Livraria da Folha

 
05/03/2010 - 13h37

Leia trecho de "Feios", livro no qual cirurgia cria casta de adolescentes perfeitos

da Livraria da Folha

Divulgação
Um futuro no qual adolescentes se tornam fisicamente perfeitos
Um futuro no qual adolescentes se tornam fisicamente perfeitos

"Feios", que está sendo lançado pela Galera Record, trata da modificação física e emocional dos adolescentes. O livro traz uma pitada de ficção científica, além conspirações em um mundo onde tudo é observado. Imagine um casamento entre "1984", de George Orwell, e "Diário da Princesa", de Meg Cabot. Tudo isso misturado com diversas cenas de ação e até perseguições em skates voadores.

Em um futuro não muito distante todos os adolescentes esperam ansiosos o aniversário de 16 anos, pois então serão submetidos a uma cirurgia plástica obrigatória que corrigirá todas as suas imperfeições físicas, transformando-os em perfeitos. Mas nem todos concordam com a mudança.

A obra do norte-americano Scott Westerfeld, que figurou na lista de mais vendidos do "New York Times", é a primeira de uma tetralogia --formada ainda por "Perfeitos", que será lançado em agosto, seguido por "Specials" (especiais) e "Extras".

Leia abaixo o primeiro capítulo de "Feios".

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NOVA PERFEIÇÃO

O céu de início de verão tinha cor de vômito de gato.

Obviamente, Tally pensava, quando a dieta do seu gato se resume por um bom tempo a ração sabor salmão. Movendo-se rapidamente, as nuvens até lembravam peixes, desfeitas em escamas pelos ventos das altitudes elevadas. À medida que a claridade se ia, lacunas azuis da cor do mar apareciam, como um oceano de cabeça para baixo, frio e infinito.

Num verão qualquer, um pôr do sol como esse teria sido lindo. Mas nada era lindo desde que Peris havia se tornado perfeito. Perder seu melhor amigo é uma droga, mesmo que apenas por três meses e dois dias.

Tally Youngblood esperava pela noite.

Ela podia ver Nova Perfeição da janela. Os prédios onde as festas aconteciam já estavam todos iluminados. Linhas sinuosas destacadas por tochas indicavam os caminhos por entre os jardins. Balões de ar quente puxavam suas cestas em direção ao céu rosado levando passageiros que atiravam rojões de artifício contra outros balões e paraquedistas que passavam. O som de risos e música vinha como uma pedrinha sobre a água, arremessada com a força certa, as pontas ferindo os nervos de Tally. Nos limites da cidade, isolada pela forma oval do rio, tudo estava escuro. Àquela hora, todos os feios estavam dormindo.

Tally tirou seu anel de interface e disse:

- Boa noite.

- Bons sonhos, Tally - respondeu a sala.

Ela mastigou uma pílula de escovar os dentes, afofou os travesseiros e enfiou um antigo aquecedor portátil - um que gerava tanto calor quanto um ser humano do tamanho de Tally - embaixo dos lençóis.

E então saiu de fininho pela janela.

Do lado de fora, com a noite finalmente tomando o céu por completo, Tally se sentiu bem. Talvez fosse um plano idiota, mas qualquer coisa era melhor do que outra noite acordada na cama, afogada em lamentações. No familiar caminho coberto de folhas que levava à beira d'água, era fácil imaginar Peris andando nas pontas dos pés atrás dela, segurando o riso, pronto para uma noite espionando os perfeitos. Juntos. Ela e Peris haviam aprendido a enganar o inspetor aos 12 anos, uma época em que parecia que os três meses de diferença entre suas idades nunca teriam importância.

- Amigos para sempre - murmurou Tally, tocando a pequena cicatriz na palma de sua mão direita.

A água reluziu por entre as árvores. Ela podia ouvir as pequenas ondas produzidas por uma embarcação no rio se chocando contra a margem. Agachou-se atrás dos juncos. O verão era a melhor época para as expedições de espionagem. A grama estava alta, nunca fazia frio e não era preciso encarar um dia inteiro de aula no dia seguinte.

Obviamente, agora Peris podia dormir o quanto quisesse. Era apenas uma das vantagens de ser perfeito.

A antiga ponte se estendia, grandiosa por sobre a água. Sua imensa estrutura de metal estava escura como o próprio céu. Tinha sido construída há tanto tempo que suportava seu próprio peso, sem ajuda de qualquer estrutura suspensa. Em um milhão de anos, quando o resto da cidade estivesse em escombros, a ponte provavelmente continuaria de pé, como um osso fossilizado.

