Livraria da Folha

 
19/03/2010 - 16h14

Marquesa de Santos foi confundida com prostituta em porta de teatro

da Livraria da Folha

Divulgação
Livro trata de uma atrevida história de amor de nosso primeiro imperador
Livro trata da atrevida história de amor de nosso primeiro imperador

Nascida em São Paulo, Domitila de Castro Canto e Melo (1797-1867) entrou para a história do Brasil como marquesa de Santos, seu título de nobreza.

Titília, como era chamada pelos mais íntimos, foi confundida com uma prostituta na porta do Teatro da Constituição. Na ocasião, a nobre barrada tentava frequentar os eventos exclusivos da nobreza.

Por conta da confusão, dom Pedro 1º. encerrou a apresentação teatral. O episódio ocorreu no início do famoso romance entre os dois.

Porém, a marquesa era casada, desde os 16 anos de idade, com o alferes Felício Pinto Coelho de Mendonça. Seu casamento foi um dos maiores eventos vistos na pequena São Paulo do século 19.

O livro "A Marquesa de Santos (1813-1829)", escrito originalmente na década de 20, conta as aventuras amorosas da jovem paulista enquanto recria o ambiente da cidade de São Paulo.

Abaixo, leia um trecho do livro.

*

Treze de janeiro de 1813. Toda a gente, na cidadezinha de São Paulo, engalanara-se com espavento. Não houve matrona que não se enfeitasse de suas velhas joias. Não houve moça que não se alindasse de galantezas e tafularias. Tudo isso, tanto primor e garridice, para assistir a um acontecimento alvoroçante, inteiramente inesperado, que viera abalar com ruído, aquela pequenina sociedade de Província: o casamento do Alferes Felício Pinto Coelho de Mendonça, moço fidalgo da Casa Real, com a encantadora Domitila de Castro, última filha do Coronel João de Castro Canto e Melo.

Por isso, no casarão da Rua do Ouvidor, onde morava a noiva, burburinhava, havia dias já, tremenda fervedura de arranjos e preparativos.

O velho João de Castro sempre se gabara de seus avós. Gloriava- se, frequentes vezes, de ser fidalgo de lei. A sua mulher, D. Escolástica Bonifácia, apregoava-se, também, com orgulho, descendente dos Toledo Ribas. Eram eles, não havia dúvida, gente de sangue limpo, honrada, com larga parentela na cidade e na Província. E ambos, no casamento da caçula, timbraram em oferecer aos amigos bela noitada de festança grossa, com bródio e baile, que estivesse à altura do seu sangue e do seu nome.

Que rebuliço o que ia pela casa adentro! D. Escolástica, muito atarefada, não cessava de vascolejar, de arejar, de espanejar. Era um destramelar armários, um remexer empoeiradas arcas, um revirar canastras, um escancarar baús, um arrancar lá do fundo de tudo isso, para expor ao sol, os preciosos guardados antigos, as coisas nobres e magníficas, as largas toalhas de crivo, as rendas de bilro, os panos bordados, a prataria do Reino, as peças de porcelana. Sobretudo, com muitos mimos, era um esfregar aquelas pesadas louças de friso azul, tão faladas na cidade, que a boa velha guardava com ciúmes, enternecidamente, para os graves regabofes da família. Quando, em meio àquela lufa-lufa, um canto de sala parecia mais despido, ou faltavam, acolá, enfeites mais vistosos, logo a cuidadosa D. Escolástica, com o seu pronto expediente, gritava para um dos moleques da cozinha:

- Dito! Corra à casa de prima Angélica e diga assim para ela me emprestar o jarrão vidrado da sala de fora.

Os moleques e os escravos, à busca de jarrões vidrados, corriam à Rua do Ouvidor. Da Rua do Ouvidor à Rua do Cotovelo. Da Rua do Cotovelo à Rua da Princesa. Enquanto isso, na cozinha, entre as mucamas, ia largo e febril atarefamento. Despejavam-se pacotes de araruta. Besuntavam-se forminhas para bons-bocados. Desenferrujavam-se as rosetas de florear sequilhos. Folheava-se a massa das queijadas. Recheavam-se os pastéis de Santa Clara. Pingavam-se assadeiras de suspiro. E as raparigotas, brandindo garfos célebres, faziam ecoar sonoramente, no bojo das terrinas, furioso bater de gemas e de claras de ovo.

Essa atordoante trabalhadeira, tão desusado empenho em preparar a noite de gala, revelava bem o júbilo que dava aos pais o casamento da caçula. Esse casamento, no entretanto, tivera curiosa trama. Fora um caso violento de paixão. Romance de amor tão fulminante, tão inesperado, que espantou a todos na cidade.

A história foi assim:

Domitila, a Titília, como lhe chamavam os de casa, era uma criaturinha perturbante, linda boneca de dezesseis anos, leve como pluma, botão de rosa pelo amanhecer. Tinha o talhe fino, a cinturinha breve, ar de graciosa petulância. Que primor de tentações! Os cabelos eram negros, profundamente negros, encaracolando-se num donaire petulante. Olhos também negros, negríssimos, dum fulgor líquido, que enchiam de quentura e brejeirice o moreno róseo de seu rosto. A boca, vermelha, muito úmida, a cavar ao lado, quando ela sorria, uma covinha gaiata, tentadora, que enlouquecia a rapaziada do tempo.

