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26/12/2005 - 03h04

Leia íntegra da entrevista com o escritor e jornalista Gay Talese

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MARCELO NINIO
da Folha de S.Paulo

Não foi um ano fácil para o jornal mais influente do mundo. Em outubro, o "New York Times" foi obrigado a admitir falhas na condução do ruidoso escândalo de vazamento de informações do governo Bush, que expôs a identidade de uma agente da CIA e levou uma de suas principais repórteres, Judith Miller, a passar 85 dias presa por não revelar sua fonte. Miller já havia sido pivô de outro embaraço para o jornal, ao escrever reportagens que reforçaram a tese, mais tarde desmentida, de que Saddam Hussein tinha armas de destruição de massa, usada pelos EUA para invadir o Iraque.

Para o escritor e jornalista americano Gay Talese, autor daquela que é considerada a história definitiva do "New York Times", Miller é apenas o símbolo de uma série de fracassos éticos e administrativos que contaminaram boa parte da imprensa americana.

Nascido em 1932 na pequena ilha de Ocean City, Nova Jersey, Talese foi um dos fundadores na década de 60 da vertente conhecida como "New Journalism", que usa a narrativa literária em textos não-ficcionais. Em entrevista à Folha, Talese foi impiedoso com a imprensa e os políticos de seu país, "vítima de sua própria propaganda". Um dia após a entrevista, o "Times" denunciou a prática de grampos ilegais do governo Bush e admitiu que segurou a notícia por um ano a pedido da Casa Branca, em mais um capítulo da intrincada relação entre mídia e poder. Leia a seguir trechos da entrevista:

Folha - Seu livro sobre a história do "New York Times" aborda amplamente a relação entre mídia e poder. Como o sr. vê a relação do jornal com o governo desde o 11 de Setembro?

Gay Talese -
A cobertura da guerra e do período que a antecedeu no "New York Times" é tão enganosa como o governo de que ela trata. O incidente Judith Miller é embaraçoso por reafirmar que repórteres em Washington às vezes ficam próximos demais das fontes de poder. Deveria ser o contrário, mas não é bem assim. O "New York Times" e outros grandes jornais freqüentemente enamoram-se de seu acesso ao poder e, sem sentir, viram apologistas dos órgãos do governo. O "New York Times" culpa Judith Miller, e com razão. Mas também tem que culpar a si mesmo, pois há muitas Judith Millers no "New York Times". Os editores que publicaram as reportagens que mais tarde revelaram-se equivocadas são igualmente equivocados.

Os editores buscam se dissociar do que Judith Miller escreveu inadvertidamente ou preconceituosamente. Pode-se dizer que ela se tornou porta-voz dos neoconservadores, ansiosos para invadir o Iraque. Mas ela não publicou seus artigos, só os escreveu. Havia até dez editores que estavam ali para revisar seus artigos antes de as manchetes serem escritas.
Portanto, a culpa deve ir para o alto, inclusive para o próprio [Arthur] Sulzberger, o publisher e dono do jornal, de 54 anos. Ele e seus principais editores são todos culpados. Eles fizeram de Miller um símbolo, mas há muitos outros que pode riam ter servido como estratégia do "New York Times" para sair desse grande dilema da imprensa, de estar lado a lado com o governo, junto com a gangue de Bush. O "New York Times" ama o poder, é o que temos de mais próximo nos EUA de um jornal do stabilishment.

O "Washington Post" talvez seja mais forte em política, mas o "New York Times" é o nosso único jornal nacional. E tem muito que pode ser usado pelo governo Bush, muito mais do que gostaria de admitir. Há alguns meses participei de um debate com Sulzberger e disse a ele que o jornal cometeu um erro ao permitir que seus repórteres ficassem "embutidos" (embedded) nas tropas americanas durante a invasão do Iraque. Disse que foi um erro estratégico, pois a partir do momento em que se permite que jornalistas fiquem em tanques e tenham acesso aos soldados, eles viram parte da missão. Ficam próximos demais daqueles que estão no Iraque para defender a política do governo Bush. Além disso, a informação que podem obter da cabine de um tanque, num jipe militar cruzando o deserto ou em um helicóptero é irrelevante.

