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14/04/2010 - 20h34

Livro afirma que homem de Neandertal era capaz de criar mitos

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Segundo o livro "Breve História do Mito", os neandertalenses, espécie extinta que habitava o planeta no período Pleistoceno Superior --entre 700.000 e 10.000 anos atrás--, eram capazes de criar mitos. Essa capacidade pode ser comprovada por seus rituais fúnebres.

Divulgação
Livro leva a uma jornada histórica para traçar as origens da mitologia
Livro leva a uma jornada histórica para traçar as origens da mitologia

Hoje, a palavra mito é utilizada para descrever algo inverídico. Esse pensamento contemporâneo se deve ao desenvolvimento tecnológico iniciado no século 18.

Entretanto, um conjunto de mitos indica imaginação e criatividade, além de ser uma eficiente estratégia didática.

O volume escrito pela britânica Karen Armstrong, uma das maiores especialistas do mundo em religião e autora de diversos títulos sobre o assunto, retraça a história da mitologia, seu desenvolvimento e significado.

Leia, abaixo, o trecho do livro no qual a autora esclarece as características do mito.

Atenção: o texto reproduzido abaixo mantém a ortografia original do livro e não está atualizado de acordo com as regras do Novo Acordo Ortográfico. Conheça o livro "Escrevendo pela Nova Ortografia".

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O QUE É MITO?

Os seres humanos sempre foram criadores de mitos. Arqueólogos escavaram túmulos do homem de Neandertal que continham armas, ferramentas e a ossada de um animal sacrificado; tudo isso sugere uma crença qualquer num mundo futuro similar àquele em que viviam. Os homens de Neandertal talvez tenham contado uns aos outros histórias a respeito da vida que o companheiro morto passou a levar. Sem dúvida refletiam a respeito da morte de um modo que outras criaturas não faziam. Os animais observam a morte do outro, mas até onde sabemos não dão muita importância ao fato. Porém os túmulos do homem de Neandertal revelam que esses povos pioneiros adquiriram consciência de sua mortalidade, criando algum tipo de contranarrativa que lhes permitia enfrentar a situação. Os neandertalenses, que enterravam seus mortos com tanto cuidado, parecem ter imaginado que o mundo material sensível não era a única realidade. Portanto, desde épocas muito antigas o ser humano se distingue pela capacidade de ter pensamentos que transcendem sua experiência cotidiana.
Somos criaturas em busca de sentido. Os cães, até onde sabemos, não sofrem agonias por sua condição canina, não se preocupam com o destino dos cães que habitam outras partes do mundo nem tentam ver a vida sob uma perspectiva diferente. Os seres humanos, por sua vez, facilmente se desesperam, e desde a origem mais remota inventamos histórias que permitem situar nossas vidas num cenário mais amplo e nos dão a sensação de que a vida, apesar de todas as provas caóticas e arrasadoras em contrário, possui valor e significado.

Outra característica peculiar da mente humana é a capacidade de ter idéias e experiências que não podemos explicar racionalmente. Possuímos imaginação, uma faculdade que nos permite pensar a respeito de coisas que não se situam no presente imediato e que, quando as concebemos, não têm existência objetiva. A imaginação é a faculdade que produz a religião e a mitologia. Hoje o pensamento mitológico caiu em desgraça; com freqüência o descartamos por irracional e indulgente. Mas a imaginação também é a faculdade que permite aos cientistas trazer novos conhecimentos à luz e criar a tecnologia que nos torna incomensuravelmente mais eficientes. A imaginação dos cientistas nos levou às viagens espaciais e a pousar na Lua, feitos que antes só eram possíveis no reino da mitologia. Tanto a mitologia quanto a ciência ampliam os horizontes do ser humano. Como veremos, a mitologia, da mesma forma que a ciência e a tecnologia, nos leva a viver mais intensamente neste mundo, e não a nos afastarmos dele.

