Livraria da Folha

 
26/03/2010 - 19h25

Antropóloga comenta uso urbano do daime e a morte de Glauco

FABIO ANDRIGHETTO
colaboração para a Livraria da Folha

Divulgação
Beatriz Labate pesquisa o uso de substâncias psicoativas nas religiões
Beatriz Labate pesquisa o uso da ayahuasca em rituais religiosos
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A antropóloga Beatriz Labate é autora de diversos livros sobre o uso da ayahuasca em rituais religiosos.

A coletânea "Drogas e Cultura: Novas Perspectivas", coorganizada pela especialista e lançado em São Paulo na quarta-feira (24), reuniu o ministro Juca Ferreira (Cultura) e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.

A substância psicoativa é comum em diversas tribos indígenas da América do Sul. O preparo da bebida cerimonial pode variar conforme a região, mas a intenção é provocar alteração da consciência para fins religiosos.

Em entrevista para a Livraria da Folha, Labate lamentou a morte do cartunista Glauco Vilas Boas, que era líder de uma igreja daimista. "Glauco liderava os trabalhos com enorme humildade, rejeitando o título de padrinho [um dos modos como são designados os dirigentes espirituais do Santo Daime], e falando pouco. Sua marca registrada era a alegria e o primor musical."

O último livro de Labate, "Fieldwork in Religion", ainda não tem previsão de lançamento no Brasil.

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Livraria - O que difere o Santo Daime e a UDV (União do Vegetal) dos rituais indígenas?

Beatriz Labate - No xamanismo indígena a ayahuasca pode ser usada no contexto de guerra, caça, divinação, cura e outros fins. Em diversas etnias, o aparecimento da bebida ayahuasca na Terra está relacionado ao mito de origem do grupo. O Santo Daime e a UDV realizam uma apropriação cristã de uma bebida de origem indígena. Por um lado, há uma herança indígena segundo a qual o Daime ou Vegetal é entendido como tendo inteligência e agência - um "espírito-planta" que pode nos ensinar, confortar ou punir. As prescrições associadas ao preparo e ao consumo da substância também são parte deste legado indígena. Por outro lado, está presente uma forte simbologia cristã, onde associa-se as revelações dos mestres fundadores aos ensinamentos de Jesus Cristo. Nestes contextos, a ayahuasca é um sacramento. Em geral, o Santo Daime, a Barquinha e a UDV combinam elementos culturais diversos, como o cristianismo --particularmente o catolicismo de origem popular--, as religiões afro, o esoterismo de origem européia e as tradições espíritas kardecistas, além do xamanismo indígena. Há uma série de categorias comuns, como a ideia de "luz", "força", "mirações" (visões proporcionadas pela ayahuasca), "peia" (lições morais ou limpezas físicas), mas cada grupo tem a sua própria doutrina e ritual.

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Para entender as extensões do universo ayahuasqueiro no Brasil
Para entender as extensões do universo ayahuasqueiro no Brasil

Livraria - Como o Daime e a UDV se expandiram para os centros urbanos?

Beatriz Labate -Jovens mochileiros, curiosos, turistas, pessoas em procura de cura e outros conheceram estas religiões na década de 70, no norte do país, e aos poucos começaram a serem realizados os primeiros rituais no centro e sudeste. Uma vez que Daime e UDV chegam aos centros urbanos, há uma série de dissidências e adaptações. Estas novas vertentes combinam os elementos destas duas religiões com outras práticas religiosas e filosóficas típicas dos grandes centros urbanos. Entre elas, há diálogos com uma matriz orientalista, umbandista, nova era, terapias humanísticas, meditação e expressões artísticas. Assim, o Santo Daime e a UDV, que já são resultado de uma síntese própria de algumas matrizes culturais comuns, ao chegarem nas cidades continuaram fazendo novas combinações, gerando outras vertentes e desdobramentos.

O Conad (Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas) reconhece todos estes grupos -- dos mais populares de origem amazônica, às comunidades urbanas mais ecléticas -- como parte de uma legítima tradição ayahuasqueira brasileira. Entre os grupos, contudo, há disputas e reivindicação de autenticidade: alguns se consideram mais "puros" ou "ortodoxos". Enfim, como qualquer campo religioso, está marcado por disputas. O problema é que, às vezes, a mídia reproduz acriticamente as acusações que os grupos fazem entre si --como se fossem "evidências", ou parte da "apuração" que fazem do tema.