O problema é estratégico: o "New York Times", agindo dessa forma, deixou de ser objetivo e de ter fontes independentes por estar próximo demais das políticas militares do governo Bush.

Folha - Não foi essa a intenção do Pentágono?

Talese -
É claro, essa era a estratégia. Repórteres jamais deveriam ficar embutidos. Nunca. Quando você está num jipe ou em um helicóptero o piloto controla seu acesso. O que se vê é o que eles querem que se veja. [O repórter] é sendo seduzido pelo poder, mas não recebe informação, só propaganda. O Exército faz do repórter, que é sugado para dentro dos sistema, um assessor de imprensa. "Embutido' deveria ser considerado um termo proibido no jornalismo. Judith Miller se tornou uma embutida não só por seu trabalho com as tropas no Iraque, mas [pelo contato] com [Donald]
Rumsfeld, [Dick] Cheney e [Paulo] Wolfowitz, se tornou uma flack [assessora de imprensa]. Mas ela não estava sozinha. Como eu disse recentemente sobre o "New York Times", de vez em quando eles têm um mau rei.

Folha - O sr. diz que os erros do "Times" podem ter sido fruto de preconceito. De que tipo?

Talese -
Após os ataques de 11 de setembro este país entrou num
clima vigilante, de vingança, de choque e horror [shock and awe]. A política externa americana é influenciada pelos neoconservadores, não é segredo. Wolfowitz [um de seus idealizadores], para sorte dele escapou para o Banco Mundial. Mas ele é tão vilão quanto Cheney e Rumsfeld. E há muitos jornalistas que tinham acesso aos neoconservadores porque eram também conservadores e com partilhavam as percepções da Casa Branca de Bush, delegando a si próprio a tarefa de apoiar a guerra, embora, como jornalistas, devessem se dissociar de qualquer coisa ligada à propaganda do governo. Mas isso é difícil para jornalistas que amam o poder, que querem acesso ao poder, ser parte dele, que se identificam com o poder. Eles gostam de ter "fontes", um termo ridículo. Estou feliz de ver que algumas dessas fontes estão sendo identificadas, mas ainda não na medida em que eu gostaria. Na minha opinião, todas as fontes deveriam ser identificadas.

Porque a informação obtida de fontes que não querem se identificar geralmente é fornecida para reforçar uma posição e prejudicar outra. É uma troca que resulta em algo desimportante historicamente, só tem valor na batalha do momento. É simplesmente lixo.

Folha - O sr. faz parte de uma minoria: os jornalistas americanos em geral consideram sagrado o direito de não revelar sua fonte.

Talese -
Penso o contrário: as fontes devem ser expostas. No meu trabalho sempre dei nome às fontes. Eu jamais aceitaria uma informação sob a condição de não dizer ao leitor quem é minha fonte. Tudo bem, temos o escândalo Watergate e o garganta profunda, mas acredito que em 80% das notícias com fontes não identifica das o repórter simplesmente foi preguiçoso demais para apurar direito e seduzir suas fontes. É possível fazer as pessoas falarem, pois quem quer dar informação sem ser citado é aquele que tem algum interesse na sua disseminação. E quem dá uma informação para ser publicada no "New York Times", no "'Washington Post" ou na revista 'Time' tem autoridade no governo ou é lobista, gente que tem interesse em fazer circular sua posição. Portanto, usa a imprensa como uma plataforma, como um balão de ensaio. Só que alguns repórteres ficaram preguiçosos por estar em Washington tempo demais.

Um outro problema é que há repórteres demais em Washington. Milhares deles. Circulam com as mesmas pessoas, são como pássaros bicando a mesma informação. Comem, mastigam, cospem, engolem de novo. O que eu faria, se ocupasse um cargo executivo em um jornal, seria retirar muitos desses repórteres de Washington. Eu os mandaria para as capitais dos 50 Estados dos EUA.

Em vez dos 35 repórteres do "New York Times" em Washington eu teria cinco. Os demais seriam distribuídos para fazer uma cobertura global ampla dos EUA, não com as pessoas que fazem propaganda em Washington, que tentam vender as histórias de Bush e de Rumsfeld. Que fossem para a capital do Texas, de Illinois e da Flórida para reportar sobre o que as pessoas realmente pensam. Porque os membros do Congresso jogam o jogo deles, assim como os repórteres jogam o deles, todos em Washington.

