Livraria da Folha

 
05/03/2010 - 21h04

Filósofo não acreditava em "coexistência pacífica" mesmo nos anos 60

da Livraria da Folha

Nascido em Paris, Jean-Paul Sartre (1905-1980), um dos maiores nomes do existencialismo, sempre foi visto como um influente filósofo do pós-guerra, cheio de amargura e pessimismo.

Sempre rebelde, o francês não criticava apenas os nazistas, mas também a França de Charles de Gaulle (1890-1970). Sartre --juntamente com os filósofos da Escola de Frankfurt -- desempenhou um papel decisivo na revolta dos estudantes em maio de 1968, em Paris.

31.ago.1960/Reprodução
Veja reprodução da página do jornal que traz a notícia
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Acompanhado da escritora feminista Simone de Beauvoir (1908-1986), o filósofo esteve no Brasil em agosto de 1960. Após uma rápida visita a um velho amigo, o romancista Jorge Amado, concedeu uma longa entrevista aos jornalistas brasileiros.

Na entrevista afirmou que não acreditava em coexistência pacifica no mundo, questionou permanência francesa na Argélia e a atuação de Charles de Gaulle no caso.

Mesmo seus primeiros escritos demonstram uma profunda inquietação. Sua vida e pensamento se misturam com a própria história do século 20.

Em "A Imaginação", livro do início de sua carreira acadêmica, portanto pré-existencialista e antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial, Sartre apresentava esboços de um novo pensamento dentro da filosofia contemporânea. O francês apresenta as contradições entre o conceito de imagem e a natureza da imagem.

Abaixo, leia um trecho do livro.

Atenção: o texto reproduzido abaixo mantém a ortografia original do livro e não está atualizado de acordo com as regras do Novo Acordo Ortográfico. Conheça o livro "Escrevendo pela Nova Ortografia".

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OS GRANDES SISTEMAS METAFÍSICOS

A principal preocupação de Descartes, diante de uma tradição escolástica em que as espécies eram concebidas como entidades semimateriais, semi-espirituais, é separar com exatidão mecanismo e pensamento, o corporal sendo inteiramente reduzido ao mecânico. A imagem é uma coisa corporal, é o produto da ação dos corpos exteriores sobre nosso próprio corpo por intermédio dos sentidos e dos nervos. Como matéria e consciência se excluem uma à outra, a imagem, na medida em que é descrita materialmente em alguma parte do cérebro, não poderia ser animada de consciência. Ela é um objeto, do mesmo modo que os objetos exteriores. É exatamente o limite da exterioridade.

A imaginação ou o conhecimento da imagem vem do entendimento; é o entendimento, aplicado à impressão material produzida no cérebro, que nos dá uma consciência da imagem. Esta, aliás, não é posta diante da consciência como um novo objeto a conhecer, apesar de seu caráter de realidade corporal: de fato, isso remeteria ao infinito a possibilidade de uma relação entre a consciência e seus objetos. Ela possui a estranha propriedade de poder motivar as ações da alma; os movimentos do cérebro, causados pelos objetos exteriores, embora não contenham semelhança com elas, despertam na alma idéias; as idéias não vêm dos movimentos, são inatas no homem, mas é por ocasião dos movimentos que elas aparecem na consciência. Os movimentos são como signos que provocam na alma alguns sentimentos; porém, Descartes não aprofunda essa idéia do signo, ao qual parece dar o sentido de uma ligação arbitrária, e sobretudo não explica como há consciência desse signo; ele parece admitir uma ação transitiva entre o corpo e a alma que o leva ou a introduzir na alma uma certa materialidade, ou na imagem material uma certa espiritualidade. Não se compreende nem como o entendimento se aplica a essa realidade corporal muito particular que é a imagem, nem, inversamente, como no pensamento pode haver intervenção da imaginação e do corpo, uma vez que, segundo Descartes, mesmo os corpos são apreendidos pelo entendimento puro.

A teoria cartesiana não permite distinguir as sensações das lembranças ou das ficções, pois em todos os casos há os mesmos movimentos cerebrais, quer os espíritos animais sejam acionados por uma excitação vinda do mundo exterior, do corpo ou mesmo da alma. Somente o juízo e o entendimento permitem, com base na coerência intelectual das imagens, decidir quais delas correspondem a objetos existentes.

