Livraria da Folha

 
12/02/2010 - 11h08

Abusada pelo pai e maltratada pela mãe, "Preciosa" estreia favorita ao Oscar

da Livraria da Folha

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Versão cinematográfica tem Mo'Nique (dir) como favorita ao Oscar de atriz coadjuvante por seu desempenho como a mãe de preciosa
Versão cinematográfica tem Mo'Nique (dir) como favorita ao Oscar de atriz coadjuvante por seu desempenho como a mãe de Preciosa

Ela pesa mais de 100 quilos. Está grávida pela segunda vez, de seu próprio pai. Sua mãe a agride. Ela não sabe ler ou escrever. Ela está no ensino fundamental e tem 16 anos. Estes são apenas alguns dos detalhes que fazem da vida de Preciosa algo terrível.

Moradora do Harlem de 1980, ela conta em primeira pessoa as mazelas de sua vida infeliz. A primeira gravidez aos 12 anos gerou uma menina com Síndrome de Down que é usada pela mãe de Preciosa para conseguir dinheiro na assistência social.

O único momento razoável de seu dia é a escola, da qual ela é expulsa e encaminhada para uma escola especial. É lá que a jovem vai conhecer Blue Rain, uma professora empenhada em ensinar mais do que a ler e escrever, ela ensina suas alunas a enfrentarem seus medos e terem coragem de perseguir seus sonhos.

Longe de caminhar para mensagens edificantes e redenções, "Preciosa" acompanha o desabafo e luta da garota que, estimulada por sua professora, coloca em seu diário o que tem vontade de gritar ao mundo.

Escrito pela poeta Sapphire, é um relato criativo de sua experiência como atendente em um abrigo para mulheres. A protagonista de seu livro carrega um pouco de cada história que ela acompanhou. Sua escrita leva o leitor a vivenciar cada abuso, cada devaneio, cada sentimento que a garota do Harlem vive.

Transformado em longa-metragem produzido por Oprah Winfrey, "Preciosa" chega aos cinemas brasileiros esta sexta-feira para justificar as aclamações pelos festivais que passou e suas grandes chances para o Oscar. Mo'Nique, que interpreta a mãe que abusa física, verbal e psicologicamente da filha, é uma das favoritas ao prêmio de melhor atriz coadjuvante.

Leia abaixo trecho do primeiro capítulo de "Preciosa".

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Obra conta as dificuldades de uma adolescente obesa e analfabeta.
Obra conta as dificuldades de uma adolescente obesa e analfabeta.

Eu levei bomba quando tava com 12 anos por causa que tive um neném do meu pai. Foi em 1983. Fiquei um ano fora da escola. Esse vai ser meu segundo neném. Minha filha tem Sindro de Dao. É retardada. Levei bomba na segunda série também, quando tinha 7 anos, porque não sabia ler (e ainda mijava nas calças). Eu devia tá na décima primeira série, estudando pra ir pra décima segunda série pra poder me formar. Mas não tô. Tô na nona série.

Fui suspensa da escola por causa que tô grávida e acho que isso não tá certo. Eu não fiz nada!

Meu nome é Claireece Precious Jones. Não sei por que tô contando isso. Acho que é porque não sei até onde vou com essa história, nem sei se isso é uma história nem por que tô falando; nem se vou começar do começo ou daqui desse ponto ou daqui a duas semanas. Daqui a duas semanas? Claro, a gente podemos fazer o que quiser quando tá falando ou escrevendo, não é que nem viver, quando a gente só podemos fazer o que tá fazendo. Tem gente que conta uma história que não faz nenhum sentido nem é de verdade. Mas eu vou tentar fazer sentido e contar a verdade, se não de que porra adianta? Já não tem mentira e merda demais por aí?