Ao contrário das outras pontes que levavam à Nova Perfeição, a antiga não falava - e, mais importante, não denunciava invasores. No entanto, mesmo em seu silêncio absoluto, sempre parecera sábia aos olhos de Tally; serenamente astuta, como uma árvore ancestral.

Agora seus olhos estavam totalmente acostumados ao escuro. Precisou de poucos segundos para achar a linha de pesca amarrada à pedra de sempre. Ela deu um puxão e ouviu o barulho da corda se revirando onde ficava escondida, entre as colunas da ponte. Continuou puxando até que a linha invisível se transformou numa corda úmida cheia de nós. A outra ponta permanecia atada à estrutura metálica da ponte. Tally esticou bem a corda e a amarrou à árvore de costume.

Ela teve de se agachar por entre a grama novamente quando outra embarcação passou no rio. As pessoas que dançavam no convés não notaram a corda que ia da ponte à margem. Nunca notavam. Os novos perfeitos estavam sempre ocupados demais em se divertir para perceberem pequenas coisas fora do lugar.

Depois que as luzes do barco sumiram na escuridão, Tally testou a firmeza da corda, usando o peso do seu corpo. Uma vez, ela havia se soltado da árvore, fazendo com que Tally e Peris pendessem para baixo e depois fossem arremessados para o meio do rio, caindo na água gelada. Tally sorriu com a lembrança. Preferiria estar na expedição - encharcada, no frio, ao lado de Peris - a estar seca e aquecida naquela noite, mas sozinha.

Pendurada por baixo da corda, com as mãos e os pés agarrados aos nós, Tally foi se arrastando até a estrutura sombria da ponte. Então subiu no esqueleto metálico e completou a travessia até Nova Perfeição.

Ela sabia onde Peris morava graças à única mensagem que ele tinha se dado ao trabalho de enviar desde que se tornara perfeito. Não era exatamente um endereço, mas Tally conhecia o truque para decodificar os números aparentemente aleatórios no fim do texto. Os dados a levaram a um lugar chamado Mansão Garbo, na parte alta da cidade.

Chegar lá seria complicado. Em suas aventuras, Tally e Peris sempre se mantinham perto do rio, onde a vegetação e a escuridão de Vila Feia deixavam mais fácil a tarefa de se esconder. Desta vez, Tally estava a caminho da área central da ilha, onde carros enfeitados e festeiros enchiam as ruas iluminadas a noite toda. Novos perfeitos, como Peris, gostavam de viver onde a diversão era mais intensa.

Embora tivesse decorado o mapa, se entrasse numa rua errada, Tally estaria perdida. Sem seu anel de interface, era invisível aos veículos. Seria atropelada como se nem existisse. De certa forma, Tally não existia por lá.

Pior do que isso: ela era feia. Mas tinha esperança de que Peris não visse as coisas daquele jeito. Ou, pelo menos, não a visse daquele jeito.

Tally não tinha ideia do que aconteceria se fosse pega. Não era como ser flagrada sem o anel, matando aula ou convencendo a casa a tocar sua música num volume mais alto do que o permitido. Todo mundo fazia aquele tipo de coisa - e todo mundo acabava se dando mal. Mas ela e Peris tomavam muito cuidado para não serem pegos nas expedições. Atravessar o rio era assunto sério.

Àquela altura, porém, era muito tarde para se preocupar. O que poderiam fazer com ela, afinal? Em três meses também se tornaria uma perfeita.

Tally avançou lentamente, acompanhando o rio, até alcançar um jardim. Penetrou a escuridão se enfiando embaixo de uma fileira de salgueiros-chorões. Sob sua proteção, foi percorrendo um caminho iluminado por pequenas candeias.

Havia um casal de perfeitos passeando pelo mesmo caminho. Tally ficou imóvel, mas os dois estavam distraídos, ocupados demais trocando olhares para notá-la agachada no escuro. Num silêncio absoluto, ela os viu passar e sentiu algo que costumava sentir ao observar um rosto perfeito. Mesmo quando ela e Peris os espiavam das sombras, rindo das idiotices que os perfeitos diziam e faziam, não conseguiam deixar de reparar. Havia algo mágico naqueles olhos grandes e perfeitos, algo que praticamente obrigava as pessoas a prestar atenção ao que diziam, a protegê-los dos perigos, a fazê-los felizes. Eles eram tão... perfeitos.