Tudo é tão baseado na costa leste e no centro do poder que os sentimentos reais das pessoas acabam subrepresentados. Por exemplo,não acredito nessas pesquisas de opinião sobre a popularidade de Bush, acho que elas são filtradas pela forma como são feitas.

Folha - O lema do "New York Times", considerado o melhor jornal do mundo, é "All the news that's fit to print" (todas as notícias que cabem ser publicadas). Quanto do que lê hoje no jornal o sr. acredita?

Talese -
Não acredito em nada do que vem de Washington, a não ser que eu mesmo possa checar. Acredito na seção de esportes, a única parte honesta. Também pode-se acreditar na programação da televisão e na previsão da meteorologia, mas nem sempre. Ele continua sendo o melhor jornal do mundo porque o nível da profissão é muito baixo hoje em dia.

Os jornais estão muito preocupados com a queda na circulação, com os altos custos e se os jornais podem sobreviver. E com razão, pois o produto que vendem é muito ruim. Os editores e quem comanda os jornais são os culpados. Foram os editores que deixaram que Jason Blair colocasse seus artigos no jornal. Ele escreveu 67 reportagens para o jornal.

O jornal culpa Blair e o demitiu, mas os culpados estão no topo. Se a família Sulzberger administrasse a General Motors, a CBS ou a Sony e cometesse tantos erros os conselhos de administração já teriam se livrado deles.

Folha - Isso é fruto de incompetência ou de uma agenda política?

Talese -
Acho que o "New York Times" enamorou-se do poder. Os jornais sempre dizem que mantêm a publicidade separada das redações. Dizem que não se importam com quem vende vestidos, carros. Mas eles se importam. Quando um país tem um presidente que representa o poder da forma como Bush faz, ou seja, um presidente poderosíssimo, como poucos foram desde Roosevelt, os publicitários têm a mentalidade de que o que é bom para os negócios é bom para o governo e vice-versa. Há uma aliança entre eles.

Quem escreve algo antipatriótico fica em grande desvantagem neste país. É o mesmo que ocorria na época do comunismo, na década de 50. Quem fosse suspeito de ser comunista poderia ter a carreira prejudicada.

Folha - O sr. quer dizer que a caça às bruxas está de volta aos EUA?

Talese -
Hoje em dia há uma certa caça às bruxas neste país sobre ser desleal. Então, o que a maioria dos americanos faz? Cola adesivos nos carros de apoio às nossas tropas. Mas a maioria dos americanos não é afetada pela guerra. Quem é afetado por essa guerra são os jovens que não têm dinheiro suficiente para ir à faculdade ou para resistir ao pagamento oferecido pela Guarda Nacional. Eles se alistam no Exército porque as oportunidades econômicas são tão miseráveis que precisam do dinheiro extra e acabam no Iraque. Poucos no poder têm filhos e filhas no Exército. Ao menos no Vietnã havia no Exército filhos e filhas de gente poderosa, de senadores, de reitores de universidades, ou seja, de pessoas mais educadas, mais afluentes. Eles estavam lá porque havia o alistamento obrigatório. Os protestos contra guerra no final da década de 60 e início da de 70 eram liderados por estudantes que não queriam ir para a guerra. Mas eles também tinham parentes com poder, representavam uma porção mais afortunada da geração. Hoje quem está no Exército representa os desprivilegiados, os desafortunados, os devedores, pessoas que precisam de dinheiro. Gente que se alistou na Guarda Nacional porque ganhava US$ 200 por mês e precisava de um complemento no orçamento. É isso que é tão trágico sobre esse evento. As pessoas continuam morrendo, mas a maioria dos americanos não é afetada, pois a economia vai bem, e os "grandes" estão ganhando dinheiro. Não sei quanto isso vai durar, mas as pessoas não estão se rebelando. No jornalismo jamais houve rebelião, no Congresso também não. Hillary Clinton e os democratas jamais protestaram contra essa guerra. Eles temem ser rotulados de antiamericanos, antipatriotas, de não apoiarem nossas tropas. Nossa nação se tornou vítima de sua própria propaganda. Não há dissensão. Há poucos dias morreu o senador Eugene McCarthy, que liderou os protestos antiguerra. Foi um dos primeiros políticos a se oporem a Lyndon Johnson lá atrás, em 1967, 1968, durante o conflito no Vietnã. Hoje não há essa liderança. Temos o [John] Murtha e outras pessoas, como a mãe do soldado morto [Cindy Shehan], mas esta guerra terrível já está durando muito tempo. Mas voltando ao jornalismo: antes de a guerra começar, essa informação errada vinda de defensores da guerra, Wolfowitz e Cheney, vazada para a imprensa, todas as Judith Millers, há muitas Judith Millers, você sabe, não só uma. Mas ninguém nos altos escalões dos principais jornais se perguntou: como podemos ter certeza de que o governo não está mentindo? Vamos deixar de ouvir essas fontes anônimas e fazer uma investigação.