Bom, é isso aí, é quinta-feira, 24 de setembro de 1987 e eu tô andando pelo corredor. Tô com aparência legal, cherando bem - refrescante, limpa. Tá quente mas eu não tiro a jaqueta de couro mesmo com esse calor, ela podia ser roubada ou perdida. O Sr. Wicher diz que é canícula. Não sei por que ele chama assim. Ele quer dizer é que tá quente, 32 graus, tipo dia de verão. E não tem nenhum, tô falando: nenhum mesmo, ar-condicionado nesse prédio escroto. O prédio que tô falando, claro, é a escola 146 na rua 134 entre a avenida Lenox e o bulevar Adam Clayton Powell Jr. Tô andando pelo corredor, indo pro primeiro período de matemática. Não faço ideia por que eles botam uma merda tipo matemática no primeiro período. Talvez para se livrar logo daquilo. Na verdade nem me incomodo tanto assim com matemática que nem eu achava. Eu só entro na sala do Sr. Wicher e sento. A gente não tem lugar fixo na sala do Sr. Wicher, cada um pode sentar onde quiser. Eu sento na mesma carteira todo dia, no fundo, na última fila, perto da porta. Mesmo sabendo que a porta de trás fica trancada. Não falo nada de nada. Ele não fala nada comigo, agora. No primeiro dia ele falou:

- Turma, abram o livro na página 122, por favor.

Não me mexi. Ele disse:

- Srta. Jones, eu disse para abrir o livro na página 122.

E eu disse:

- Filho da puta, não sô surda!

A turma toda caiu na gargalhada. Ele ficou vermelho. Bateu a mão com força no livro e disse:

- Tente ter um pouco de disciplina.

Ele é um branco nanico e magricela, deve ter tipo 1,60m. Um branquelo xexelento, como diria minha mãe. Olhei pra ele e disse:

- Eu também sei bater. Cê quer bater? - Aí peguei meu livro e bati na mesa com força. A turma riu mais um pouco.

Ele disse:

- Srta. Jones, eu agradeceria se saísse da sala AGORA.

E eu disse:

- Não vô pra porra de lugar nenhum até a campainha tocar. Vim aqui pra aprender matemática e você vai me ensinar. - Ele parecia uma cachorra que acabou de ser atropelada por um trem. Não sabia o que fazer. Ele tentou recuperar a pose, bancar o maneiro, disse:

- Bom, se quer aprender, acalme-se.

Falei:

- Eu tô calma.

Ele disse:

- Se quer aprender, cale a boca e abra o livro.

O rosto dele tava vermelho, ele tava tremendo. Eu dei pra trás. Ganhei a briga. Acho.

Eu não queria prejudicar ele nem deixar ele sem graça daquele jeito, sabe. Mas não podia deixar saber, ninguém saber, que a página 122 era igual à página 152, 22, 3, 6, 5 - todas as página era igual pra mim. E eu quero aprender mesmo. Todo dia eu digo a mim mesma que: alguma coisa vai acontecer, alguma merda tipo naqueles programas de televisão. Vou me dar bem ou alguém vai fazer eu me dar bem - vou aprender, alcançar a turma, ser normal, mudar pra uma carteira na frente da sala. Mas, de novo, não foi naquele dia.

Mas era do primeiro dia que eu tava falando. Hoje não é o primeiro dia e como eu falei estava indo pra aula de matemática quando a Sra. Lichenstein me puxou do corredor pra sala dela. Fiquei puta da vida de verdade porque eu até gosto de matemática, mesmo não fazendo nada, nem abro meu livro, só fico lá sentada durante 50 minutos. Não crio encrenca. Na verdade uns outros nativo fica chateados porque eu pego no pé deles. Digo: "Cala a boca, seus filho da puta, tô tentando aprender alguma coisa." Primeiro eles ri tipo tentando me fazer sacanear o Sr. Wicher e atrapalhar a aula. Então eu levanto e falo: "Cala a boca, seus filho da puta, tô tentando aprender alguma coisa." A negada aprontando fica toda confusa, o Sr. Wicher fica confuso. Mas eu sou grande, tipo 1,77m, peso mais de 100 quilos. A galera tem medo de mim.