Os túmulos dos homens de Neandertal nos revelam cinco aspectos importantes do mito. Primeiro, ele se baseia sempre na experiência da morte e no medo da extinção. Segundo, os ossos de animais indicam que o sepultamento foi acompanhado de um sacrifício. A mitologia em geral é inseparável do ritual. Muitos mitos não fazem sentido separados de uma representação litúrgica que lhes dá vida, sendo incompreensíveis num cenário profano. Terceiro, o mito de Neandertal foi invocado ao lado de um túmulo, no limite da vida humana. Os mitos mais fortes se relacionam com o extremo; eles nos forçam a ir além de nossa experiência. Há momentos em que nós todos, de um modo ou de outro, temos de ir a um lugar aonde nunca fomos e de fazer o que nunca fizemos. O mito trata do desconhecido; fala a respeito de algo para o que inicialmente não temos palavras. Portanto, o mito contempla o âmago de um imenso silêncio. Quarto, o mito não é uma história que nos contam por contar. Ele nos mostra como devemos nos comportar. Nos túmulos dos homens de Neandertal o corpo é às vezes colocado em posição fetal, como se estivesse preparado para o renascimento: caberia ao próprio morto dar o próximo passo. Entendida corretamente, a mitologia nos põe na atitude espiritual ou psicológica correta para a ação adequada, neste mundo ou no outro.

Por fim, toda mitologia fala de outro plano que existe paralelamente ao nosso mundo, e em certo sentido o ampara. A crença nessa realidade invisível, porém mais poderosa, por vezes chamada de mundo dos deuses, é um tema básico da mitologia. Tem sido chamada de "filosofia perene", pois alimentou a organização mitológica, social e ritual de todas as sociedades até o advento da modernidade científica, e continua a influenciar as sociedades mais tradicionais da atualidade. Segundo a filosofia perene, tudo o que acontece neste mundo, tudo o que vemos e ouvimos aqui embaixo tem sua contrapartida no reino divino, que é mais rico, forte e duradouro que o nosso. E cada realidade terrena não passa de uma sombra de seu arquétipo, o modelo original do qual é apenas uma cópia imperfeita. Só pela participação nessa vida divina os frágeis e mortais seres humanos realizam seu potencial. Os mitos dão forma e aparência explícita a uma realidade que as pessoas sentem intuitivamente. Eles contam como os deuses se comportam, não por mera curiosidade ou porque os contos são interessantes, mas sim para permitir que homens e mulheres imitem esses seres poderosos e experimentem eles mesmos a divindade.

Em nossa cultura científica muitas vezes temos noções simplistas do divino. No mundo antigo, os "deuses" raramente eram vistos como seres sobrenaturais com personalidades discretas, levando uma existência metafísica totalmente separada. A mitologia não tinha a ver com a teologia, no sentido moderno da palavra, mas sim com a experiência humana. As pessoas pensavam que deuses, humanos, animais e natureza estavam inextricavelmente ligados, sujeitos às mesmas leis, compostos da mesma substância divina. Não havia no início uma separação ontológica entre o mundo dos deuses e o dos homens e mulheres. Quando as pessoas se referiam ao divino, em geral falavam de um aspecto mundano. A própria existência dos deuses era inseparável da existência da tempestade, do mar, do rio ou daquelas emoções humanas mais intensas - amor, ódio ou paixão sexual - que pareciam momentaneamente erguer homens e mulheres a um plano diferente da existência, de modo que passavam a ver o mundo com novos olhos.

A mitologia foi, portanto, criada para nos auxiliar a lidar com as dificuldades humanas mais problemáticas. Ela ajudou as pessoas a encontrarem seu lugar no mundo e sua verdadeira orientação. Todos queremos saber de onde viemos, mas, como os primórdios se perderam nas brumas da pré-história, criamos mitos sobre nossos antepassados, que não são históricos, porém ajudam a explicar atitudes atuais em relação a nosso ambiente, nossos semelhantes e nossos costumes. Também queremos saber para onde vamos, por isso elaboramos histórias que falam de uma existência póstuma - embora, como vamos ver, raros mitos acenem com a imortalidade para os seres humanos. E queremos explicar os momentos sublimes, quando parece que somos transportados para além de nossas preocupações ordinárias. Os deuses nos ajudavam a explicar a experiência da transcendência. A filosofia perene expressa nosso senso inato de que há mais coisas nos seres humanos e no mundo material do que os olhos podem captar.

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"Breve História do Mito"
Autor: Karen Armstrong
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 136
Quanto: R$ 26,80
Onde comprar: pelo telefone 0800-140090 ou pelo site da Livraria da Folha

 
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