Descartes limita-se, pois, a descrever o que se passa no corpo quando a alma pensa, a mostrar que ligações corporais de contigüidade existem entre essas realidades corporais que são as imagens e o mecanismo de sua produção. Mas não se trata para ele de distinguir os pensamentos baseados nesses mecanismos, que pertencem, assim como os outros corpos, ao mundo das coisas duvidosas.

Spinoza afirma ainda mais claramente que Descartes que o problema da imagem verdadeira não se resolve no nível da imagem, mas apenas pelo entendimento. A teoria da imagem é, como em Descartes, separada da teoria do conhecimento e liga-se à descrição do corpo: a imagem é uma afecção do corpo humano; o acaso, a contigüidade, o hábito são as fontes de ligação das imagens, e a lembrança é a ressurreição material de uma afecção do corpo, provocada por causas mecânicas; os transcendentais e as idéias gerais que constituem a experiência vaga são o produto de uma confusão de imagens, de natureza igualmente material. A imaginação, ou o conhecimento por imagens, é profundamente diferente do entendimento; ela pode forjar idéias falsas e só apresenta a verdade sob uma forma truncada.

Contudo, embora se oponha à idéia clara, a imagem tem em comum com ela o fato de também ser uma idéia; é uma idéia confusa, que se apresenta como um aspecto degradado do pensamento, mas na qual se exprimem as mesmas ligações que no entendimento. Imaginação e entendimento não são absolutamente distintos, pois uma passagem é possível de uma ao outro pelo desenvolvimento das essências envolvidas nas imagens. Eles estão, como o conhecimento do primeiro gênero e o do terceiro gênero, como a servidão e a liberdade humanas, ao mesmo tempo separados entre si e continuamente ligados.

A imagem, em Spinoza, possui um duplo aspecto: ela é profundamente distinta da idéia, é o pensamento do homem enquanto modo finito, e no entanto é idéia e fragmento do mundo infinito que é o conjunto das idéias. Separada do pensamento, como em Descartes, ela tende também, como em Leibniz, a confundir-se com ele, já que o mundo de ligações mecânicas descrito por Spinoza como o mundo da imaginação não está, mesmo assim, separado
do mundo inteligível.

Todo o esforço de Leibniz relativamente à imagem é estabelecer uma continuidade entre estes dois modos de conhecimento: imagem, pensamento; a imagem, nele, é penetrada de intelectualidade.

Também ele descreve inicialmente como um puro mecanismo o mundo da imaginação, onde nada permite distinguir imagens propriamente ditas e sensações, umas e outras exprimindo estados do corpo. O associacionismo de Leibniz, aliás, não é mais fisiológico; é na alma que, de um modo inconsciente, as imagens se conservam e são ligadas entre si. Somente as verdades estabelecidas pela razão têm entre si ligações necessárias, somente elas são claras e distintas.Portanto, há distinção ainda aqui entre o mundo das imagens, ou idéias confusas, e o mundo da razão.

Sua relação é concebida de maneira normal: em primeiro lugar, segundo Leibniz, o entendimento nunca épuro, pois o corpo está sempre presente à alma; mas, por outro lado, a imagem só tem um papel acidental e subordinado, o papel de um simples auxiliar do pensamento, de um signo. Leibniz busca aprofundar essa noção de signo: segundo ele, o signo é uma expressão, ou seja, na imagem há conservação do mesmo sistema de relações que no objeto do qual ela é a imagem, a transformação de um no outro pode exprimir-se por uma regra válida tanto para a totalidade quanto para cada parte.
Assim, a única diferença entre imagem e idéia é que, num caso, a expressão do objeto é confusa e, no outro, clara; a confusão deve-se ao fato de todo movimento envolver nele a infinidade dos movimentos do universo e ao fato de o cérebro receber uma infinidade de modificações às quais só pode corresponder um pensamento confuso, envolvendo a infinidade das idéias claras que corresponderiam a cada detalhe. As idéias claras, portanto, estão contidas nas idéias confusas; são inconscientes, são percebidas sem serem discernidas; somente é discernida sua soma total, que nos parece simples pela ignorância em que estamos de seus componentes.

Portanto, entre imagem e idéia há uma diferença que se reduz quase a uma pura diferença matemática: a imagem tem a opacidade do infinito; a idéia, a clareza da quantidade finita e analisável. Ambas são expressivas.

