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02/02/2008 - 02h30

Leia na íntegra artigo de Fidel Castro sobre Lula

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da Folha de S. Paulo

REFLEXÕES DO COMANDANTE EM CHEFE

LULA (Quarta e última parte)

Não quero abusar da paciência dos leitores, nem da oportunidade excepcional que me ofereceu Lula de trocar idéias ao encontrar-se comigo. Por isso, afirmo que esta é a quarta e última reflexão sobre sua visita.

Quando falei com ele sobre a Venezuela, Lula me disse: "Nós pensamos em cooperar com o presidente Chávez. Fiz um acordo com ele. Cada ano irei duas vezes a Caracas, e ele viajará duas vezes ao Brasil, para não permitir que surjam divergências entre nós e que, se surgirem, que possam ser resolvidas de imediato. A Venezuela não precisa de dinheiro", disse, "porque tem muitos recursos, mas precisa de tempo e infra-estrutura."

Eu disse a Lula que me alegrava muito com sua posição com relação a esse país, porque estamos gratos a esse povo irmão pelos acordos firmados que nos garantiram um fornecimento normal de combustível.

Não posso esquecer que, como resultado do golpe de Estado de abril de 2002, a ordem dada com respeito a nosso país pelos que assaltaram o poder foi: "Nem uma gota mais de petróleo para Cuba". Nos convertemos em um motivo adicional para que o imperialismo tentasse fazer explodir a economia da Venezuela, embora, na realidade, fosse o que se propunham a fazer desde que Chávez prestou juramento na presidência, sobre a moribunda Constituição da 4a República, que mais tarde, de forma legal e democrática, transformou na 5a República.

Quando o preço do petróleo subiu abruptamente e surgiram dificuldades reais para comprá-lo, Chávez não apenas manteve o fornecimento, como o aumentou. Desde os acordos da ALBA (Alternativa Bolivariana para os Povos de Nossa América), firmados em Havana em 14 de dezembro de 2004, esse fornecimento vem sendo mantido em condições honráveis e benéficas para ambos os países. Trabalham na Venezuela quase 40 mil abnegados especialistas cubanos, em sua maioria médicos que, com seus conhecimentos, e especialmente com seu exemplo internacionalista, estão contribuindo para formar os venezuelanos que vão substitui-los.

Expliquei a Lula que Cuba mantém relações de amizade com todos os países da América Latina e do Caribe, sejam eles de esquerda ou de direita. Traçamos essa linha há tempo, e não a mudaremos; estamos dispostos a apoiar qualquer gestão que favoreça a paz entre os povos. É um terreno espinhoso e difícil, mas vamos perseverar nele.

Lula expressou mais uma vez seu respeito e carinho profundos por Cuba e seus dirigentes. Acrescentou, de imediato, que sentia orgulho do que estava acontecendo na América Latina, e mais uma vez afirmou que aqui em Havana decidimos criar o Fórum de São Paulo e unir toda a esquerda da América Latina, e essa esquerda está chegando ao poder em quase todos os países.

Nessa ocasião, lembrei a ele o que nos ensinou Martí sobre as glórias deste mundo, que cabem todas num grão de milho. Lula acrescentou: "Digo a todos que, nas conversas que tive com o sr., o sr. jamais me deu conselho algum que pudesse entrar em confronto com a legalidade; que o sr. sempre e pediu que não fizesse muitos inimigos ao mesmo tempo. E é isso o que está permitindo que as coisas avancem."

Quase de imediato ele declarou que o Brasil, país grande e dotado de recursos, tem que ajudar o Equador, a Bolívia, o Uruguai, o Paraguai.

Agora temos estado na América Central. Nunca um presidente brasileiro havia visitado um país dessa região com projetos de cooperação.

Pergunto a ele: "Você se recorda, Lula, o que eu lhe disse no jantar familiar e informal que você ofereceu a nossa delegação no dia seguinte a sua posse, em janeiro de 2003? Nenhum dos filhos da grande maioria de pobres que votou em você jamais será executivo das grandes estatais brasileiras; os estudos universitários aqui custam caro demais!"

Com relação a isso, Lula explicou: "Estamos criando 214 escolas técnicas, profissionais; também estamos fazendo 13 novas universidades federais e 48 extensões universitárias."

