Saltar para o conteúdo principal

Publicidade

Publicidade

 
 
  Siga a Folha de S.Paulo no Twitter
03/08/2003 - 09h04

Cone Sul revê repressão de suas ditaduras

ROGERIO WASSERMANN
da Folha de S.Paulo

As feridas abertas do Cone Sul continuam a ser remexidas. Nos últimos dias, foram tomadas nos países da região diversas iniciativas que podem ajudar a esclarecer ou reparar abusos cometidos pelas ditaduras e regimes militares entre os anos 1960 e 1980.

A mais emblemática delas foi a ordem de prisão, em 24 de julho, de 46 ex-repressores da última ditadura militar argentina (1976-1983), cuja extradição é requerida pela Espanha. A ordem de prisão foi possível graças à revogação, pelo presidente Néstor Kirchner, de um decreto que impedia a extradição de ex-repressores.

Um dia antes, a Justiça Federal brasileira havia determinado a abertura dos arquivos do Exército sobre as operações de combate à guerrilha do Araguaia, movimento armado contra o regime militar (1964-1985) eliminado pelas Forças Armadas em 1974.

No Uruguai, o ex-ditador Juan María Bordaberry, o primeiro dos três presidentes da ditadura militar (1973-1985), depôs à Justiça, na última quarta-feira, sobre um caso no qual é réu pela morte de oito militantes comunistas e de um capitão do Exército em abril de 1972, quando ainda era presidente constitucional do país.

No Chile, o governo do presidente Ricardo Lagos promete entregar nos próximos dias uma proposta para indenizar financeiramente as vítimas e familiares de vítimas de abusos cometidos durante a ditadura do general Augusto Pinochet (1973-1990).

"Essas questões são temas que ficaram pendentes nas transições democráticas desses países e que não foram devidamente resolvidos", disse à Folha Victor Abramovitch, diretor-executivo do Cels (Centro de Estudos Legais e Sociais), da Argentina. Para ele, a pressão que vem provocando medidas como essas, apesar das leis de anistia que garantiam impunidade aos dirigentes desses regimes, "mostra o fracasso das soluções políticas que tentam evitar punições aos crimes".

Ceticismo

Familiares de vítimas desses regimes vêem as últimas iniciativas com otimismo, mas mantêm o ceticismo sobre a possibilidade de que as investigações levem ao esclarecimento de todas as questões pendentes, como o destino dos desaparecidos, e à punição de todos os culpados.

"Estamos percebendo uma mudança muito grande em todo o Cone Sul, que nos traz muita alegria e esperança de que as coisas comecem a mudar. Mas também não queremos nos iludir", afirma a argentina Marta Ocampo de Vásquez, presidente da Federação Latino-americana de Associações de Familiares de Detidos e Desaparecidos e membro das associações Mães da Praça de Maio e Avós da Praça de Maio.

Vásquez teve uma filha e o genro desaparecidos em 1977 na Esma (Escola de Mecânica da Marinha), em Buenos Aires, principal campo de torturas da ditadura. Ela também procura até hoje um neto, o qual a filha deu à luz quando estava presa e que foi possivelmente adotado por algum militar.
"Nossa principal reivindicação é saber o que aconteceu com os nossos filhos", afirma. "Acho que há vontade política [de parte do governo Kirchner] em esclarecer o que houve, mas não sei se ela é suficiente para julgar os culpados. Mas já é um começo", diz.

Mireya García, vice-presidente da Agrupação de Familiares dos Presos Desaparecidos, do Chile, tem posição semelhante. "Há um otimismo generalizado, por tudo o que está acontecendo, mas o Chile ainda tem muitas feridas para curar", diz ela, cujo irmão desapareceu durante a ditadura de Augusto Pinochet.

Para ela, a indenização prometida pelo governo às vítimas da ditadura não é suficiente. "É a direita chilena quem tenta vincular o tema das violações aos direitos humanos somente à questão das reparações financeiras. O que nós reivindicamos é verdade, justiça e memória, com as indenizações como parte da justiça", afirma.

García relaciona o atual momento com a detenção de Pinochet em Londres, em 1998, a pedido da Justiça espanhola, que pretendia julgá-lo na Espanha pelo desaparecimento de estrangeiros no Chile. O ex-ditador permaneceu em prisão domiciliar em Londres por 503 dias, até ser libertado, em 2000, após o governo britânico negar sua extradição por considerá-lo muito velho e doente para enfrentar um julgamento.

"A prisão de Pinochet em Londres foi o ponto de inflexão, que estabeleceu a idéia de que os crimes não podem ser usados pelos governos como forma de controlar conflitos", diz García.

Ainda que não atendam a todas as reivindicações das vítimas das ditaduras e de seus familiares, as iniciativas de investigação dos abusos devem servir como pressão para impedir sua repetição, na avaliação de Abramovitch, do Cels. "Essas iniciativas têm um impacto muito forte em formar uma base legal que impeça novos abusos", diz.
 

Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página