Livraria da Folha

 
15/01/2010 - 13h00

Para José Luís Peixoto, escritor se fixa nas perguntas que deseja responder

PAULA DUME
colaboração para a Livraria da Folha

Divulgação
"Aquilo que interessa é o que se consegue tornar vivo no texto"
"Aquilo que interessa é o que se consegue tornar vivo no texto"

Além de gostar especialmente de poesia, o escritor português José Luís Peixoto tem por apreço o gosto pelo mistério. Tanto que inventou a palavra "calicatri", no romance "Uma Casa na Escuridão", recentemente lançado no Brasil, com o objetivo de incutir em seus leitores a busca pelo significado do termo.

Leia um trecho do capítulo inicial de "Uma Casa na Escuridão".

Colaborador de diversas publicações portuguesas e estrangeiras, Peixoto leva em seu currículo literário a conquista de vários prêmios importantes, como o Prêmio Literário José Saramago, em 2001, pelo romance "Nenhum Olhar". O português também ficou entre os finalistas do Prêmio Portugal Telecom 2009 com o romance "Cemitério de Pianos".

O autor tem por apreço escavar experiências pessoais em suas linhas. Amor, família, tempo e morte são os mais reicindentes. Na entrevista, Peixoto declarou que há muitos temas a explorar e que, de certa forma, o autor acaba por se fixar nas perguntas que quer resolver. Disse também que revelou suas intenções mais do que deveria e do que gosta durante a conversa. Portanto, vamos à integra.

*

Livraria da Folha - A narrativa de "Uma Casa na Escuridão" é em primeira pessoa. O escritor/narrador detalha cada acontecimento tanto físico quanto emocional que o cerca. Até que ponto os acontecimentos de sua vida rondam e ditam sua escrita?

José Luís Peixoto - Creio que são os acontecimentos da minha vida que ditam toda a minha escrita. Digo isto, considerando que a minha vida é também aquilo que vejo, os filmes a que assisto, a música que ouço etc. Eu só posso escrever sobre aquilo que chega até mim. Quando as pessoas interpretam assuntos que desconheço daquilo que escrevi, essas interpretações devem-se à riqueza significativa e simbólica da própria escrita. Eu, naturalmente, só posso saber aquilo que sei. Se conseguir ter alguma consciência, só poderá ser a minha própria consciência. A única pessoa que acompanhamos desde dentro somos nós próprios.

Livraria da Folha - A crítica literária constantemente descreve sua escrita como autobiográfica. Você prioriza o caráter pessoal ou impessoal em seus textos? Acredita que haja limites entre ambos? Se sim, como lida com eles?

Peixoto - É muito difícil traçar fronteiras para algo tão subjetivo e abstrato como o caráter pessoal ou impessoal de algo. Acredito que essas fronteiras existem mas, possivelmente, por vezes, são graduais, esbatidas. Ainda assim, eu sou a primeira pessoa a caracterizar aquilo que escrevo como autobiográfico, pelas razões que já expus. Não posso escrever sobre aquilo que não conheço e, além de outros elementos, eu sou aquilo que conheço. Ou, se preferir, aquilo que conheço sou eu. Por outro lado, sob certa perspectiva, é importante sublinhar que, ao mesmo tempo, tudo o que se escreve é ficcional. Isto porque é sempre fruto de uma só perspectiva, ou de um número limitado de perspectivas. Não deve ser confundido com a própria realidade, que existe sob um infinito de perspectivas. Nesse infinito, há muito espaço para o paradoxo. Para coisas que são e não são, ao mesmo tempo. Tal como esta resposta.

Livraria da Folha - O livro tem sete capítulos, começa com "O Amor" e termina com "A Morte". No entremeio da história, há "O Amor É Tudo o que Existe", "As Invasões", "O Amor É Impossível", "A Peste" e "O Amor É a Solidão". Você moldou o romance em sete capítulos em alusão às sete vidas de um gato, como se a vida do personagem central fosse multiplicada ao longo da narrativa, porém em subtração equivalente? Ou existe outro motivo para esta divisão?

Peixoto - Na verdade, quando estava a escrever o romance, pensei nas sete chagas de Cristo. Aqui, em Portugal, diz-se que os gatos têm nove vidas... Enquanto escrevia, tinha até a intenção de enumerar essas chagas. Depois, achei que a intertextualidade bíblica estava já bem explícita e abandonei essa ideia. Além disso, o sete é um número muito simbólico, que faz parte das nossas vidas em múltiplos contextos. Não foi por acaso que escolhi esse número. Ainda assim, sob aspectos essenciais, trata-se de uma escolha difícil de justificar em poucas palavras. Tem uma vertente mística e, como tal, inexplicável.

