Livraria da Folha

 
05/04/2010 - 19h43

Jânio Quadros tenta anexar Guianas e causa guerra amazônica em romance; leia trecho

da Livraria da Folha

Siga a Livraria da Folha no Twitter
Siga a Livraria da Folha no Twitter

"Selva Brasil", do escritor Roberto de Sousa Causo, se passa em uma história alternativa do Brasil, vinte anos após invasão militar brasileira das Guianas liderada pelo presidente Jânio Quadros.

Divulgação
Obra traz história paralela na qual o Brasil está em guerra há décadas
Obra traz história paralela na qual o Brasil está em guerra há décadas

No entanto, uma coalizão de nações industriais se forma para enfrentar a aliança latino-americana encabeçada pelo Brasil. Inglaterra, França, Holanda e Estados Unidos contra atacam e empurram os soldados brasileiros de volta, mantendo um pedaço da floresta amazônica sob controle de uma guerrilha patrocinada pelos países do Primeiro Mundo.

Vinte anos depois, o Brasil é refém política e economicamente desse conflito que marcou diversas gerações de jovens brasileiros. "Selva Brasil" então acompanha um grupo de soldados que segue para o Amapá para substituir outra unidade e encontra, além de desertores e um plano para levar a guerra a novos patamares de destruição, um experimento que pode ter aberto um portal entre essa realidade paralela e a nossa.

Roberto de Sousa Causo é formado em Letras pela USP e publicou contos em revistas e livros de dez países. É autor de obras como "Futuro do Presente" e "A Corrida do Rinoceronte" um dos classificados do Prêmio Jerônimo Monteiro e no III Festival Universitário de Literatura e ganhador do Projeto Nascente 11 de Melhor Texto.

Leia abaixo um trecho que mostra o violento conflito das tropas brasileiras na selva amazônica nesse mundo paralelo.

-

SELVA BRASIL

Nosso pelotão viajava há pelo menos quarenta horas - quarenta horas sem banho, comendo ração enlatada e com a barba por fazer. Só mesmo naqueles velhos filmes americanos é que os caras conseguem ficar perfeitamente barbeados numa guerra.

A gente ia render um pelotão reforçado de infantaria motorizada. Nossa unidade tinha sido destacada pra este posto avançado que guarnece uma área fronteiriça à Guiana Holandesa e à Guiana Francesa, perto da Serra do Tumucumaque. O s-dois afirmava que a guerrilha estava aumentando por ali e por isso era conveniente uma força de reação mais efetiva, em caso de necessidade. Assim, o pessoal do bim foi substituído pela infantaria blindada. Nessa parte do Planalto das Guianas o terreno é sólido, e não pantanoso como na bacia do Amazonas. Também tem menor presença da floresta - muito terreno limpo e elevações brandas. Os blindados podem operar, ainda que num pequeno raio de ação.

Os carros blindados de transporte de pessoal rodavam pela estradinha lamacenta aberta entre as árvores, quando o carro da Seção de Comando - em que eu estava - detonou uma mina.

Meu primeiro pensamento foi pra minha ex-mulher e o menino. Depois pensei que a gente tinha sido atingido por um foguete, mas o ruído da explosão era outro e os estilhaços vieram de baixo. Um deles me pegou nas costelas, a três dedos do peito, mas sem força pra penetrar.

Eu sempre uso o colete contra estilhaços quando embarcado num Cbtp, que é a hora em que cê tá mais vulnerável a emboscadas, apesar do colete aumentar as chances de uma desidratação - a gente só se acostuma com o peso e o desconforto da coisa usando. Como vestia o colete aberto, um estilhaço de trajetória caprichosa me pegou, graças a Deus sem muita força. Sabia que outros não usavam - ouvi seus gemidos no fundo do carro blindado. Gemidos de dor e gritos de pânico.

- Tadeu! - berrei.

Só a ideia de que ele pudesse estar ferido me causou uma náusea mais forte que a dor nas costelas.

Ouvi:

- Tudo bem Tudo bem. - era a sua voz, rouca e vibrante ao mesmo tempo, como se tivesse cordas vocais em excesso se emaranhando na garganta; mas a voz dele, graças a Deus. - O rádio A gente tem que checar o resto do comboio.

Era o Tadeu que eu conhecia. A responsabilidade em primeiro lugar. Talvez seja o mesmo Tadeu que você conhece, heim?

Agarrei meu fuzil. Se era uma emboscada, mais fogo viria - e em breve. Um jovem soldado chamado Cides começou a subir pra uma das escotilhas do teto, mas antes que conseguisse eu agarrei ele e puxei pra baixo.

- O quê? - ele começou.

- Quer ganhar um tiro? Vai pra uma das seteiras! - ordenei.

Cides tinha no rosto aquela expressão assustada-apalermada que a gente vê nos mortos, e senti uma raiva imensa por essa estampa idiota de cadáver reservada a todos nós. Mas Cides obedeceu e eu me acalmei.