E não foram poucos os que enlouqueceram! Toda a gente sabia que Pedro Gonçalves de Andrade, primo e colaço do juiz de casamentos, passava noites inteiras, de violão em punho, a entoar modinhas e lundus às janelas da rapariga.

E era de ver-se, nos bailes, o Aires da Cunha, sobrinho do Almoxarife da Real Fazenda! O rapaz grudado acintosamente às saias da pequena, vivia tão junto dela, tão cioso dela, que a cidade inteira, com maldade, botou-se a linguajar daquele caso.

E a briga do Moraizinho? Foi no Botequim da Princesa, no Largo da Pólvora, em dia de procissão de São Jorge. O rapazola engalfinhou-se violentamente com o Bento Furquim, um atrevidaço, namoriscador da pequena. Lá se foi com ele aos bofetões e sopapos, numa fúria. Tão áspera cresceu a rixa, tão brutal, que acabaria de certo em tiro de trabuco se o bom do Pe. Bernardo Pureza Claraval,que por ali passava, não acudisse a tempo de separá-los. Nesse mesmo dia, ao escurecer, depois das vésperas, o bondoso cura procurou o velho João de Castro. Narrou-lhe a briga do Moraizinho. Avisou-o com prudência:

- Sr. Coronel! Vosmecê precisa tomar tento. Isto não acaba bem...

- Mas que hei de eu fazer, senhor pároco? Que hei de eu fazer?

- Que há de fazer? Homessa... Pois é casar a rapariga. Casá-la antes que a rapaziada se destripe. Aquilo não é gente! Aquilo é demônio, Sr. Coronel, aquilo é demônio... Cruzes!

Ora, foi justamente por essa época, nesses tempos em que os rapazes se esmurravam por causa da fatal menina, que chegou à Província, e veio aquartelar em São Paulo, um magnífico regimento de cavalaria, o Primeiro Esquadrão do Corpo de Dragões, que tinha sede em Vila Rica, nas Minas Gerais. O regimento, formado de guapos mocetões, equipados vistosamente, atravessou a cidade com galhardia, marchando e rufando. Foi estacar diante do Convento de São Francisco, onde se alojou. De cambulhada com esse Corpo viera um bonito rapagão protegido do Príncipe, tratado pelos superiores com benévolas deferências, moço esbelto e moreno, vinte e dois anos, gentil e simpático. O moço fazia parte do Estado Maior daquele regimento. Era o Alferes Felício Pinto Coelho de Mendonça. Quis assim o destino, esse endiabrado armador de arapucas, que o oficialzinho de Minas viesse aquartelar exatamente no Largo de São Francisco, a dois passos da Rua do Ouvidor, e, portanto, bem rente à flor mais perturbante da Província, a mais perigosa das desencabeçadoras de rapazes. A graça com que se enfeitou a tentadora moça, as tafulices com que se alindou para enamorar o recém-chegado, não as sei eu, nem as quero imaginar. Mas o certo, o que contam crônicas veneráveis, é que logo após o seu alojamento, ainda mal conhecedor da terra e dos seus usos, já o rapaz andava tão perdido pela rapariga, fazia por ela tais loucuras, cortejando-a tão às escâncaras, que o velho João de Castro, de sobrolho cerrado, chamou confidencialmente a mulher e faloulhe com gravidade:

- Você já reparou, Escolástica, nos dengos do alferes pela menina?

Pois aquilo, no pé em que está, é de duas uma: ou o rapaz presta, e preparam-se os banhos, e a coisa termina já na igreja; ou o rapaz não presta, e mete-se-lhe uma surra, boa roda de pau, para que suma da Província e nunca mais se intrometa com pessoas de bem! Eu vou hoje ao quartel tirar informações. Não há de ser um zé-ninguém, um leguelhé qualquer, que eu vá deixando entrar, sem mais aquela, na família dos Canto e Melo.

- E dos Toledo Ribas! - exclamou a boa senhora, fazendo valer, com aprumo, as culminâncias do apelido.

As coisas que revelou o comandante do batalhão, as excelências que contou do mineirinho e da sua prosápia, foram de certo abundantes e rasgadas: João de Castro saiu do quartel de sobrolho desfranzido. Dias após, Titília, a pequerrucha, teve a maior alegria de sua vida. O seu alvoroço foi tanto, foi tão entontecedora a sua felicidade, que a linda doidivanas, com o seu adorável estouvamento, saiu pela rua afora, trêfega e borboleteante a contar de casa em casa o supremo acontecimento:

- Sabe, prima Angélica, a grande novidade?

-?!

- Fiquei noiva!

- Quê? Vai se casar? Nossa Senhora! Aposto que é com o Moraizinho...

- Pois não é!

- Credo! Então será com o sobrinho do Almoxarife? Quê? Não é? Pois então a maluquinha tem coragem de se casar com o Pedro das serenatas?

- Qual nada, prima Angélica! Tudo isso eram patacoadas. Tudo passatempo. Eu vou me casar, mas é com o Alferes Felício, aquele moreno, de Minas, que veio no Estado Maior dos Dragões. Que tal, prima Angélica? É bonito, não é? Pois então dê cá um abraço! E outro! E mais outro! E até breve, prima Angélica.

Pela cidade inteira, num relâmpago, esparramou-se a notícia do estranho noivado. Foi uma bomba.

*

"A Marquesa de Santos (1813-1829)"
Autor: Paulo Setúbal
Editora: Geração Editorial
Páginas: 350
Quanto: R$ 27,92
Onde comprar: 0800-140090 ou na Livraria da Folha

 
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