Então nós nos tornamos vítimas de uma farsa, de um governo que enganou o povo americano e a imprensa sobre as armas de destruição de massa no Iraque e a ligação entre Saddam Hussein e a Al Qaeda. Tudo enganação e mentira. Mas os jornalistas e do nos dos veículos de mídia que se importam com a verdade deveriam ter verificado, não poderiam ter acreditado nas mentiras do governo.

Folha - Agora eles estão mais desconfiados.

Talese -
Mas quem se importa agora? Deveriam ter checado as informações três anos atrás. Agora há todas essas pessoas mortas e feridas. [O governo Bush] diz que não pode sair do Iraque agora, mas o fato é que jamais deveria ter entrado. E se tivesse havido alguma reportagem investigativa na época, se os jornais não tivessem permitido que a propaganda do governo fosse tão eficiente, talvez as coisas teriam sido diferentes. O problema real é que o jornalismo fracassou. O governo mentiu e o governo fracassou. É uma mancha para a história do jornalismo.

Até agora as pessoas continuam desinformadas, porque não recebemos a verdade.

Folha - Há hoje nos EUA alguma fonte de dissensão e informação honesta?

Talese -
Não. Não há voz que possa competir com a Casa Branca de Bush. Eles têm a Condoleezza Rice. Ninguém grita mais alto do que essa mulher. Ninguém é melhor na televisão do que Karen Hughes, que viaja por aí e conversa com as mães. Ninguém é melhor na televisão do que Rumsfeld. Ele devora qualquer jornalista. Cheney também. Não há ninguém forte o suficiente para fazer frente a eles. Essas pessoas sabem como usar a palavra. Eles seqüestraram a palavra. Seu uso da linguagem é tão eficiente que dão a impressão de que esta guerra é justificada.

Folha - O sr. pode dar exemplos?

Talese
Há poucos dias Rumsfeld foi a um programa de entrevistas na PBS (TV pública) e o entrevistador, um jornalista experiente, não conseguiu fazer com que ele reconhecesse nenhum fracasso do Departamento de Defesa ao enviar tropas para esse infeliz incidente chamado Guerra do Iraque. O governo inteiro é tão habilidosos em apresentar sua visão que às vezes dá a impressão de que nem sempre esteve certo. É como a grande Igreja medieval, que intimidava os dirigentes seculares da Europa.

Os grandes papas tinham um jeito de tornar sua mensagem tão profunda e sagaz que qualquer um que discordasse era infiel, era o demônio. Era o bem contra o mal, exatamente como temos hoje nos EUA, com mocinhos e bandidos. Isso é cômico, é como uma criança lendo história em quadrinhos: o mocinho de chapéu branco e o bandido de chapéu preto. Sua mensagem é clara e simples, e por isso sempre prevalece. Não há a menor sutileza e eles a martelam dia após dia.

Folha - A julgar pelas pesquisas de opinião, voltou a dar certo.

Talese -
Sim, continua dando certo. Veja esta eleição no Iraque, por exemplo, esta ridícula eleição no Iraque, que é veiculada toda noite nos telejornais, como se fosse um processo democraticamente organizado. O governo diz que não houve incidentes e que as pessoas puderam andar nas ruas, mas as ruas estavam bloqueadas, toda maldita calçada estava bloqueada. Eles controlaram a atmosfera e não deram espaço aos terroristas, os chamados "insurgentes", outra palavra inventada. Qualquer um que se levanta contra a ocupação de seu país é chamado de "insurgente". Se nós gostamos, chamamos de "combatentes da liberdade. Se não gostamos, eles viram "terroristas".

