Livraria da Folha

 
07/03/2010 - 09h28

Livro de Muriel Barbery é romance filosófico com linguagem fluida; leia trecho

da Livraria da Folha

Divulgação
Duas personagens dividem a voz do romance de Muryel
Duas personagens dividem a voz do romance de Muryel Barbery

O segundo livro da escritora francesa de origem marroquina Muriel Barbery pode ser chamado de romance filosófico, dada a profundidade de passagens que aparecem ao longo do texto.

Mas a linguagem fluida e leve não permite que o termo "filosófico" associado à obra assuste quem esteja com o livro em mãos. Barbery domina sua própria prosa e conduz o leitor por um caminho agradável, embora espinhoso como o ouriço do título.

A narrativa de "A Elegância do Ouriço" é como um jogo entre duas personagens singulares: a zeladora de um prédio de luxo em Paris, Renée, e Paloma, moradora de 13 anos do local. Primeiro aparecem como figuras independentes, e suas vozes não se misturam; depois, entrelaçadas, lançam argumentos filosóficos, reflexões artísticas, questões sociais.

Ambas estão entregues a um jogo de discursos bem construídos e satíricos quando chega ao edifício um novo morador, um senhor japonês bem-humorado que irá interferir na rotina delas.

Leia abaixo um trecho da obra:

*

"Marx muda totalmente minha visão do mundo", declarou-me hoje de manhã o jovem Pallières, que, em geral, nunca me dirige a palavra.

Antoine Pallières, rico herdeiro de uma velha dinastia industrial, é filho de um de meus oito patrões. Derradeira eructação da grande burguesia empresarial - que só se reproduz por meio de soluços limpos e sem vícios -, ele estava radiante com sua descoberta, que me contava por reflexo, sem sequer pensar que eu conseguiria entender alguma coisa. Que podem entender as massas trabalhadoras sobre a obra de Marx? A leitura é árdua, a língua, apurada, a prosa, sutil, e a tese, complexa.

E foi aí que quase me traí, bestamente.

"Tem que ler a Ideologia alemã", disse a esse cretino de parca verde-garrafa.

Para entender Marx e entender por que ele está errado, tem que ler Ideologia alemã. É o pedestal antropológico sobre o qual se construirão todas as exortações a um mundo novo e no qual está aparafusada uma certeza fundamental: os homens, que se perdem por desejar, melhor fariam se se limitassem às suas necessidades. Num mundo em que o húbris do desejo for amordaçado, poderá nascer uma organização social nova, isenta de lutas, opressões e hierarquias deletérias.

"Quem semeia desejo colhe opressão", estou prestes a murmurar como se só meu gato me escutasse.
Mas Antoine Pallières, cujo bigode embrionário e repugnante não tem nada de felino, olha para mim, duvidando de minhas estranhas palavras. Como sempre, sou salva pela incapacidade dos seres humanos de acreditar naquilo que explode as molduras de seus pequenos hábitos mentais. Uma zeladora não lê a Ideologia alemã, e, por conseguinte, seria incapaz de citar a décima primeira tese sobre Feuerbach. Além disso, uma zeladora que lê Marx está, necessariamente, de olho na subversão, e se vendeu a um diabo que se chama Confederação Geral dos Trabalhadores, a CGT. Que consiga lê-lo para a elevação do espírito é uma incongruência que burguês nenhum admite.

"Recomendações à senhora sua mãe", resmungo fechando a porta na cara dele e esperando que a disfonia das duas frases seja abafada pela força dos preconceitos milenares.

 
Voltar ao topo da página