Livraria da Folha

 
25/01/2010 - 15h53

SP 456 ANOS: Edição ampliada da biografia de Adoniran Barbosa inclui scripts de rádio

da Livraria da Folha

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Adoniran Barbosa em foto de 78; biografia do sambista foi relançada em versão ampliada
Adoniran Barbosa em foto de 78; biografia do sambista foi relançada em versão ampliada

Neste aniversário de 456 anos da cidade de São Paulo --celebrado nesta segunda-feira (25)--, nada melhor do que ficar por dentro da história de um dos artistas mais representativos da capital paulista.

O cantor, ator, artista de circo e poeta Adoniran Barbosa nasceu em agosto de 1910, e, como forma de comemorar o centenário de nascimento do compositor-símbolo de São Paulo, a Editora Globo acaba de lançar uma versão revista e ampliada do livro "Adoniran: uma Biografia" (2010), originalmente lançado em 2004.

Autor dos sucessos "Saudosa Maloca", "O Samba do Arnesto" e "Trem das Onze", o sambista --que morreu em 1982-- tem sua vida contada em detalhes nesta biografia de quase 700 páginas, que vem com prefácio de Alberto Helena Jr. e acrescida de um apêndice com seus scripts de rádio.

O escritor Celso de Campos Jr. tomou como base pesquisas em arquivos públicos, bibliotecas, centros culturais e bancos de dados de jornais para obter o maior número possível de dados e informações sobre o artista, cuja vida "sempre ostentara aspectos contraditórios e nebulosos". Abaixo, leia um trecho do primeiro capítulo do livro "Adoniran: uma Biografia".

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Capítulo 1

Filosofia de Calouro

Divulgação
Biografia do sambista vem ampliada em comemoração ao centenário de nascimento
Biografia do sambista vem ampliada em comemoração a centenário

A tarefa não poderia ser mais simples. Visitar os clientes das ruas Direita, São Bento e 15 de Novembro, verificar o estoque de tecidos e anotar o pedido do dono da loja. A bem da verdade, os vendedores da Seabra & Cia., tradicional casa de têxteis da rua 25 de Março, também tinham por obrigação oferecer novos produtos à seleta freguesia. Pela qualidade da mercadoria, quase todos conseguiam encomendas extras de peças de cetim, fustão e anarruga. A exceção era João Rubinato. Ninguém mais esperava que João Rubinato voltasse com pedidos ao escritório dos Seabra. Aliás, já seria um grande feito se, após suas diligências pelo Centro de São Paulo, João Rubinato apenas voltasse ao escritório da 25 de Março. Os outros funcionários, atendentes ou vendedores, resignavam-se. Estes últimos, que gastavam de fato a sola do sapato nas ruas da crescente metrópole que era São Paulo dos idos de 1934, não se importavam com o desleixo do colega. Nenhum funcionário pensava em reclamar da pouca produtividade do companheiro aos superiores - e não era pelo fato de João ser cunhado de Eurico Salgado, gerente da filial paulista da Seabra & Cia.

Todos sabiam que o colega, então com 23 para 24 anos, não queria saber de tecidos ou comissões. Ser vendedor, para ele, já não dava mais pano para manga. Aquele emprego fora apenas a desculpa perfeita para alcançar o grande objetivo de sua juventude - e da de muitos outros, daquela e de todas as épocas: deixar de uma vez por todas a casa dos pais. Notório flauteador, João Rubinato procurava havia tempo um pretexto para desgarrar-se da marcação cerrada que o babbo, seu Fernando, e a mamma, dona Emma, faziam contra ele em Santo André, na Grande São Paulo, onde moravam. Quando a irmã Ainez comunicou à família que seu marido, Eurico, havia conseguido um posto de vendedor para o caçula, em São Paulo, os pais praticamente obrigaram-no a aceitar a vaga.

