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26/10/2003 - 03h06

Artigo: Anti-sionismo disfarça novo anti-semitismo

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NELSON ASCHER
Colunista da Folha de S.Paulo, em Paris

O recente discurso no qual Mahatir Mohamad, primeiro-ministro da Malásia, acusou os judeus de dominarem o mundo por procuração e encorajou os muçulmanos a unirem-se para combatê-los causou surpresa apenas àqueles que não acompanharam sua carreira pregressa e aos que ignoram o crescimento exponencial, durante os últimos decênios, do anti-semitismo no mundo islâmico, que reúne um quinto da humanidade.

A Malásia é um país asiático de cerca de 20 milhões de habitantes. Entre estes, se é que existem, os judeus devem ser no máximo alguns poucos indivíduos. Quando eclodiu a crise financeira asiática dos anos 1990, ele a atribuiu publicamente aos judeus e, em especial, ao financista internacional (e judeu) George Soros.

O recente discurso, pronunciado diante dos líderes dos 57 países que compõem a Organização da Conferência Islâmica, foi aplaudido entusiasticamente e sem ressalvas. Isso, em poucas palavras, quer dizer que quase 30% dos membros da ONU de alguma forma endossam acusações que, não obstante terem sido comuns na Europa do entre-guerras e, constituindo o núcleo das doutrinas oficiais da Alemanha nazista, terem servido de justificativa ideológica do Holocausto, pareciam, após 1945, desterradas das conversas respeitáveis no mundo civilizado e relegadas a malucos ou fanáticos de extrema direita ou de extrema esquerda.

De todo o vasto mundo islâmico, era somente seu núcleo árabe que abrigava comunidades judaicas significativas até que, na virada dos anos 1940/50, elas foram vitimadas por uma purificação étnica praticamente completa. Antes desta, o tratamento que lhes era dado oscilou no correr dos séculos entre a tolerância e as perseguições, mas foi, no geral, melhor do que aquele que, antes do século 19, lhes reservara a Europa cristã. Os estatuto dos judeus em terras islâmicas era, como aliás o dos cristãos de lá, o de "dhimmis", ou seja, cidadãos de segunda classe, obrigados a pagar impostos especiais e detentores de menos direitos. Não pesava sobre eles, no entanto, o estigma de "deicidas", de assassinos de Cristo, que subjazia ao anti-semitismo cristão.

A situação começou a mudar em meados do século 19, quando, ao mesmo tempo em que se desenvolvia na Europa um anti-semitismo mais racial que religioso, os contatos desta com o Oriente Médio permitiram-lhe contaminar as terras islâmicas. Os judeus da cristandade vinham sendo acusados desde a Idade Média de cometerem o assassinato ritual de cristãos para, com seu sangue, preparar o matzá, o pão ázimo das cerimônias religiosas. A morte, em 1840, de um monge capuchinho em Damasco, que pertencia então ao Império Otomano, serviu de estopim ao primeiro grande processo de assassinato ritual conduzido contra os judeus da região. Se bem que os réus tenham sido inocentados, a lenda macabra não só não desapareceu, como criou raízes.

O atual ministro da Defesa da Síria, o marechal Mustafá Tlass, um dos fundadores do partido Baath, que monopoliza há décadas o poder no país, publicou, em 1983, um livro chamado "O Matzá de Sião", no qual reafirma as acusações originais e as estende ao restante do povo judeu. Seu livro foi várias vezes reeditado e traduzido para diversas línguas. Como "Os Protocolos dos Sábios do Sião" (um tratado que, forjado em 1905 pela polícia secreta tzarista, pretende ser uma espécie de relatório às lideranças judaicas, os "sábios do Sião", sobre o progresso de seus planos de dominarem o mundo), o livro de Tlass circula ampla e livremente pelo mundo árabe-islâmico alimentando tanto artigos de jornal e editoriais na imprensa oficialmente controlada quanto aulas nas escolas, sermões em inúmeras mesquitas e até mesmo séries de TV.

Se uma parcela dessa animosidade pode ser atribuída ao conflito militar entre israelenses e árabes, bem como ao trauma que os árabes sofreram por terem sido sucessivamente derrotados por Israel, nem todo esse sentimento advém de algo que, afinal, é uma disputa territorial relativamente modesta e geograficamente circunscrita. Ademais, o anti-semitismo muçulmano, em vez de diminuir, intensificou-se nos anos 90, isto é, precisamente na época em que os acordos de paz assinados em Oslo apontavam para uma solução pacífica, consensual e, sobretudo, racional da contenda. Acontece que, nos países vizinhos a Israel, mesmo naqueles que, como o Egito ou a Jordânia, haviam estabelecido com ele relações diplomáticas (pois a maioria dos países árabes ainda não reconheceu oficialmente o Estado judeu), a rejeição à presença ali de uma nação não-muçulmana, a demonização dos habitantes desta, as teorias de conspiração e os mitos mais sanguinários assumiram proporções epidêmicas.