Pergunto a ele: "Não se paga nada por isso, certo?" Ele me responde, rápido: "Criamos um programa e já colocamos 460 mil jovens pobres da periferia em escolas públicas, para que possam cursar os estudos universitários. A direita me acusava de estar procurando baixar o nível do ensino. Dois anos depois, foram pesquisados 14 cursos, e os melhores alunos foram os pobres da periferia. Estamos criando outro programa com 18 alunos em média; isso vai fazer com que haja 250 mil jovens no ensino universitário."

A relação comercial do Brasil com a América Latina é maior que com os Estados Unidos, ele me disse. Continuei a explicar a ele que, se íamos estabelecer relações estreitas entre os dois países, não apenas como amigos mas também como parceiros em áreas importantes, eu precisava conhecer o pensamento dos líderes do Brasil, já que estaríamos associados em áreas estratégicas, e nós tínhamos por norma cumprir nossos compromissos econômicos.

Falamos de outros problemas importantes, sobre os pontos em que coincidíamos e os em que não coincidíamos, com o maior tato possível.

Falei a ele de diversas regiões, incluindo o Caribe, e das formas de cooperação que desenvolvemos com elas.

Lula me disse que o Brasil precisava ter uma política mais ativa para cooperar com os países mais pobres. Tem novas responsabilidades, é o país mais rico da região.

Falei a ele, logicamente, sobre as mudanças climáticas e a pouca atenção dada ao tema por grande número de dirigentes dos países mais industrializados do mundo.

Quando falei com ele na tarde de 15 de janeiro, não pude mencionar o artigo escrito por Stephen Leahy desde Toronto, que só seria publicado três dias depois. Este fala do novo livro intitulado "Mobilizar-se para salvar a civilização", de Lester Brown.

"A crise é extremamente série e urgente e requer um esforço de mobilização das nações semelhante ao que foi realizado durante a 2a Guerra Mundial (1939-1945)", argumenta o autor, Lester Brown, presidente do Centro de Estudos Instituto para Políticas da Terra, sediado em Washington.

"As mudanças climáticas estão acontecendo muito mais rapidamente do que os cientistas haviam previsto, e a temperatura do planeta vai inevitavelmente subir em pelo menos dois graus", disse Brown à IPS, "o que nos colocará decididamente na zona de perigo."

"Nenhum dos pré-candidatos presidenciais às eleições nos Estados Unidos" --que terão lugar na primeira terça-feira de novembro-- "menciona a urgência do problema das mudanças climáticas."

"As emissões de gases causadores do efeito estufa, parcialmente responsáveis pelo aquecimento global, precisam ser reduzidas em 80% até 2020."

Trata-se de uma meta muito mais ambiciosa do que a proposta pelo Painel Intergovernamental sobre as Mudanças Climáticas (IPCC), que em 2007 recebeu o Prêmio Nobel da Paz em conjunto com o ex-vice-presidente americano Al Gore, que recomendou um corte de entre 25% e 40% com relação aos níveis de emissões de 1990, nos informa o despacho.

Brown estima que os dados utilizados pelo IPCC estão desatualizados, já que seriam de dois anos atrás. Estudos mais recentes indicam que as mudanças climáticas estão se acelerando, disse ele.

Embora ele confie que o IPCC vá mudar essa recomendação em seu próximo relatório, assinalou que este só será divulgado em cinco ou seis anos. "Será tarde demais. Precisamos agir já", disse Brown.

O Plano B 3.0 de Brown recomenda medidas para chegar aos 80% de reduções nas emissões. Elas são baseadas fortemente no uso eficiente da energia, nas fontes renováveis de energia e na ampliação do "escudo" de árvores do planeta.

"A energia eólica pode satisfazer a 40% da demanda mundial, com a instalação de 1,5 milhões de novas turbinas de vento de dois megawatts. Embora esse número pareça elevado, a cada ano são produzidos 65 milhões de automóveis no mundo. Uma iluminação mais eficiente pode reduzir em 12% o consumo mundial de eletricidade."

"Nos Estados Unidos, os edifícios comerciais e residenciais são responsáveis por 40% das emissões de carbono. O passo seguinte deve ser a geração de eletricidade não poluidora para a calefação, a refrigeração e a iluminação residenciais."

"O emprego de biocombustíveis que se produzem com grãos como o milho e a soja promove a alta dos preços desses alimentos e pode gerar uma escassez de alimentos desastrosa para os pobres do mundo."

