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12/03/2004 - 04h00

Clóvis Rossi: Espanha se sente no 11 de Setembro

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CLÓVIS ROSSI
Colunista da Folha de S.Paulo, em Madri

O cheiro é de carne queimada, conta Nacho Benito, que esperava o trem na estação de Santa Eugenia, uma dos três locais atingidos, e se apressou socorrer as vitimas.

"Lembro-me de uma senhora, acho que era romena, cuja carne cheirava a queimado. Causava-me repulsa, ao mesmo tempo em que eu queria ajudar", descreve.

Os ruídos também marcavam semelhança com as descrições sobre o 11 de setembro de 2001 em Nova York: o centro de Madri se transformou numa impressionante cacofonia de sons vindos das ambulâncias, dos helicópteros sobre as zonas atingidas, de gritos de bombeiros e policiais tentando estabelecer um mínimo de ordem no caos.

No caos ou no "desafio de sangue e morte contra nossos valores, a liberdade e o Estado de Direito", como descreveu o candidato da oposição às eleições de domingo, o socialista José Luis Rodríguez Zapatero.

Mas o som mais lúgubre era o som do silêncio: vinha do meio das ferragens distorcidas dos vagões atingidos pelas bombas e saía dos celulares que não paravam de tocar. Mas seus donos já não podiam responder.

A busca por informações levou ao colapso o serviço de telefonia móvel. O trânsito parou. Os trens, como é óbvio, também.

"São horas de horror e raiva", dizia Mariano Rajoy, o candidato do governo às eleições de domingo, o primeiro a anunciar que a campanha eleitoral estava suspensa, decisão que todos os partidos acompanhariam em seguida.

Horror era precisamente o que sentia Enrique Sánchez, motorista de uma das primeiras ambulâncias a chegar a Atocha: "Isto supera a ficção. Havia muito pânico nos rostos, muita gente surda, cortes abundantes nos rostos, muito sangue".

Horror também, maior talvez, sentia o estudante de direito Alberto Hinojosa, que esperava na plataforma de Santa Eugenia a chegada do trem quando ouviu a explosão: "Tudo cheirava a carne queimada", conta.

Carne queimada dos mortos, que ficaram presos nos vagões mais atingidos ou caíram na via férrea e foram piedosamente cobertas pelos bombeiros, policiais e voluntários com mantas, papel metálico, o que houvesse à mão.

Se no 11 de Setembro houve um segundo impacto contra as torres gêmeas, no "11 de Março" de Madri houve também uma segunda explosão.

Mercedes Soria, empregada de loja, conta que, depois da primeira explosão em Atocha, "as pessoas corriam para as escadas de saída, em pânico, quando houve a segunda explosão, acelerando o pânico".

O pânico e o número de mortos teriam sido maiores ainda se tivesse explodido a bomba mais potente, a que estava no vagão da frente do trem de Atocha.

Cada uma das bombas tinha explosivos suficientes para fazer com que um grande pedaço do trem explodido em Santa Eugenia ficasse incrustado em uma concessionária de veículos bem em frente à estação.

Azucena Martínez, 34, secretária, conta que, quando houve a explosão na estação de Santa Eugenia, sua primeira reação foi a de achar que tinham caído os cabos que conectam o trem à rede elétrica. "De repente, todo mundo começou a correr, todo mundo estava cheio de sangue e, no trem, as pessoas estavam destroçadas."

Ao contrário do 11 de Setembro, em que a maioria dos cadáveres desapareceu sob um monte de escombros, em Madri mortos e feridos ficaram expostos, gerando cenas capazes de assombrar até veteranos dos serviços de emergência, como Fernando Sanjosé, voluntário da Cruz Vermelha.

Sanjosé trabalhava perto de Atocha e correu para ajudar. Mas, conta, "era quase impossível retirar os cadáveres em meio ao monte de ferros retorcidos". "Tomei o pulso de alguém, mas não havia sinal de vida."

Tampouco havia sinal de vida no corpo que Laura Espinoza, uma senhora de 62 anos, teve de mover um pouco para alcançar sua bolsa, que havia ficado sob o cadáver, após a explosão no trem do Pozo del Tío Raimundo.

