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16/11/2001 - 03h54

Confusão marca a queda de Jalalabad

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IGOR GIELOW
enviado especial a Jalalabad

Poeira, rajadas de fuzil Kalashnikov e muita, muita confusão. Foi assim a retomada final de Jalalabad pelas tribos do leste afegão, todas da etnia pashtu e descontentes com os avanços dos rivais da Aliança do
Norte em todo território abandonado pela milícia extremista Taleban.

Cerca de 2.000 milicianos chegaram ontem à cidade, vindos da região de Peshawar (Paquistão), para se unirem a milhares de outros que aportaram de outras cidades afegãs. A Folha acompanhou a pequena epopéia, transformada em jogada de marketing pela etnia ao transportar um exército de cem jornalistas que se espremiam na região da fronteira atrás de uma oportunidade de entrar no Afeganistão.

Os pashtus são majoritários em solo afegão, contando cerca de 40% da população, em contraste com as minorias da Aliança -principalmente tadjiques e uzbeques. Jalalabad foi abandonada entre anteontem e ontem pelos homens do Taleban, que devolveram o poder ao pashtu Abdul Qaddir, antigo governador da Província de Nangarhar.

Qaddir, como a multidão que entrou ontem nas ruas de Jalalabad, estava exilado em Peshawar desde o início da ocupação do Taleban (em agosto de 1996), distante 132 km por estradas que passam pelo legendário passo Khyber.

O comboio, com 15 ônibus e várias vans e picapes, saiu de Peshawar por volta das 14h30, depois de enfrentar uma manhã inteira de protelações das autoridades paquistanesas. Para chegar ao Afeganistão, é preciso passar por uma área tribal, nome dado a áreas onde não há a lei como é concebida por Islamabad, mas sim um regime especial onde os chefes das tribos dão as ordens. E o Paquistão não costuma liberar a área para passagem de visitantes, quanto mais jornalistas.

Transpõe-se o passo com relativa facilidade, porque a estrada não é muito ruim. Decepcionante para quem se lembra da história do médico vitoriano William Brydon, que virou lenda em janeiro de 1842 ao se tornar o único sobrevivente de uma marcha pelo Khyber de 16 mil britânicos expulsos pelos afegãos de Cabul.

Às 17h, a visão da barbárie na fronteira. Na vila de Torkham, dezenas de caminhões com ajuda humanitária, centenas de refugiados e uma suspeitíssima massa de contrabandistas armados se misturam aos gritos à poeira local. Os guardas paquistaneses fazem o que podem, mas o movimento é frenético: com o ônibus em que a reportagem estava passaram pelo menos quatro rapazes, correndo junto às janelas.

Uma placa resume o sentimento no local: "Último ponto permitido para estrangeiros". Mesmo sem dar bola para o sinal, que estava caído meio de lado à beira da estrada, os jornalistas se entreolham e fazem piadinhas sem graça. Um dos afegãos no ônibus, Chamir Chano, avisa, sorridente: ""Bem-vindos ao Afeganistão! Eu mesmo não venho aqui há alguns anos, mas o lugar é lindo".

Em termos estéticos, ele está certo. Todos os 78 km entre a fronteira e Jalalabad passam por um vale encoberto por uma névoa seca, deixando para trás a fumaça paquistanesa e emoldurando com o sol do fim da tarde os cumes da cadeia do Hindu Kush.

Na estrada, de tempos em tempos se passa por um "khebar", uma pequena guarnição de mujahedin. Eles já estavam lá, com suas Kalashnikov, antes da retirada do Taleban, mas são extremamente simpáticos aos jornalistas -em especial os ocidentais.

Rajadas de fuzil
Gritam e, para terror dos visitantes, disparam rajadas do famoso fuzil russo para comemorar a ""libertação" do Taleban. "Veja, libertação não é a palavra. Quase todo mundo aqui se acomodou bem ao regime do Taleban porque eles são pashtus como a gente. Agora, com a Aliança do Norte querendo poder só para ela, não sei", afirma outro afegão exilado em Peshawar que voltou a Jalalabad, Ahmed Hanoq.