"O acréscimo anual de 70 milhões de pessoas à população mundial se concentra em países em que as reservas de água estão se esgotando e os poços secam, as áreas recobertas de floresta se reduzem, os solos se degradam e as áreas de pastagem se tornam desertas."

"A cada ano que passa aumenta o número de 'Estados inviáveis', que constituem um 'alerta precoce' da derrocada de uma civilização", comentou Brown.

"O aumento do preço do petróleo deve ser somado à lista de problemas. Os países ricos terão tanto quanto precisarem, enquanto os pobres serão obrigados a reduzir seu consumo."

"O crescimento populacional e a pobreza exigem uma atenção especial do mundo desenvolvido."

"O tempo é nosso recurso mais escasso", concluiu o prestigioso cientista.

Não se poderia expressar com maior clareza o perigo que ameaça a humanidade.

Mas essa não é a única notícia publicada depois de minha reunião com Lula. Há apenas dois dias, ironizando o discurso de Bush perante o Congresso, o "New York Times", em seu editorial, exprimiu essa idéia em uma só linha: "Perigos horripilantes aguardam o mundo civilizado".

A China, país cuja superfície é 87 vezes maior que nossa ilha e que tem 117 vezes mais habitantes que Cuba, acaba de ser fustigada por uma onda incomum de frio que se abateu sobre Xangai, a área mais desenvolvida, e o resto da zona meridional e central desse grande país. As autoridades informam sobre a emergência cuja notícia é transmitida pelas agências de notícias internacionais do Ocidente (AFP, AP, EFE, DPA, ANSA e outras): "As fortes nevascas obrigaram ao fechamento de centrais termelétricas e reduziram à metade as reservas de carvão, principal fonte de energia do país, o que provocou uma grave crise energética".

"Na região mais afetada, 7% das usinas suspenderam suas operações, destacou a Comissão de Energia."

"Noventa centrais, que produzem outros 10% da eletricidade de origem térmica, podem fechar nos próximos dias, se a situação não melhorar."

"As reservas de carvão foram reduzidas a menos da metade, advertem as autoridades."

"O principal problema é o transporte. Mais de metade dos trens são usados no transporte do carvão, fato pelo qual a paralisia da rede ferroviária vem causando muitos problemas, destacou Wang Zheming, especialista da Comissão Estatal de Segurança."

"Wang recordou que, no momento atual, o transporte de carvão enfrenta a concorrência dos passageiros, pois devido às festas do Ano Novo está ocorrendo um êxodo ferroviário de quase 180 milhões de pessoas em apenas um mês."

"É difícil para a China usar outra fonte de energia. O ideal seria usar o gás natural, mas os depósitos ainda não são suficientes, comentou o especialista."

Também é preciso levar em conta que a bacia do Yangtzé e outras regiões do centro e sul do país sofreram nos últimos meses a pior seca em meio século, o que afetou a produção hidrelétrica.

"A neve vai continuar a cair com força nos próximos três dias", segundo a Associação Chinesa de Meteorologia.

"O país inteiro se mobilizou para resolver a emergência. Na cidade de Nanjing, 250 mil pessoas foram encarregadas de limpar a neve das ruas."

As agências de notícias falam de "460 mil soldados do Exército Popular de Libertação enviados às províncias chinesas para ajudar milhões de pessoas afetadas pelo pior frio dos últimos tempo, e de 1 milhão de agentes de autoridade para ajudar a restabelecer os transportes e os serviços."

"O Ministério da Saúde enviou 15 mil médicos para prestar assistência aos desabrigados. O primeiro-ministro Wen Jiabao discursou na cidade de Cantão a uma multidão de passageiros cujos trens foram paralisados."

"Calcula-se que há mais de 80 milhões de pessoas afetadas. Os prejuízos à agricultura e à produção de alimentados estão sendo analisados."

A BBC Mundo diz: "O governo da China informou que uma grave estiagem levou o nível de água de uma parte do maior rio do país, o Yangtzé, a cair para o nível mais baixo desde que foram iniciados os registros, 142 anos atrás."

"Na cidade portuária de Hankou, no centro do país, o nível da água caiu para 13,98 metros no início de janeiro, algo que não tinha sido registrado desde 1866."

A onda de frio se aproximava do Vietnã com temperaturas incomumente baixas.