- Criolo babaca - digo pra um cara que ficou de pé. - Senta aí, para de bancar o idiota. - O Sr. Wicher me olha confuso mas agradecido. Eu sou os polícias do Sr. Wicher. Mantenho a lei e a ordem. Eu gosto dele, finjo que ele é meu marido e que a gente mora junto em Weschesser, sei lá onde é isso.

Pelos olho dele dá pra ver que o Sr. Wicher também gosta de mim. Eu queria dizer pra ele que todas s página são igual pra mim, mas não posso. Tô tirando notas bem boas. Geralmente eu tiro. Só quero sair da porra da Escola 146 e ir pro colégio de ensino médio e pegar meu diploma.

Bom, de qualquer modo, tô na sala da Sra. Lichenstein. Ela tá me olhando, eu tô olhando pra ela. Não falo nada. Até que ela diz:

- Então, Claireece, vejo que estamos esperando um pequeno visitante.

Mas não é tipo uma pergunta, ela tá é me dizendo. Continuo sem falar nada. Ela fica me olhando de trás daquela mesona de madeira, tá com os braço de cadela branca cruzados em cima da mesa.

- Claireece.

Todo mundo me chama de Precious. Eu tenho três nomes: Claireece Precious Jones. Só os escroto que eu odeio me chama de Claireece.

- Quantos anos você tem, Claireece?

A piranha branca tá com minha ficha na mesa. Eu tô vendo. Não sô tão lesada assim. A vaca sabe quantos anos eu tenho.

- Dezesseis anos é ahhh bem ahhh - ela pigarreia - velha para estar no ensino fundamental.
Continuo não falando nada. Se ela sabe tanto, que fale.

- Ora, você está grávida, não está, Claireece?

Agora ela tá perguntando. Há uns segundos a puta sabia que eu tava.

- Claireece?

Ela tá tentando falar toda mansinha e coisa e tal.

- Claireece, estou falando com você.

Continuo não falando nada. Essa puta não tá me deixando ir pra aula de matemática. O Sr. Wicher gosta de mim lá, precisa de mim pra manter aqueles criolo aprontador na linha. Ele é maneiro, usa terno todo dia. Ele não vem pra escola mal-arrumado que nem uns outros professor escrotos.

- Não quero perder mais aula de matemática - digo pra vaca idiota da Sra. Lichenstein.

Ela me olha como se eu tivesse dito que queria chupar um pau de cachorro ou alguma merda assim. Qual é a desse balde de buceta? (É assim que minha mãe chama as mulher de quem ela não gosta: balde de buceta. Eu meio que saco e meio que não saco o que é isso, mas gosto do som, por isso também digo.)

Me levanto pra sair, a Sra. Lichenstein me pede pra sentar por favor, ainda não acabou comigo. Mas eu acabei com ela, é isso que ela não saca.

- Este é o seu segundo bebê? - ela pergunta. Eu fico pensando o que mais tá escrito naquela ficha que tem o meu nome. Odeio ela. - Acho que a gente deveria ter uma reunião, Claireece. Eu, você e sua mãe.

- Pra quê? Eu não fiz nada. Eu faço meu dever. Não crio encrenca. Minhas nota são tudo boa.
A Sra. Lichenstein me olha como se eu tivesse três braços, fedor saindo da buceta ou sei lá o quê.

Sinto vontade de falar: o que minha mãe vai fazer? O que ela vai fazer? Mas não falo. Só falo:

- Minha mãe tá ocupada.

- Bom, talvez eu possa dar um jeito de ir à sua casa... - A expressão da minha cara deve ter acertado ela, e é isso que eu ia fazer se ela falasse mais uma palavra. Ir na minha casa! Puta branca enxerida! Acho que não! A gente não vai na sua casa em Weschesser ou sei lá em que porra de lugar que vocês, malucos, mora. Olha só, já tô de saco cheio de escutar isso; a vaca branca quer fazer uma visita. - Bom, então, Claireece, acho que terei de suspender você.