Como no 11 de Setembro, a solidariedade explodiu junto com a raiva e o horror. Quatro pessoas a cada 15 minutos se apresentavam aos postos fixos ou móveis de doação de sangue. Tanto que, às 11h (7h em Brasília), menos de quatro horas depois da primeira explosão, as autoridades informavam que já estavam cobertas as necessidades de sangue.

Não era a única evidência de solidariedade: se não surgiram, de imediato, bandeiras espanholas em pencas, ao contrário de Nova York, surgiram, sim, em pencas, as mantas jogadas das janelas dos prédios próximos aos locais atingidos, para cobrir os feridos, cujas roupas estavam em pedaços.

Não só as roupas. José Luis, que não diz o sobrenome, conta que nunca esquecerá a cena de "uma mulher correndo, com a perna esquerda solta, dependurada".

Ao horror, acrescentavam-se os boatos: que outra bomba havia explodido em tal ou qual lugar, que não era o ETA, mas a Al Qaeda, que as eleições haviam sido canceladas porque se esperavam novos atentados, que...

A hipótese de novos atentados era de fato levada a sério pelos policiais, pelo menos os que atenderam as vítimas do Pozo del Tío Raimundo: eles cobriram com colchonetes das crianças os berços da creche La Cenicienta (a Cinderela), para protegê-las.

Assistentes sociais de todas as partes da cidade se ofereceram aos hospitais para atender parentes das vítimas, que se apresentavam em busca de informações que só saiam a conta-gotas, pelas dimensões da tragédia.

Mais necessários eram os psicólogos designados para o gigantesco necrotério improvisado em um local habitualmente de festa. A ala seis do Parque Ferial Juan Carlos 1º, local de feiras de Madri, com 10,6 mil m², foi reservada para receber os cadáveres.

Por volta das 12h30 (8h30 em Brasília), começou a chegar ao parque o que se transformaria numa procissão de carros fúnebres, levando cadáveres para que a identificação policial. Depois, a procissão era de pais em busca de filhos, de filhos em busca de pais ou mães, de mulheres querendo saber de maridos, de irmãos que buscavam irmãs.

Assistentes sociais e psicólogos eram mais do que necessários, se fosse verdadeira a história que se contava à porta do Hospital 12 de Octubre, que atendeu a 257 feridos: dizia-se que uma senhora ficou sentada em um banco, na saída de Atocha, em estado de choque. Quando tentaram atendê-la, recusou. Dizia sentir-se culpada por estar viva quando todos a seu lado haviam morrido.
Havia, em todo o caso, uma grande diferença entre o 11 de Setembro e Madri: a discrição das autoridades espanholas.

A rainha Sofia, seu filho, o príncipe Felipe, e sua noiva Letizia Ortiz visitaram à tarde hospitais que estavam atendendo as vítimas. Mas os jornalistas não tiveram acesso ao salão especialmente preparados para que a família real conversasse com familiares das vítimas em estado grave e com os feridos mais leves.

Um deles, ao sair caminhando do hospital 12 de Octubre, contou à agência de notícias France Presse que a rainha, o filho e sua futura nora haviam sido "muito amáveis, como sempre, e desejaram boa sorte aos feridos".

Mas, no Hospital Clínico, a rainha chegou às lagrimas, depois de ouvir fortes reclamações do parente de uma das vítimas internadas. Depois, o homem pediu desculpas. A rainha as concedeu.

Ao anoitecer, 12 horas depois dos atentados, Madri, a Espanha toda, vestia luto, a começar pelas telas das TVs, que exibiam todas, no alto, uma pequena bandeira vermelha e amarela do país com um laço negro no meio.

O luto levou milhares de pessoas a espontaneamente se concentrar nas praças das grandes cidades, de Barcelona a Madri, de Cádiz a Sevilha, antecipando-se ao protesto contra o terror que o governo convocou para hoje.

A noite avançava, o luto também: cinemas, teatros, museus, orquestras, todo o mundo do espetáculo não abriu as portas. Uma cidade que vive intensamente a noite transferia seu movimento para o improvisado necrotério, para os hospitais, e para as estações de trem em que começavam os trabalhos de recuperação.

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