Livraria - Qual é a faixa etária dos integrantes dessas religiões?

Beatriz Labate - É difícil estabelecer dados, não existe um censo científico sobre isto. Em geral, há pessoas de todas as faixas etárias. Pela minha observação empírica, não diria que há mais jovens do que adultos. Tanto o Santo Daime quanto a UDV são religiões bem familiares, marcadas pela convivência de várias gerações --avôs, pais, filhos e netos comungando juntos a ayahuasca.

Livraria - Alguns jovens, esquecendo o valor religioso, buscam o consumo da substância apenas pela experiência alucinógena?

Beatriz Labate - Como qualquer religião, as pessoas se aproximam pelas razões mais diversas, seja em procura de alívio para os males do espírito e do corpo, por ansiedades metafísicas, pela necessidade de estabelecimento de laços de comunidade etc. Entre as razões para se conhecer um destes rituais, pode estar a curiosidade, e certamente a substância exerce um enorme fascínio.

Este anseio pela experiência é legítimo, e os grupos sabem lidar com isto. O que ocorre na prática é que pessoas sem identificação religiosa geralmente tendem a não permanecer nestes lugares, até porque os rituais são bem exigentes, e o próprio consumo da ayahuasca demanda bastante da pessoa.

É possível que alguns frequentem o Daime ou UDV sem uma identificação profunda, assim como em outras religiões há níveis variados de adesão. O que importa, contudo, é que, independente disto, os participantes devem cumprir as regras do ritual, que implicam em tomar um número limitado de doses, permanecer até o final da cerimônia etc. Ou seja, há um forte controle sobre o contexto de consumo, independente da motivação de cada um. Tais controles são a baliza, dão segurança aos rituais.

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Livro traz a descrição do fazer musical de cada grupo e a comparação entre eles
Autores descrevem o fazer musical de cada grupo religioso

Livraria - Qual a importância da música nos rituais das religiões ayahuasqueiras?

Beatriz Labate - É uma manifestação cultural muito rica. A música de ayahuasca revela uma multiplicidade de conexões com a religiosidade brasileira e expressões musicais do nordeste e da Amazônia, e tem sido um dos principais elementos destacados no recente processo de pedido de reconhecimento da ayahuasca como patrimônio cultural imaterial da nação brasileira. A música ocupa um papel preponderante no cotidiano dessas religiões, na produção dos significados religiosos e na construção do corpo e da subjetividade dos adeptos. No Santo Daime, particularmente, temos rituais de concentração, ou bailados. Nos dois tipos, se cantam hinários. O hinário é um conjunto de hinos, cantos religiosos que são "recebidos", que dizer, são considerados uma revelação espiritual. O hinário contém a cosmologia e os ensinamentos da doutrina do Daime. Os principais líderes têm o seu próprio hinário, que narra sua trajetória pessoal e espiritual e se refere a momentos específicos da vida da comunidade. O Glauco era músico [sanfoneiro] e tinha o seu próprio hinário, o "Chaverinho" e o "Chaveirão", compostos por 42 e 11 hinos [cantos] respectivamente.

Livraria - Como você analisa a morte do Glauco?

Beatriz Labate - Fiquei profundamente chocada e triste. Parece que houve uma combinação infeliz entre uma dupla projeção: a de um artista famoso, e de uma liderança religiosa importante. Mas o pior é ver como determinados setores da mídia se aproveitam da tragédia para trazer à tona uma velha agenda persecutória a estes grupos, que já são uma minoria bem marginalizada.

Quando uma pessoa se explode em nome de sua religião, matando outras, ou quando um fiel atira no Papa, questiona-se o radicalismo, mas não a legitimidade da religião em si. Por outro lado, imagine quantas pessoas morrem por noite em SP em acidentes de trânsito envolvendo o uso de álcool? Quanto rende uma reportagem sobre alguém que "bebeu cerveja e matou"? Ou sobre os abusos relacionados ao consumo dos fármacos legais? É claro que precisamos fazer uma análise crítica do episódio, mas infelizmente a discussão envolvendo o uso de "drogas" dificilmente é racional, pois envolve fortes tabus. Por outro lado, uma religião minoritária, não hegemônica, é outra fonte forte de preconceitos.

 
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