- Por quê?

- Você está grávida e...

- A senhora não pode me suspender por causa que eu tô grávida, eu tenho direitos!

- Sua atitude, Claireece, é de total falta de cooperação...

Estico a mão por cima da mesa. Eu ia arrancar aquela bunda gorda da cadeira. Ela cai para trás tentando se afastar de mim e começa a gritar:

- SEGURANÇA, SEGURANÇA!

Eu saí pela porta e já tava na rua e ainda tava ouvindo aquela babaca gritando "SEGURANÇA, SEGURANÇA!".

- Precious! - Essa é minha mãe me chamando.

Não falo nada. Ela tava olhando minha barriga. Sei o que vem por aí. Fico lavando os prato. Comemos frango frito, purê de batata, molho, vagem e pão de forma no jantar. Não sei com quantos meses tô de gravidez. Não quero ficar ali parada e escutar minha mãe me chamar de vagabunda. Ficar berrando o dia inteiro que nem que ela fez na última vez. Vagabunda! Puta desgraçada! O que você andou fazendo? Quem! Quem! Queeeeem, que nem a coruja no filme da Disney que eu vi uma vez. Queeeem! Cê quer saber quem?

- Claireece Precious Jones, tô falando com você!

Continuo sem responder. Eu tava parada perto dessa pia na outra vez quando que eu tava grávida e as dor chegaram: tum_! Ahh tum! Nunca senti merda nenhuma assim antes. Começou a brotar suor na testa, uma dor que nem fogo tava me comendo por dentro. Só fiquei ali parada e a dor me batia, então a dor sentava, depois a dor levantava e me batia com mais força! E ela ali parada berrando_ comigo:

- Vagabunda! Vagabunda desgraçada! Sua vaca escrota! Não acredito, bem debaixo do meu nariz. Você andou dando por aí.

A dor me bate de novo, depois ela me bate. Eu tô no chão, gemendo.

- Mamãe por favor, mamãe por favor, por favor mamãe! Mamãe! Mamãe! MAMÃE! - Então ela me CHUTA no lado da cara!

- Puta! Puta! - ela fica berrando. Então a Sra. West que mora no nosso andar bate na porta, gritando:

- Mary! Mary! O que cê tá fazendo? Cê vai matar essa menina! Ela precisa de ajuda, não de surra, cê tá maluca?

Mamãe fala:

- Ela devia tê contado que tava grávida!

- Jezus Mary, você não sabia. Eu sabia, o prédio inteiro sabia. Cê tá maluca...

- Não venha me falar da minha própria filha...

Agora a Sra. West tá gritando:

- Liga pra emergência! Liga pra emergência! Liga pra emergência! - Ela chama mamãe de idiota.

Agora a dor tá andando em cima de mim. Pisando em mim. Não consigo ver nem escutar, só fico gritando:

- Mamãe! Mamãe!

Uns caras, daqueles cara de ambulância, não vi nem ouvi quando chegaram. Mas levanto a cabeça no meio da dor e ele tá ali. Um chicano com uniforme do serviço de saúde. Ele me empurra pra trás num travesseiro. Tô que nem uma bola, de tanta dor. Ele diz:

- RELAXA!

A dor me cravando que nem uma faca e aquele cucaracha falando em relaxar.

Ele encosta a mão na minha testa e põe a outra no lado da minha barriga.

- Qual é o seu nome?

- Hein?

- O seu nome.

- Precious.

Ele fala:

- Precious, ele já tá quase aqui. Quero que você empurre, tá ouvindo chica? Quando essa merda acertar você de novo, você vai junto e empurra, Prechosita. Empurra.

E eu empurrei.

Preciosa
Autora: Sapphire
Editora: Record
Páginas: 192
Quanto: R$ 29,90
Onde comprar: Pelo telefone 0800-140090 ou pelo site da Livraria da Folha

 
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