Um dos primeiros livros a chamarem a atenção para tal estado de coisas foi "Semitas e Anti-semitas" (1986), do arabista britânico radicado nos EUA Bernard Lewis. Ele denunciava uma campanha promovida de cima para baixo, nos países árabes, por governo, intelectualidade e clero, mas seu veredicto então era cautelosamente otimista, pois, a seu ver, a maioria da população ainda não introjetara a propaganda e, talvez, uma solução do conflito territorial interromperia o processo em questão. Não foi o que sucedeu, e há, para tanto, uma multiplicidade de explicações.

O nacionalismo árabe e o quanto este podia ter de modernizador entraram em crise com a derrota na guerra árabe-israelense de 1967. O desempenho das economias da região, mesmo as que dispõem de petróleo, esteve substancialmente abaixo da média mundial, enquanto uma das maiores explosões populacionais gerou milhões de jovens desempregados, frustrados e sem expectativas. A decorrência foi um terreno fértil para um renascimento religioso do qual as vertentes mais radicais, como o wahabismo financiado e propagado pela Arábia Saudita, souberam se aproveitar.

Problema europeu

Essas frustrações oriundas do Oriente Médio combinaram-se com um problema recente e especificamente europeu, a saber, a presença de milhões de muçulmanos, principalmente magrebinos (norte-africanos), que vêm formando uma minoria substancial e que os países do continente não têm se mostrado capazes de aceitar de fato ou de assimilar enquanto parte integral de suas populações.

O fim dos assim chamados "30 anos gloriosos ", durante os quais as economias européias cresceram quase ininterruptamente, ocorreu na década de 90. Os resultados imediatos, como o desemprego e a falta de oportunidades para os jovens, afetaram mais intensa e imediatamente os imigrantes e seus filhos, fazendo deles presas fáceis para os pregadores fundamentalistas. O colapso, entre 1989 e 1991, do bloco comunista deixou a esquerda continental, sem uma causa clara a defender.

Procurando um novo eleitorado, ela acabou encontrando os imigrantes muçulmanos. A defesa e a cooptação destes pela esquerda se deu sob o rótulo, inicialmente bem-intencionado, do anti-racismo. Esse ativismo, contudo, levou a esquerda a, como se diz na França, "angelizar" as vítimas cujo partido tomara, ignorando que muitas delas vinham também absorvendo o fundamentalismo religioso e o anti-semitismo veiculado nas mesquitas, pelos meios de comunicação e, cada vez mais, pela internet.

A esquerda já vinha nutrindo, a partir dos anos 60, uma antipatia crescente por Israel. É difícil recordá-lo hoje em dia, mas depois da devastação do Holocausto, até a Guerra dos Seis Dias, Israel havia sido uma causa popular nos meios progressistas. Antes de 1967, os judeus conseguiram melhorar sua imagem convertendo-se em israelenses, cidadãos de uma pequena democracia sitiada num mar de tiranias retrógradas. Após essa data, a "causa árabe", vinculada a governos cruéis, corruptos e militarmente incompetentes, metamorfoseou-se na "causa palestina". Os palestinos passaram a ser chamados de "novos judeus", e aos israelenses se colou o rótulo de sionistas, um rótulo ao qual se associaram insistentemente ecos de racismo e opressão. Conforme a causa palestina se tornava sacrossanta entre os esquerdistas em geral, os sionistas principiaram, primeiro, a ser considerados e, agora, a ser abertamente chamados de "novos nazistas".

Na década que passou, as críticas legítimas à política israelense se consolidaram sob a forma de anti-sionismo, um movimento que, no limite, nega aos judeus os direito de terem seu próprio país e se torna, portanto, difícil de distinguir do anti-semitismo puro e simples. O ápice desse processo foi alcançado em agosto/setembro de 2001, quando a Conferência Mundial contra o Racismo das Nações Unidas, em Durban, na África do Sul, foi convertida por governos e ONGs num gigantesco fórum dedicado sobretudo à condenação de Israel.

Foi nesse fórum que a "nação dos judeus" se tornou efetivamente "o judeu entre as nações", um fenômeno que teria provavelmente garantido, com o isolamento de Israel, a vitória das reivindicações maximalistas da segunda Intifada se, poucos dias mais tarde, Osama bin Laden não tivesse, com seus atentados em solo americano, alterado o caráter da conflagração no Oriente Médio, fazendo dela um conflito mundial.

Seja no mundo islâmico, seja na Europa, seja nos EUA, os dois anos seguintes, radicalizando os sentimentos e os debates, trouxeram à luz do dia problemas que, não muito antes, eram descartados como secundários. O anti-semitismo do mundo islâmico e seu complemento europeu, que tem se manifestado na depredação de sinagogas, agressão a judeus etc., estão finalmente sendo reconhecidos, abordados e, aos poucos, também combatidos, como a profunda patologia sócio-política que são. Qualquer que seja, a solução não é para amanhã, mas que na França, país que, na Europa, é o epicentro desses problemas, autores renomados como Bernard-Henri Lévy ou Alain Finkielkraut tenham publicado livros corajosos de denúncia é, no mínimo, um sinal auspicioso.

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