Depois que os dois sumiram na curva seguinte, Tally sacudiu a cabeça, tentando tirar aquelas imagens piegas da cabeça. Não estava ali para espiar. Era uma infiltrada, uma penetra, uma feia. E tinha uma missão a cumprir. O jardim se estendia pela cidade, serpenteando como um rio negro por entre casas e torres brilhantes que abrigavam festas. Após se esgueirar por mais alguns minutos, ela surpreendeu um casal escondido no meio das árvores (afinal, estavam no Passeio Público). No escuro, porém, eles não conseguiam ver seu rosto. Puderam apenas reclamar enquanto ela murmurava um pedido de desculpas e se afastava. Tally também não tinha conseguido ver muita coisa; apenas um emaranhado de pernas e braços perfeitos.

Finalmente, a poucos quarteirões de onde Peris morava, o jardim chegou ao fim.

Tally deu uma olhada de trás de uma cortina de trepadeiras. Estava num ponto a que ela e Peris nunca tinham chegado juntos. Também era o ponto final do seu planejamento. Naquelas ruas movimentadas e bem-iluminadas, não havia como se esconder. Ela levou os dedos ao próprio rosto e sentiu o nariz largo, os lábios finos, a testa grande demais e o volume dos cabelos crespos. Bastaria botar um pé fora do mato para ser notada imediatamente. Seu rosto parecia queimar sob a luz. O que estava fazendo ali? Devia ter ficado nas sombras de Vila Feia, à espera da sua vez.

Mas ela precisava se encontrar com Peris, falar com ele. Não sabia exatamente a razão, além de já estar cansada de imaginar milhares de conversas, todas as noites, antes de dormir. Tinham passado todos os dias juntos, desde a infância, e agora... nada. Talvez, se pudessem conversar por alguns minutos, seu cérebro parasse de falar com o Peris imaginário. Três minutos poderiam permitir que suportasse outros três meses.

Tally percorreu a rua com os olhos, à procura de jardins para invadir e entradas escuras que lhe servissem de abrigo. Sentiu-se como uma alpinista diante de um paredão imponente, buscando fendas e apoios para as mãos.

O movimento de carros diminuiu um pouco, e ela decidiu esperar, distraindo-se com a cicatriz em sua mão direita. Um pouco depois, soltou um suspiro e sussurrou: "Amigos para sempre." E deu um passo em direção à luz.

A explosão de sons que veio do seu lado direito a fez pular de volta para a escuridão, tropeçando por entre as trepadeiras e desabando de joelhos na terra macia, por alguns instantes certa de que havia sido descoberta.

A barulheira, contudo, logo se organizou num ritmo pulsante. Era uma bateria eletrônica que se arrastava pela rua. Do comprimento de uma casa, reluzia com os movimentos de suas dezenas de braços mecânicos, que golpeavam tambores de todos os tamanhos. Atrás, vinha uma multidão crescente de festeiros, dançando no ritmo, bebendo e arremessando as garrafas vazias contra a imensa e impenetrável máquina. Tally sorriu. Os festeiros usavam máscaras.

A máquina lançava máscaras pela parte de trás na tentativa de atrair mais pessoas para a parada improvisada: diabos, palhaços horripilantes, monstros verdes, alienígenas cinzas com grandes olhos ovais. Gatos, cachorros, vacas. Rostos com sorrisos tortos e narizes gigantes.

Com a procissão avançando devagar, Tally se enfiou no mato novamente. Algumas pessoas passavam tão perto que a doçura inebriante das garrafas dominava seu olfato. Um minuto depois, quando a máquina já estava meio quarteirão adiante, Tally saiu do esconderijo e pegou uma máscara abandonada do chão. O plástico, recém-modelado no interior da máquina, ainda tinha uma textura macia.

Antes de pôr a máscara no rosto, Tally percebeu que era da mesma cor rosada de vômito de gato que lembrava o pôr do sol. Havia um longo focinho e duas orelhinhas rosas. Podia sentir a gosma aderindo à sua pele e se ajustando ao seu rosto.

Tally abriu caminho por entre os festeiros bêbados para sair do outro lado da procissão, e pegou uma rua transversal que levava à Mansão Garbo. Usava uma máscara de porco.

 
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