Notícias como essas dão idéia do que podem significar as mudanças climáticas que tanto preocupam os cientistas. Em ambos os exemplos que citei, tratam-se de países revolucionários, perfeitamente organizados, com grande força econômica e humana, em que todos os recursos são imediatamente colocados a serviço da população. Não se tratam de massas esfomeadas, abandonadas à própria sorte.

Por outro lado, um despacho de 29 de janeiro da agência Reuters informa que "a França prevê modificar sua política de consumo de biocombustíveis, devido às dúvidas quanto ao impacto dos chamados 'combustíveis verdes' sobre o meio ambiente, informou na terça-feira a Secretaria de Estado para o meio ambiente.

"A França se converteu em um dos maiores produtores de biocombustíveis da Europa, desde que estabeleceu uma política ambígua que antecipa em dois anos a meta da União Européia de misturar biocombustíveis com combustíveis padronizados."

"Para alcançar seus objetivos de mistura de combustíveis, a França criou um sistema de cotas que se beneficiam de tarifas reduzidas, para tornar a mistura competitiva com relação aos combustíveis padronizados."

"A política incentivou muitas empresas a investir no setor, construindo usinas de etanol e biodiesel em todo o país."

Tudo o que acabo de expor, que embora já fosse previsto conceitualmente constitui uma soma de elementos novos recém-compilados, vai certamente exigir do Brasil, felizmente não afetado neste momento por grandes calamidades climáticas, iniciativas importantes em sua política comercial e de investimentos. No imediato, seu peso internacional está crescendo.

É evidente que vários fatores complicam a situação do planeta. Podemos enumerar vários:

1.O aumento do consumo de petróleo, produto poluente e não renovável, devido ao desperdício das sociedades de consumo.

2.A escassez de alimentos provocada por causas variadas, entre elas o crescimento exponencial da população humana e a dos animais que convertem os grãos diretamente em proteínas cuja demanda é crescente.

3.A superexploração dos mares e a contaminação de suas espécies pelos dejetos químicos industriais, incompatíveis com a vida.

4.A idéia macabra de converter os alimentos em combustíveis para o ócio e o luxo.

5.A incapacidade do sistema econômico dominante de fazer uso racional e eficiente da ciência e da tecnologia na luta contra pragas e doenças que agridem a vida humana, os animais e as plantações que a sustentam. A biotecnologia transforma os genes, e as transnacionais produzem e empregam seus produtos, maximizando seus lucros através da publicidade, sem segurança para aqueles que os consomem, nem acesso para os que mais necessitam deles. Entre esses produtos, as novíssimas moléculas nanotecnológicas --o termo é relativamente novo-- que abrem caminho desordenadamente pelas mesmas vidas.

6.A necessidade de planos racionais de crescimento familiar e da sociedade em seu conjunto, planos esses alheios a pretensões hegemônicas e de poder.

7.A ausência quase geral de educação sobre temas que são decisivos para a vida, inclusive nos países que têm os mais altos níveis de escolaridade.

8.Os riscos reais provocados pelas armas de extermínio em massa em mãos de irresponsáveis, o que o já citado "New York Times", um dos órgãos de imprensa mais influentes dos Estados Unidos, qualificou como perigos horripilantes.

Existem remédios para esses perigos? Sim: conhecer e assumi-los. Como? Seriam respostas puramente teóricas. Que o façam por si mesmos os próprios leitores, especialmente os e as mais jovens, como costuma dizer-se ultimamente para não dar a impressão de discriminar as mulheres. Não esperem que os chefes de Estado sejam os primeiros a fazê-lo.

Eu tinha ou não assuntos para conversar com Lula? Foi impossível falar de tudo. Desta maneira é mais fácil comentar com ele as notícias que chegaram depois.

Recordei a ele que eu procurava me recuperar de dois acidentes: o de Villa Clara e a doença que sobreveio depois de minha última viagem à Argentina.

Quase ao final, Lula me disse: "O sr. está convidado para ir ao Brasil este ano". Obrigado, respondi a ele --estarei lá pelo menos em pensamento.

Por último, ele me disse: "Contarei aos companheiros e amigos que o sr. tem no Brasil que o sr. está muito bem."

Andamos juntos até a saída. O encontro valeu realmente a pena.

Fidel Castro Ruz

31 de janeiro de 2008

Hora: 18h32.

Tradução de Clara Allain

 

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