, George Hamilton, no seu relato dessa aventura, "mas foram descobertos por Brown, que, insinuando-se sorrateiro até o lugar em que estavam dormindo, distinguiu-os dos nativos apalpando-lhes os dedos dos pés." Ao que parece, os dedos dos pés britânicos não tinham a amplitude denunciadora que possuíam os dos taitianos, sempre descalços.

"Terça-feira, 29 de março", registrou Edwards no livro de bordo do Pandora. "Às 9 a Lancha retornou com James Morrison, Charles Norman e Thomas Ellison, pertencentes ao Navio de Sua Majestade Bounty - prisioneiros." Também foi trazida a reboque a escuna dos amotinados, a Resolution, um objeto de grande orgulho para eles e agora requisitado pelo Pandora como um bote auxiliar ou barco de serviço.

Os três recém-chegados foram primeiro abrigados sob o convés parcial e mantidos sob sentinela permanente. Enquanto isso, os carpinteiros do navio estavam ocupados em construir uma prisão apropriada, uma espécie de cabana baixa a ré do convés de meia nau, onde os prisioneiros seriam colocados, como Edwards informou ao Almirantado, "para sua segurança mais eficaz e situação arejada e saudável". Os prisioneiros, por seu turno, avaliavam as suas circunstâncias de um modo bastante diferente, referindo-se satiricamente à estrutura rasa e apertada, com sua escotilha estreita, como a "Caixa de Pandora".

Em algum ponto durante a perseguição de James Morrison e os homens no Resolution, Michael Byrn, o quase cego violinista do Bounty, ou foi capturado ou veio a bordo por conta própria. Insignificante durante todos os eventos críticos da saga do Bounty, Byrn foi o único entre os fugitivos que chegou ao Pandora sem ser notado. Oito homens tinham sido feitos prisioneiros e estavam agora firmemente presos, a ferros; seis homens continuavam soltos, dizia-se que teriam fugido para os morros ao redor de Papara.

Na semana e meia seguinte, enquanto se realizavam buscas dos fugitivos sob a orientação do sempre prestativo Brown, o capitão Edwards e seus oficiais provaram um pouco da vida no Taiti. O seu anfitrião imediato era Tynah, o rei majestoso, cujo cinturão era proporcional à sua altura eminente de quase 1,92 metro. Em torno dos quarenta anos, ele lembrava-se de William Bligh e sua visita à ilha em 1777 com o capitão Cook, bem como de seu retorno onze anos mais tarde com o Bounty. Depois da chegada do Pandora, Edwards e seus homens tinham sido acolhidos pelos ilhéus com a sua generosidade característica, numa torrente de presentes, alimentos, festas, danças e oferecimentos de suas mulheres.

"Os ingleses são reconhecidos pelo resto do mundo [...] como um povo generoso e caridoso", observou o dr. Hamilton. "[M]as os taitianos não podiam deixar de nos atribuir a palavra mais desdenhosa na sua língua, que é Peery, Peery, isto é, Avarento."

Generosos, leais, sensuais, desinibidos - o belo povo do Taiti tinha seduzido a maioria dos que o visitavam. A essa altura os homens do Bounty já não eram estranhos, tinham vivido entre eles, arrumado esposas e filhos...

"Ali existe Amizade, e Gratidão, e Amor", escreveria mais tarde o jovem Peter Heywood, exibindo uma inclinação poética:

Ali existe Amizade, e Gratidão, e Amor,
Como jamais prevalece nestes Dias degenerados
No Sangue europeu; embora dos superiores
Aceitemos Preceitos, e saibamos o certo e o errado...

Agora, sentados agrilhoados no calor sufocante da Caixa de Pandora, Heywood e seus companheiros de bordo tinham mais que motivos habituais e tempo para contemplar essa disparidade de culturas.

No sábado, os últimos fugitivos começaram a pingar aos poucos. Henry Hilbrant, um marinheiro de primeira classe de Hanover, Alemanha, e Thomas McIntosh, um jovem ajudante de carpinteiro do Norte da Inglaterra, foram entregues a bordo; como previsto, tinham sido capturados na região montanhosa acima de Papara. Na noite seguinte, a ronda estava completa. Os marinheiros de primeira classe, Thomas Burkett, John Millward e John Sumner, e William Muspratt, o ajudante do cozinheiro, foram trazidos a bordo, também de Papara.

Enquanto os "piratas" eram conduzidos para a Caixa de Pandora, as atividades do navio se alvoroçavam ao seu redor. Os carpinteiros e os artífices de vela estavam ocupados em fazer reparos para a etapa seguinte de sua longa viagem, e prosseguiam as atividades disciplinares rotineiras. No domingo, a tripulação do navio foi reunida para a leitura semanal dos Artigos da Guerra: "Artigo XIX: Se qualquer Pessoa na Armada ou pertencente à Armada se reunir ou procurar se reunir em Assembléia sediciosa sob qualquer Pretexto, toda Pessoa que transgredir esse ponto, e for por isso condenada pela Sentença da Corte Marcial, deverá sofrer a Morte". Depois da leitura, três marinheiros foram punidos com uma dúzia de chibatadas cada um "por roubo e embriaguez". Era uma noite enevoada e tinha chovido no dia anterior. Essa seria a última vez que os homens do Bounty veriam os céus do Pacífico por vários meses.

Catorze homens estavam agora apinhados no espaço de 3,5 por 5,5 metros que era a sua prisão. Na praia, eles tinham se conservado em facções diferentes e não viviam em harmonia uns com os outros. Surpreendentemente, tanto Thomas McIntosh como Charles Norman, que estavam entre aqueles que fugiram dos homens do Pandora, tinham sido inocentados por Bligh. Talvez as suas ligações familiares na ilha os tivessem feito pensar duas vezes antes de partir: ou talvez, menos confiantes do que Coleman, que se rendera tão depressa, eles não acreditassem que sua inocência teria muito valor aos olhos do Almirantado.

Dentro da caixa, os prisioneiros chafurdavam em seus próprios suor e parasitas.

"O que sofri não tenho o poder de descrever", escreveu Heywood à mãe; ele tinha se caracterizado para ela como alguém "há muito tempo habituado à Carranca da Fortuna", e agora se tornava filosófico a respeito de sua situação.

"Sou jovem em anos, mas velho no que o Mundo chama de Adversidade", escreveu; Peter Heywood não tinha ainda dezenove anos. "Eu me familiarizei com três Coisas, que são pouco conhecidas", continuou obstinadamente. "[P]rimeiro, a Vilania e a Severidade da mente - segundo, a Futilidade de todas as Esperanças humanas - e terceiro, a Alegria de estar contente em qualquer situação em que a Providência queira me colocar."

*

"O Motim no Bounty"
Autor: Caroline Alexander
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 568
Quanto: R$ 69,00
Onde comprar: 0800-140090 ou na Livraria da Folha

 
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