Entre os campos que alternam cultivo de tabaco com o da papoula que dá origem à heroína, crianças também saúdam o comboio, sem saber exatamente do que se trata. Em Sarsahahi, um campo de refugiados que já teve 10 mil fugitivos da guerra civil no começo da década de 90 começa a se tornar uma cidade, com a indefectível presença de uma mesquita com os minaretes e cúpulas com detalhes em gesso fabricados na região de Taxila, perto de Islamabad.

Bem-vindo a Jalalabad
Às 18h, o primeiro ônibus do comboio passa a placa "Bem-vindo a Jalalabad", em inglês mesmo, após ter ultrapassado o aeroporto local -alvo de intensos bombardeios norte-americanos desde o início da ofensiva.

A cidade, que por vezes parece não ser mais do que uma vila na aparência, abriga na verdade 700 mil habitantes. Como já era noite quando o comboio chegou, fica difícil avaliar exatamente o impacto dos bombardeios na vida da cidade.

Mas é fácil ver no que está dando a retirada do Taleban. A confusão típica da mudança de poder em um local sem instituições ganha contornos dramáticos em Jalalabad. Picapes patrulham as ruas com soldados armados com os famosos RPGs (sigla em inglês para o lançador de granadas com propulsão a foguete) e, lógico, o filho pródigo do soviético Mikhail Kalashnikov.

As últimas escaramuças foram registradas na manhã de ontem. Suspeita-se que em sua retirada para o sul os homens do Taleban passarão algum tempo nas montanhas da região.

"Nós não sabemos onde eles estão. Mas certamente estão longe", disse Hadji Gadir, um dos comandantes políticos e militares de maior prestígio no local. Enquanto isso, as milícias pashtus se misturam com o povo nas ruas de Jalalabad, não perdendo uma oportunidade de gritar "vitória" e, orgulhosos, posarem da mesma forma que seus antecessores do Taleban faziam, com armas em cima de caçambas das picapes.

Ontem, os pashtus fizeram uma assembléia tribal para discutir sua relação com a Aliança do Norte, que tomou cerca de metade do país do Taleban, inclusive o entorno do território dominado pelo governador Qaddir e seus pares.

Reunião de líderes
Em uma cena que lembrou a da queda de Damasco no filme "Lawrence da Arábia" (David Lean, 1962), cerca de 50 chefes e seus assistentes se sentaram em um salão do palácio do governo abandonado pelo Taleban para discutir quem iria cuidar de cada pedaço da administração local.

Como no filme, onde os líderes da rebelião árabe contra os turcos na Primeira Guerra Mundial não se entendem sobre problemas simples, a reunião de ontem não acabou com mais do que promessas de novas negociações. Segundo um líder que conversou com jornalistas à porta, não houve acerto sobre quem iria cuidar das funções de bombeiro e polícia da região, por exemplo.

O grupo pashtu que transportou a Folha, o Hizb-i-Islam, é retrato da volatilidade política na região. Em 96, após ter em suas fileiras o mulá Mohammad Omar, líder do Taleban, deu ajuda ao saudita Osama bin Laden.
Depois, brigou com os extremistas, mas, até hoje, mantém alguns contatos com a milícia.

"Vamos conceder uma entrevista coletiva amanhã (hoje) sobre o que foi discutido. Por ora, podemos dizer que não somos inimigos declarados da Aliança do Norte, apenas que precisamos conversar com eles", afirmou um porta-voz do grupo.

Enquanto isso, os soldados, milicianos e antigos refugiados voltavam às ruas de Jalalabad, sem saber exatamente se lutariam mais. Pelos acontecimentos de ontem, o tal "governo de ampla base" repetido à exaustão pelos líderes ocidentais vai precisar de muito mais que boas palavras para sair do papel.



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