Justamente por essa insistência, ficaram de mãos atadas quando, alguns meses depois, ouviram o caçula reclamar da distância entre a residência e o trabalho - afirmando, com um olhar preocupadíssimo, que aquilo poderia prejudicar seu rendimento profissional. Mesmo sabendo que o discurso era pura balela, o casal teve de assistir a João arrumar as malas e bandear-se até uma pequena pensão na ladeira Porto Geral. O jeito era rezar para que o filho mantivesse a boquinha, cujo salário era mais do que razoável. Mas, para azar da família, o que João Rubinato almejava estava próximo demais da sua rota de trabalho. Como o jovem não era de resistir a tentações, as estações de rádio paulistanas, que despontavam como a coqueluche da época, ganharam um assíduo frequentador. As ondas sonoras desviavam o vendedor da labuta e o carregavam para as sedes das emissoras Cruzeiro do Sul, no largo da Misericórdia, Record, na praça da República, e Rádio São Paulo, recém-inaugurada na rua 7 de Abril.

Além de acompanhar os programas, o rapaz procurava acomodar-se nos bares e botecos onde os funcionários das estações recarregavam as baterias. Entre uma branquinha e outra, acabaria conhecendo figuras já consagradas no meio radiofônico local, como o locutor Nicolau Tuma, os maestros Gaó e José Nicolini e os cantores Januário de Oliveira e Raul Torres. Em pleno horário de expediente, usava sua lábia não para empurrar mercadorias aos comerciantes, mas para convencer os cartazes do rádio de que também ele poderia fazer e acontecer diante de um microfone. Não demorou para que o admirador de Noel Rosa e Carlos Gardel, dono de uma voz que poderia ser classificada entre o regular e o sofrível - mais para o sofrível -, se enturmasse com os artistas. De tanto insistir, recebeu em 1934 o convite para participar do programa Calouros do Rádio, pioneira criação do produtor Celso Guimarães para a Rádio Cruzeiro do Sul. João estava radiante: era a oportunidade que pedira a Deus. Cheio de prosa, foi escolher o terno, a gravata e comprar um pote extra de gomalina para ajeitar os cabelos. Tinha de ficar na estica para aquele sábado.

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Cantar na Cruzeiro do Sul, prefixo PRB-6, era privilégio para poucos. Desde sua fundação, em 1927, como PRAO Sociedade Rádio Cruzeiro do Sul, e de sua retomada em 1932, após um longo período de inatividade, a estação de Alberto Byington Jr. primava pela excelência. Estúdios amplos e bem equipados, mantidos por um eficiente corpo de técnicos, davam o tom na moderna sede do largo da Misericórdia. No topo do edifício, um transmissor de mil watts novinho em folha, fabricado pela própria Byington & Cia., garantia a perfeita irradiação dos programas, sem as dificuldades técnicas encontradas na época da inauguração.

Com essa invejável estrutura, a "Emissora do Coração de São Paulo" podia dedicar-se a sua principal vocação: a música. Nesse quesito, a Cruzeiro do Sul despontava na constelação radiofônica de Piratininga. Em primeiro lugar, pelo fato de não irradiar discos: todos os números musicais eram executados em estúdio, onde o maestro Odmar Amaral Gurgel, o Gaó, comandava um escrete de duas dezenas de virtuoses. O elenco tinha a bênção financeira do gerente da emissora, Wallace Downey, que prezava como poucos pelos predicados do conteúdo transmitido. Além disso, como a representação da gravadora Columbia no Brasil estava, desde 1929, a cargo do próprio Byington Jr., os artistas do cast da empresa americana - como Orlando Silva, Castro Barbosa, Carlos Galhardo, Del Rio e Moreira da Silva - também costumavam apresentar-se ao vivo no auditório da rádio, acompanhados pela Orquestra Jazz Sinfônica de Gaó.

Tratava-se de um diferencial e tanto, como se pode imaginar, na acirrada briga com as rivais Educadora, pioneira do rádio em São Paulo, e Record. Também jogava a favor da PRB-6 o fato de que suas transmissões não ficavam limitadas ao público paulista: a reinauguração da Cruzeiro do Sul deu origem à Cadeia Verde-Amarela, que contava, entre outras, com a Rádio Philips do Brasil e a Rádio Mayrink Veiga, ampliando seu alcance não só para o Rio de Janeiro como para outros e longínquos estados brasileiros. Não era à toa, portanto, que João Rubinato estava tão animado com sua estreia. Animado e ansioso. Conforme se aproximava o dia da apresentação, o nervosismo aumentava. Afinal, fora do estúdio, o vendedor de tecidos poderia botar banca para quem fosse; na hora da onça beber água, porém, a conversa era outra. O programa seria transmitido diretamente da sede da emissora, no Edifício Byington, número 4 do largo da Misericórdia. Ao subir para o auditório, o novato já sentia a pressão.