- Ninguém mais foi atingido - Tadeu informou, se acocorando ao meu lado. A presença dele transmitia segurança. - Só o nosso carro.

- Foi uma mina, Tadeu. Mas pode ter uma emboscada lá fora, de qualquer jeito. - minha voz saiu rouca e fina, como a de um menino. Puro medo.

- Positivo. Eu já falei pra ninguém sair das viaturas. - É bom mesmo. Só que a gente não pode ficá aqui até o fim dos tempos. Nem dá pra cuidar dos feridos aqui dentro.

Os gemidos continuavam, tinha um cheiro forte de sangue e merda dentro do blindado.

Já rastejávamos pra escotilha da ré do Cbtp, os dois num único movimento, passando por cima dos feridos. Senti um tranquilo conforto, a sensação de segurança quando duas pessoas se conhecem tão bem que se movem como que guiados por um só pensamento. Sem perguntar se seria a melhor atitude, abri a escotilha de um golpe, e, apenas pra garantir, empunhei o fuzil. A escotilha girou pra fora e bateu na parede traseira do blindado com um pangue metálico. No mesmo segundo o som de um tiro e um ricochete - quiuuuuumm -, seguido duma pequena salva que nos atingiu sem maiores efeitos, pra se calar logo na sequência. A gente se protegeu no interior do Cbtp.

- Alguém queimou um tiro - Tadeu comentou, a voz ainda mais calma, querendo dizer que o disparo nervoso denunciara a emboscada que cercava a gente.

- O que cê tá vendo lá fora? - perguntei.

Meus óculos estavam embaçados com a fumaça da explosão. Tirei eles e limpei as lentes na barra da gandola que aparecia por baixo do colete.

- O blindado do Reinaldo tá bem atrás da gente, uns dois ou três metros.

Recoloquei os óculos e espiei. O Cbtp do cabo Reinaldo estava lá, meio embicado na direção das árvores que cercavam o caminho rasgado na mata.

Reinaldo tinha tido a reação de enfiar o blindado ali, mas o que interessava era que havia espaço embaixo dele pra abrigar alguns homens - que poderiam observar por entre as esteiras, em relativa segurança. E dois ou três metros não eram nada. Subir nas escotilhas do teto e espiar pra fora não me agradava nem um pouco. Parecia que o terreno à nossa volta era mais elevado, e além disso seria fácil ter um franco-atirador em uma árvore esperando a gente colocar o pescoço pra fora. A imagem de granadas entrando pelas escotilhas também me ocorreu. Esquisito, aliás, que o inimigo ainda não tivesse despejado tudo o que tinha contra nós. Vai ver faltava pra ele munição ou granadas, aí ele só ficava a espreita, esperando alvos melhores.

A gente precisava agir em acelerado.

Expliquei a ideia ao Tadeu e pedi que ele coordenasse os tiros a partir dos carros - se conseguíssemos uma orientação. Aí chamei esse cara, o Cides, que era atirador de arma automática de esquadra - um pesado faRa argentino -, porque eu não tinha intenção de ir pra lá desguarnecido.

Me joguei pra fora, dei um ou dois passos, saltei e rolei sobre os ombros, terminando de costas no chão lamacento, a centímetros do Cbtp de Reinaldo. Dali rastejei de costas, feito uma tartaruga tombada tentando se desvirar, até o abrigo do blindado. Nenhum tiro foi dado contra mim, mas quando Cides veio, foi recebido por uma rajada de múltiplas armas disparadas de ambos os lados da trilha. Vi suas botas pisando a lama e então ele despencou no chão e rastejou desesperado pra junto de mim. Atrás dele os projéteis jogavam lama pra cima e arrancavam faíscas do blindado de comando. Porque o Sol tava baixo eu pensei que vi o reflexo de alguns projéteis, em pleno ar.

Em segundos, o tiroteio se transformou em uma barragem de fogo que vinha de todos os lados. Enfiei a cara na lama, levantei o fuzil e puxei o gatilho com toda a força. Por alguma razão, parei de respirar durante alguns segundos. Só tinha consciência de estampidos e zunidos e ricochetes e de impactos que se comunicavam do blindado pro chão e do chão pro meu peito.

Ouvi algumas explosões mais fortes -granadas-de-mão, na certa-, e a terra balançou mais intensamente debaixo do meu corpo, chocalhando meus dentes. Empunhei o meu lapa m-3. Ao meu lado Cides enfiou o faRa entre a lagarta e despejou um carregador de trinta tiros. Não tinha espaço pra que a arma ficasse na vertical e Cides deve tê-la virado com a face direita pra cima, porque os cartuchos expelidos batiam no fundo do blindado e caíam por cima da gente feito um chuveiro de rebites rubro-incandescentes - e só então notei que tinha deixado o capacete pra trás.

*

"Selva Brasil"
Autor: Roberto de Sousa Causo
Editora: Editora Draco
Páginas: 112
Quanto: R$ 26,90
Onde comprar: Pelo telefone 0800-140090 ou pelo site da Livraria da Folha

 
Voltar ao topo da página