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Depoimento: eu bebi o Santo Daime

RICARDO FELTRIN
Editor de Cotidiano da Folha Online

Calculo ter tomado Santo Daime cerca de 50 vezes em minha vida. A primeira experiência foi em agosto de 1990. A última, em janeiro de 2000. Sempre tive, desde pequeno, interesse por religiões. O daime me atraiu porque eu estava cansado de ouvir supostos mestres me dizendo como agir e viver. Além disso, cada religião costuma criar seu sistema filosófico. Nas religiões que conheci e visitei, pelo menos, sempre foi assim. Só que, pela doutrina do daime, o verdadeiro mestre é a bebida.

Claro que há os padrinhos e madrinhas em cada igreja, que em tese detêm o conhecimento. Suas palavras têm poder na comunidade e são eles que comandam os rituais. Mas até mesmo os líderes estão submetidos ao poder da bebida.

É muito difícil descrever os efeitos do daime. Sempre li e ouvi vários relatos em que predominavam casos de enjôos, vômitos e até diarréia, provocados nas horas seguintes à sua ingestão.

Esses relatos decerto são verdadeiros: vi pessoas esgoeladas de tanto vomitar, pálidas, às vezes até meio "esverdeadas" devido às reações. Também ouvi relatos de pessoas que conseguiram uma garrafinha de daime e o beberam, misturados a álcool e rock. Jamais faça isso: os efeitos serão devastadores, traumáticos e, segundo a doutrina, merecidos: lugar de tomar daime é na igreja, repetem sempre os seus adeptos.

Bem, mas seja lá qual for o motivo, jamais tive qualquer reação negativa com o daime. Claro, sempre há um enjôozinho aqui ou ali, mas nada que me levasse às "vias de fato".

Curioso é que em todas as vezes que bebi, fui preparado para levar "peia". É o nome usado quando alguém passa muito mal nos rituais. Nunca tive "peia". Seja lá qual for o motivo dessa benção, nunca passei mal. Talvez por sempre ter obedecido o conselho de, desde três dias antes de tomar o daime, me abster de bebidas alcoólicas, sexo e carne.

Nunca tive nem sequer uma má experiência. Pelo contrário: só tive sensações e visões maravilhosas, que não são possíveis de descrever (escrever). Vi "coisas" inenarráveis e ouvi sons diferentes de tudo que já conhecia; também recebi muitas "respostas" para minhas muitas dúvidas existenciais durante os rituais.

É isso: o daime parece "disparar" algum mecanismo que joga parte de nosso lado mau para fora. Julgar o próximo, a violência mental que todos nós temos, a agressividade, às vezes até tristezas e fobias, traumas antigos... Tudo isso surgia para mim nos rituais, na forma de imagens e sensações. Na verdade, eu sentia que estava sendo feito algum tipo de "faxina" em minha alma ou mente.

Em mais de uma vez, aliás, me senti tão bem após 12 horas de ritual que queria mais. Era um estado de graça, uma sensação de felicidade que se prolongava por horas após os rituais. Acho que, como tive formação cristã e o daime é eminentemente cristão, me sentia muito à vontade.

E a "limpeza" também era física: nos três dias seguintes à ingestão da bebida ia com uma frequência muito maior ao banheiro. Nada de desarranjo. Limpeza intestinal mesmo. Chegava a perder até três quilos após os rituais (logo recuperados com uma alimentação cronicamente incorreta).

Eu já bebia daime e participava de rituais esporadicamente, como convidado, desde 90. Mas em 99 decidi entrar de fato para a igreja. Apresentado por um membro fardado da igreja, Oswaldo Guimarães (que hoje mora em plena floresta amazônica, no Céu do Mapiá, Amazonas), fui recebido na igreja Céu de Maria, que fica próxima ao pico do Jaraguá, em SP. Me tornei um adepto "oficial", ou um "soldado da rainha", como os fiéis costumam dizer.

Durante esse ano fiz praticamente todos os rituais e "concentrações" (rituais menores, de três ou quatro horas, celebrados a cada 15 dias). Calculo ter bebido uns 5 litros de daime em 12 meses.

A verdade é que em janeiro do ano passado tomei a bebida pela última vez. Seja pelas exigências de minha vida profissional, pela dificuldade de horários ou por alguma mudança interior até hoje imperceptível, acabei me afastando. Hoje só tenho boas lembranças e muita gratidão, desse período.

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