A começar pelo locutor Jorge Amaral, os profissionais pareciam deixar a cordialidade nos bares da rua Direita. Amigos, amigos; negócios à parte. Entre todos os possíveis carrascos de principiantes, contudo, nenhum era mais intimidador do que o diretor artístico do programa de calouros - cujo nome fantasia, por ironia, soava indefesamente feminino: Paraguassu. Indiscutivelmente o cantor paulistano de maior cartaz na época, Paraguassu - Roque Ricciardi na certidão de nascimento - era um monstro da música popular. Um dos primeiros contratados da Sociedade Rádio Educadora Paulista, em 1923, o "italianinho do Brás" recebia até trezentas cartas por semana de fãs. Em 1929, com um prestígio sem precedentes, foi convidado pela Columbia para integrar o seu elenco; passou a ser conhecido também como o "cantor das noites enluaradas", intérprete de inúmeros sucessos como "Bem-te-vi", "A juriti", "Triste caboclo" e "Lamentos (Se souberes)", de seu amigo Catulo da Paixão Cearense. Em pouco tempo gravara centenas de discos, alcançando um êxito estrondoso que ultrapassaria facilmente as fronteiras bandeirantes. Como se o currículo artístico de Paraguassu não fosse por si só assombroso, outro dado fazia arrepiar os verdes candidatos do programa de novatos da Cruzeiro do Sul. Na virada das décadas de 1920 e 1930, a voz do cantor - apenas a voz, registre-se - fora responsável por provocar nada menos do que sete mortes passionais em vários cantos do país.

A primeira onda de óbitos aconteceu com a sentimental e lamuriosa interpretação de "Mágoas", música de sua autoria, que levou oficialmente cinco apaixonados ao suicídio. Os casos foram registrados em Limeira, Rio Bonito, Curitiba e Campinas (dois). Alguns suicidas deixaram a referência à canção em um bilhete; em outras ocorrências, coube à polícia encontrar o disco, sereno e fatídico, repousando na eletrola ao lado do cadáver. Uma segunda música, a valsa "Morrer de amor", ainda serviria como trilha sonora original para um homicídio seguido de suicídio envolvendo um casal enamorado de São Paulo.

Mais: assim como os matadores que fazem marcas em seus revólveres a cada vítima eliminada, Paraguassu fazia questão de carregar consigo recortes de jornal que comprovavam suas incríveis façanhas. Um deles era da revista Carioca, outro do periódico A Gazeta (este último mostrando os dois mortos na cama, o homem com o revólver sobre o peito). Claro que o ponderado Paraguassu, galã de olhos claros, educado e cordial, estava muito longe de ser um psicopata. Em todo caso, era melhor não desapontá-lo - ainda que fosse só por precaução. Para ficar à vontade ao microfone, João Rubinato escolheu o samba "O que será de mim", conhecida composição de Ismael Silva, Nilton Bastos e Francisco Alves. Gravada em 1931 pelo próprio Chico Viola, ao lado de Mário Reis, a canção era considerada uma espécie de hino da malandragem, reforçando sua mensagem nos versos finais: "O trabalho não é bom/ Ninguém pode duvidar/ Trabalhar só obrigado/ Por gosto ninguém vai lá". Por algum motivo, o vendedor de tecidos simpatizava com a causa defendida pelo trio. E foi tentar defendê-la em sua primeira aparição no rádio - só tentar. Depois de o locutor Jorge Amaral anunciar com sua possante voz a interpretação de João Rubinato, o calouro teve tempo apenas para balbuciar os primeiros versos do samba: Se eu precisar algum dia De ir pro batente...

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"Adoniran: uma Biografia"
Autor: Celso de Campos Jr.
Editora: Editora Globo
Páginas: 680
Quanto: R$ 59,90
Onde comprar: pelo telefone 0800-140090 ou na Livraria da Folha.

 
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