Livraria da Folha - Você inicia "Uma Casa na Escuridão" com a citação bíblica "Misericordia tua magna est super me" ("A tua misericórdia é grande sobre mim", em tradução livre). Nesta passagem, Davi refere-se a Deus, que livrou sua alma duas vezes --uma em vida e outra em morte-- de dois infernos --o superior e o inferior. Essa epígrafe assim como os salmos no início de cada capítulo remetem à condenação e também à redenção das almas dos personagens do romance?

Peixoto - Sob o ponto de vista da reflexão religiosa, este romance foi escrito com a intenção de questionar a misericórdia de Deus para com os homens. Assim como a misericórdia dos homens uns para com os outros. Normalmente, durante o processo de escrita, ando sempre à procura. Essa frase está escrita sobre a porta da igreja, na pequena cidade onde nasci. Foi lá que a encontrei.

Livraria da Folha - A grafia em minúsculo dos personagens "escrava miriam", "príncipe de calicatri" e "visconde de dedodida" é atribuída a quê?

Peixoto - Existe neste romance uma hierarquização das personagens que é feita pelo seu nome. Existem as personagens que têm o nome escrito com maiúsculas, com minúsculas e existem as personagens sem nome.

Livraria da Folha - Falando em "príncipe de calicatri", você disse que "calicatri" foi criada por conta da sonoridade das sílabas. Você tem quase certeza de que o termo possa ser um lugar, uma pessoa, uma música, uma folha de outono, um calendário, um poço ou um espelho, mas acredita mesmo ser um segredo. Por que? Você procura desvendá-lo?

Peixoto - Eu procuro que sejam os leitores a desvendar esse e outros significados. Na verdade, ao longo desta entrevista, já falei mais vezes das minhas intenções do que deveria e do que gosto. Têm de ser os leitores a interpretar. A intenção do autor não tem qualquer importância. Aquilo que interessa é o que se consegue tornar vivo no texto. Pessoalmente, nos romances que escrevo, gosto de colocar questões. Tento não as fazer gratuitamente, tenho motivos e intenções para fazê-las. Mas tem de ser o leitor a responder. Tem de ser cada leitor a encontrar a sua resposta. O texto será tanto mais rico quantas mais respostas forem encontradas. A vida também é assim.

Livraria da Folha - A morte, o tempo e o amor são temas constantes em suas obras. A família e as relações familiares também. Quais outros temas lhe chamam a atenção e você ainda não explorou?

Peixoto - Há muitos temas que ainda não explorei. Não tenho temas que, à partida, sejam proibidos, mas creio que há aqueles a que sempre se regressa. Isso acontece, por um lado, porque não sei tudo sobre tudo. Apenas sei algumas coisas sobre algumas coisas. Por outro lado, para respeitar a minha verdade, tenho sempre de regressar aos temas que me falam. O tempo passa por mim e há coisas que me transformam. Mas a mudança não é absoluta. Há muito da pessoa que escreveu o meu primeiro romance na pessoa que escreveu o último. Afinal, escrever é fixar e, de certa forma, o autor acaba por se fixar a ele próprio naquilo que tem por resolver, nas perguntas que quer responder.

Livraria da Folha - Você diz gostar de romances com mecanismos, que trabalhem como pequenas máquinas. Há algum tipo de engrenagem escrita que ainda não utilizou em algum de seus livros? Em contrapartida, qual o mecanismo escrito que mais utilizou nos textos?

Peixoto - Cada livro meu tem um funcionamento próprio. Enquanto escrevo um romance, vejo-o de forma completamente diferente da maneira como via os outros. Só mais tarde reconheço as semelhanças entre os dois. Essa proximidade faz com que eu não seja imparcial e, dessa forma, não seja a melhor pessoa para responder a esta questão.

Livraria da Folha - Você assume ser um leitor compulsivo de poesia, tanto que essa influência é perceptível em sua prosa poética. Como se dá a confluência com os outros gêneros, como o dramático?

Peixoto - Cada gênero tem as suas regras específicas. Demora-se uma vida inteira para tentar entendê-las e, no final, acredito que se conclua que há muito que não se sabe. Por natureza, a poesia trabalha a linguagem. A esse nível, é uma espécie de ourivesaria. Trata de detalhes. Talvez por isso, a poesia tem-me sido muito útil. O trabalho da linguagem, mais evidente na poesia, é transversal a todos os gêneros literários.

Livraria da Folha - Hoje, a sociedade vive em uma casa na escuridão? Se sim ou se não, de que modo?

Peixoto - Essa é a grande questão que o livro coloca. Se tudo correr bem, espero que os leitores possam dar a sua própria resposta a essa pergunta. Esse romance, como muitos outros, tenta ser uma possibilidade, criar uma lógica coerente. Terão de ser os leitores a confrontá-lo com as possibilidades que conhecem, com a lógica em que acreditam.

 
Voltar ao topo da página