Entretanto, se a imagem se reduz a elementos inconscientes em si mesmos racionais, a uma infinidade de relações expressivas, participando assim da dignidade do pensamento, seu aspecto subjetivo não se explica mais. De que maneira a soma de percepções inconscientes, do amarelo e do azul, por exemplo, produz a apercepção consciente do verde? De que maneira, diminuindo o grau de consciência das idéias elementares, sua consistência no espírito pode dar lugar a essas bruscas combinações? Leibniz não se inquieta com isso. Ele busca reencontrar na imagem um sentido que a vincule ao pensamento e faz desaparecer a imagem como tal. Inclusive abusa de uma analogia matemática quando toma por estabelecido que confusão é o mesmo que infinidade, opacidade ou ainda irracionalidade; de fato, o irracional do matemático nunca é senão um certo racional que ainda não se sabe assimilar; porém, colocando-nos no terreno lógico, nunca poderemos, ao término de uma construção, estar diante de uma opacidade absolutamente alógica contra a qual nenhum pensamento tem mais valor. A qualidade não é a quantidade, mesmo infinita, e Leibniz não chega a restituir à sensação o caráter sensível, qualitativo, do qual inicialmente a despojou.

Aliás, a noção de expressão, que permite atribuir aos dados sensíveis uma significação intelectual, é obscura. É uma relação de ordem, diz Leibniz, uma correspondência. Mas não pode existir representação natural de um "reino" por um outro "reino"; sempre é preciso uma construção arbitrária do espírito para que a seguir o espírito possa admitir que se encontra diante de relações equivalentes.

Assim, ao tentar fundar o valor representativo da imagem, Leibniz não consegue nem descrever claramente sua relação com o objeto, nem explicar a originalidade de sua existência enquanto dado imediato da consciência.

Enquanto Leibniz, para resolver a oposição cartesiana imagem/pensamento, tende a eliminar a imagem como tal, o empirismo de Hume se esforça, ao contrário, por reduzir todo o pensamento a um sistema de imagens. Ele toma do cartesianismo sua descrição do mundo mecânico da imaginação e, isolando esse mundo do terreno fisiológico no qual mergulhava, embaixo, e do entendimento, em cima, faz dele o único terreno no qual o espírito humano se move realmente.

No espírito, há somente impressões e cópias dessas impressões que são as idéias e que se conservam no espírito por uma espécie de inércia; idéias e impressões não diferem em natureza, o que faz com que a percepção não se distinga nela mesma da imagem. Para reconhecê-las, será preciso recorrer a um critério objetivo de coerência, de continuidade cujo sentido é bem mais obscuro do que em Descartes, pois não se compreende sobre o que o espírito pode se apoiar se ele é constituído unicamente por um mosaico de impressões -, para sair das impressões e elevar-se acima
delas por um julgamento.

As imagens estão ligadas entre si por relações de contigüidade, de semelhança, que agem como "forças dadas"; elas se aglomeram segundo atrações de natureza em parte mecânica, em parte mágica. A semelhança de algumas imagens nos permite atribuir-lhes um nome comum que nos leva a crer na existência da idéia geral correspondente, o conjunto das imagens sendo o único real, no entanto, e existindo "em potência" no nome.

Toda essa teoria supõe, porém, uma noção que jamais é nomeada, a de inconsciente. As idéias não têm outra existência senão a de objetos internos do pensamento, mas elas nem sempre são conscientes, pois só despertam por sua ligação com idéias conscientes; portanto, perseveram em seu ser à maneira de objetos materiais, estão sempre inteiramente presentes no espírito, só que nem todas são percebidas. Por quê? E de que maneira o fato de serem extraídas por uma força dada a uma idéia consciente lhes confere o caráter consciente? Hume não coloca o problema. A existência da consciência desaparece totalmente por trás de um mundo de objetos opacos que emitem, não se sabe de onde, uma espécie de fosforescência, aliás caprichosamente distribuída, e que não desempenham nenhum papel ativo.

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"A Imaginação"
Autor: Jean-Paul Sartre
Editora: L&PM Editores
Páginas: 144
Quanto: R$ 13,00
Onde comprar: 0800-140090 ou na Livraria da Folha

 
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