Livraria da Folha

 
30/03/2010 - 22h27

"Big Brother" gera relações esquizofrênicas, diz pesquisador; leia trecho

WILLIAM MAGALHÃES
colaboração para a Livraria da Folha

Divulgação
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Reality show responsável pelo maior faturamento da TV Globo na época do verão, o "Big Brother Brasil" gera uma relação "esquizofrênica" entre os participantes do programa e o público da atração.

Esquizofrenia: dissociação da ação e do pensamento, sintomas de delírios de grandeza, alucinações, intensa atividade motora, negativismo, define o "Houaiss" (pronuncia-se "uais").

A afirmação está em "A Televisão na Era Digital" livro do pesquisador, roteirista, diretor e doutor formado pela ECA- USP, Newton Cannito. Em um capítulo da obra, resultado de sua tese, Cannito dedica atenção especial aos formatos de sucesso da televisão, como o seriado "Lost" e o próprio "BBB".

A final do BBB10 será exibida hoje pela Globo e dará o prêmio de R$1,5 milhão para Cadu, Dourado ou Fernanda, que disputam o único "paredão do bem" da atração, nas palavras de seu apresentador Pedro Bial.

Leia trecho de "A Televisão na Era Digital".

*

O jogo no reality show e as regras do Big Brother

Para entender o programa é importante recuperarmos algumas considerações sobre o jogo: trata-se de um modo de organizar a experiência humana que conta com a participação do público. Este, que era espectador, torna-se interator.

A ideologia de uma narrativa é definida pela escolha de cenas e por uma questão crucial: quem move a história? É um personagem? É uma força social? Qual força move a história e qual se opõe a esse movimento são duas indagações fundamentais para analisar uma narrativa. Em um jogo, porém, quem move o "enredo" linear são os próprios jogadores, o que não significa que ele não tenha autoria nem ideologia. Na verdade, a ideologia de um jogo é definida pelas regras que o criador inventou para gerir o "mundo ficcional".

Há ainda narrativas interativas. Histórias que em alguns momentos possibilitam a interferência do público na determinação dos caminhos do drama e em outros são regidas pelo narrador. É um misto entre as duas formas.

Vamos pensar um pouco mais sobre o jogo Big Brother para entender o discurso que essa obra constrói. O jogador tem um objetivo claro: ganhar um milhão de reais - ascender socialmente - e um objetivo mais difuso, mas igualmente importante: tornar-se uma celebridade. Ganha o jogo quem ficar mais tempo na casa. A eliminação é feita semanalmente, num "paredão" com dois ou três jogadores. O público vota para escolher o eliminado. Dentro da casa os participantes jogam para não ir para o paredão. Os participantes do paredão são escolhidos internamente de duas formas:

a) o primeiro é indicado pelo líder (um dos jogadores, escolhido por um teste de sorte ou de capacidade básica, muitas vezes física);
b) o segundo é indicado em votação direta pelos participantes do jogo.

Essa situação gera uma relação esquizofrênica entre os personagens. Há uma permanente ambiguidade entre fazer amigos e querer eliminar o outro. O jogador precisa fazer amigos, pois não quer ser votado e isso implica estabelecer alianças momentâneas. Por outro lado, ele sabe que só um vai vencer. Ou seja, age segundo a premissa "amigos, amigos, negócios à parte".

Os jogos são diversos e mudam a cada edição do programa. Traições são recorrentes. O líder, por exemplo, tem a vantagem de ser imune na semana, mas a desvantagem de ter que indicar alguém abertamente. Quem ele indicar ao paredão se tornará seu inimigo. Tudo isso constrói um simulacro de uma tragédia de Shakespeare.

Os jogadores não podem se tornar Iago (o vilão de Otelo), nem para os companheiros de confinamento, nem para o público. A obra é aberta, está em construção, e o jogo pode virar a qualquer momento. Além disso, o público está lá de juiz, assistindo a tudo. O jogador sabe que se for muito malvado será eliminado pelo público assim que for ao paredão. No Big Brother, o público exerce o papel de sensor moral e goza o duplo prazer de assistir ao cotidiano de personagens de farsa, pequenos - ou até "menores" que ele -, imersos em pequenas disputas, e de se sentir superior a esses "seres rebaixados". Além disso, exerce o papel de deus julgador, eliminando o jogador que extrapolou, que foi longe demais para vencer. O público, que em seu dia a dia profissional vive uma situação parecida com a dos personagens da casa, no programa assume as rédeas: é o juiz moral de uma simulação de sua vida.

O jogador ideal é aquele que consegue manipular o grupo para não ser indicado ao paredão, sem deixar isso evidente para o público. Uma tática mais arriscada é conquistar o público apenas, ir ao paredão várias vezes e vencer na votação popular (como fez Alemão, no BBB7). A esquizofrenia, além de permear as relações internas, permeia também a relação do jogador com o público, o (in)distinto público. Também nesse aspecto, o jogo Big Brother é uma simulação do jogo social do homem contemporâneo. Por um lado, o jogador toma atitudes em prol de seus interesses para vencer. Mas por outro tem de parecer desinteressado. Não importa o que faça, sua imagem tem de se manter intocável.

O jogo dos participantes do Big Brother é também aquele a que cada um de nós está submetido diariamente no mundo do trabalho. Com a flexibilização do trabalho, quase não há emprego fixo, apenas trabalhos informais, onde a cada momento o indivíduo vive uma situação nova. O jogador (tal como o público) quer sucesso, mas está sempre em situação instável, num verdadeiro jogo de regras maldefinidas, cercado de pessoas que mal conhece e podendo ser eliminado a qualquer momento. O jogador deve ser capaz de entender rapidamente os códigos de comportamento do competidor e agir em resposta, articulando politicamente com a pessoa certa. Por isso, a cada Big Brother o público assiste com prazer a uma nova versão desse jogo, a uma nova simulação de sua vida, e aprende novas lições de como agir para "vencer".

 
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