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22/12/2002 - 04h09

Transexual brasileira vira estrela política

ALCINO LEITE NETO
da Folha de S.Paulo, em Paris

O agitado protesto das prostitutas diante do Senado francês, em Paris, no último mês, fez surgir uma estrela entre suas manifestantes. Erguendo a bandeira da França como um emblema da "liberdade, igualdade e fraternidade", Camille Cabral, que não é prostituta nem é apenas francesa e nem é somente mulher, foi a personalidade mais procurada, filmada e fotografada.

Camille Cabral é médica. Nasceu no Brasil. E é transexual. Em 2001, tornou-se a primeira transexual eleita por voto popular na França para um cargo público, o de conselheira municipal de Paris pelo 16º "arrondissement" (bairro). É uma das principais líderes de grupos minoritários do país.

Ela é fundadora e presidente do Pastt (Prevenção, Ação, Saúde, Trabalho para os Transgêneros), associação que dá assistência às transexuais _as mesmas que a rodeavam na manifestação como se ela fosse uma pitonisa ou uma líder revolucionária.

"Sou um coquetel de mitos: um pouco de madre Tereza de Calcutá, outro tanto de Evita Perón, mais um cadinho de La Passionária e muito de Maria Bonita", afirma a nordestina Camille em seu escritório no Pastt, em Paris, vestida de tailleur verde-claro que deixa entrever os joelhos e um xale com as cores do arco-íris, o símbolo da tolerância pelas diferenças sexuais.

"Pergunte-me o que quiser, menos três coisas: meu nome de nascimento, minha idade e se fiz ou não operação de sexo", pede ela à Folha.

Ela prefere dizer que tem "40 e poucos anos". O prenome Camille ela escolheu quando adotou a nacionalidade francesa, há dez anos. "Queria um nome muito francês, mas refinado", diz.

O sobrenome Cabral é o mesmo de batismo e de sua família nordestina, formada por fazendeiros e políticos. "Não vou te dizer meu nome porque esse é um passado que eu quero apagar. E não pretendo prejudicar meus parentes políticos. As pessoas podem usar a minha história para fazer pressão moralista sobre eles. Conheço a mentalidade do Nordeste."

Seus parentes foram ou são vereadores, prefeitos e presidentes de organismos regionais. Um de seus irmãos é assessor do governador eleito da Paraíba, Cássio Cunha Lima (PSDB). Camille não revela seu nome, mas conta o apelido na adolescência: Martelo.

Ela nasceu numa fazenda, na fronteira de Pernambuco e da Paraíba, segundo filho de uma família de oito irmãos. Em Campina Grande (PB), seu pai a levava para assistir a filmes italianos. "Adorava Visconti", recorda. Nos anos 70, passou no vestibular das Ciências Médicas, faculdade privada de Recife. Com o diploma na mão, foi para São Paulo, fazer estágio no Hospital das Clínicas.

Na capital paulista, ela decidiu pela primeira vez vestir-se publicamente de mulher. "Depois do trabalho, eu dava umas escovadas no cabelo, botava uma maquiagem preta, um rímel, um batonzinho e me jogava na noite de São Paulo." Também começou a tomar hormônios femininos, que ela receitava para si mesma. "Mas só pouquinho. Eu não podia ter peitões, pois guardava sempre o papel social de homem. Tinha de ganhar minha vida. Eu era doutor, e não doutora."

O jogo duplo durou até sua vinda para a França, em 1980, onde veio fazer um estágio em dermatologia, no que acabou se especializando. Trabalhava no hospital Saint Louis e já não escondia o jeito feminino. "Comecei a me impor como mulher no hospital. Eu deixava dúvidas. Uns me chamavam de 'madame', outros de 'monsieur'."

A transformação veio aos poucos: uma blusa mais decotada, um pouco mais de maquiagem, as sobrancelhas mais finas. "Até que chega um dia, meu filho, em que todo mundo está sabendo e você não precisa mais tapar o sol com a peneira, mesmo porque a peneira já está cheia de buracos."

Camille fez cirurgia para raspar bastante o osso da testa _"muito proeminente e masculino". Colocou duas pequenas próteses na face _"próteses sólidas, e não de injeção". E fez depilação definitiva do corpo e do rosto _"para tirar toda sombra de barba ou de bigode".

E a operação de sexo? "É uma questão muito íntima. Não vou responder", diz. "A identidade de gênero não está ligada à mudança de sexo. Nosso fenômeno não é genital, mas de sensibilidade, de atitude. Não existe nenhum parâmetro que exija que nós tenhamos de fazer operações genitais para podermos ter nossos direitos reconhecidos. Por isso prefiro usar o neologismo 'transgênera' e não a palavra 'transexual'. Eu sou uma mulher transgênera."

Transfigurada, Camille foi um impacto para os amigos. "Eles ficaram extasiados." Ficou um longo tempo sem ver sua família. Quando voltou a visitá-los no Brasil, desembarcava em São Paulo como mulher, mas no Nordeste como homem. Seus pais jamais a viram com um tailleur. "Eu chegava à minha cidade vestida de boné, com uma jaqueta bem masculina, os peitos espremidos por trás de umas camisas bufantes. "Ficava tão esquisita que não parecia um homem: parecia um sapatão." Sapatão é uma gíria para designar lésbica.

Camille diz que escondeu sua transexualidade dos pais não porque tivesse medo, mas por respeito a eles. Eles já tinham mais de 60 anos. "Creio que até me aceitariam, se fosse morar com eles numa ilha, mas naquela sociedade em que viviam eu seria um problema imerecido. Eu me camuflei para eles, mas por amor". Os pais de Camille já morreram. Com o tempo, os seus irmãos deixaram de estranhar que o menino Martelo tivesse virado uma madame franco-brasileira.

Talvez mais francesa que brasileira. Na França, Camille casou-se duas vezes. Na primeira, de papel passado e com divórcio no final. Ficou viúva de seu segundo marido. "Mas sou uma viúva alegre, não fico fazendo crochê em casa."

Por sua expertise em doenças sexualmente transmissíveis, sua condição de imigrante, de "transgênera" e por sua liderança sobre uma minoria sexual, Camille foi convidada a atuar no Partido Verde. Acabou se lançando como candidata a conselheira municipal em 2001, para um mandato de cinco anos. Fez campanha e tudo. Ia aos mercados de Paris, montava sua banca política, distribuía panfletos e soltava a voz: "Votez Vert, votez ecologistes, votez Camille Cabral". Foi eleita. "Eu hoje sou uma Marianne Bonita", diz ela, misturando a mulher-símbolo da República francesa com o mito do cangaço.
 

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