Folha - Mas no Iraque esses "insurgentes" também matam crianças e mulheres.

Talese -
Sim, mas são todos vítimas. As mortes dos homens e mulheres jovens que estão no Exército não devem ser menos lamentadas. Você acha que os jovens americanos que estão no Exército e estão sendo mortos ou aleijados são menos vítimas? Esses soldados não queriam estar lá.
Há alguns oportunistas, alguns "John Waynes", mas a maioria é de pessoas comuns que trabalhavam em lojas ou dirigiam ônibus, tentando ganhar a vida em construção. Gente de 22, 25, 26 anos.

Não são diferentes dessas mulheres e crianças [mortas no Iraque], são pessoas comuns, que por não ter dinheiro suficiente para estudar na faculdade de direito de Yale tiveram que se alistar no Exército. São todos voluntários. Eu sou a favor do alistamento obrigatório. Há um congressista negro de Nova York, Charles Rangel, que tem defendido o alistamento obrigatório, mas é uma piada, ninguém vai escutá-lo.

Folha - O sr. diz que não há oposição hoje nos EUA. Por que?

Talese -
Temos uma Presidência imperial, que cooptou a linguagem e o conceito de patriotismo. De tal maneira que uma das únicas pessoas que representam a tradição de justiça e liberdade de pensamento dos EUA, Ramsey Clark [ex-secretário de Justiça dos EUA], é vilificado por defender Saddam Hussein em seu julgamento, como se defendesse Hitler, como se defendesse o demônio. Não estamos dando um julgamento justo a ninguém. [Clark] é uma voz solitária. Nós demonizamos as pessoas, mas temos os nossos vilões. Pervez Musharraf [ditador do Paquistão] pode ser um vilão, mas é o nosso vilão, então é um bom sujeito.

Ariel Sharon [premiê de Israel] pode ser um vilão, mas é o nosso vilão, então é um bom sujeito. [Yasser] Arafat [líder palestino], tinha uma mulher rica vivendo em Paris e gastando muito dinheiro enquanto vivia nas ruínas com bombas por todo lado, nem seu banheiro funcionava. Ele era um vilão. É como um filme: nós escalamos o elenco, com o personagem principal, o vilão, a mocinha. É como a indústria do cinema, em que eles controlam as salas de projeção, o som, o roteiro. É impressionante.

Folha - Se a oposição doméstica é fraca, a internacional persiste. Isso não tem influência?

Talese -
Essa oposição também foi minimizada, silenciada, trivializada. Como disse o Rumsfeld, é a "velha Europa". Mais uma vez o uso da linguagem para anular a oposição. Rumsfeld os marginalizou e nenhum deles manteve a oposição. O único país que faz frente aos EUA é a China, que também está sendo vilificada. Há um grupo que defende que os EUA confrontem a China. E nós defendemos Taiwan, que é feita de um bando de ladrões que fugiram do continente chinês em 1949, roubaram todo o dinheiro com esse general terrorista chamado Chang Kai Chek, que é tratado como se fosse um George Washington. É uma loucura.

Folha - O que mudou desde a época em que o sr. começou a escrever?

Talese -
Quando eu era um jornalista do "New York Times" havia pessoas que nós realmente respeitávamos. Havia um Harrison Salisbury, que em 1966, no meio da Guerra do Vietnã, fez uma visita a Hanói e contou aos leitores que estávamos bombardeando mulheres e crianças em hospitais. Era janeiro de 1966, quando nós dizíamos que não fazíamos esse tipo de coisa. Ele expôs o governo e foi vilificado. Mais tarde, no Vietnã, tivemos David Halberstein. Ele ganhou um prêmio Pulitzer. Tínhamos uma imprensa forte durante a Guerra do Vietnã. E, como eu já disse, o alistamento era obrigatório. As pessoas nas faculdades estavam sendo alistados e estavam ficando irritadas. Eles tinham dinheiro e pais poderosos.

Desta vez, no Iraque, não temos um sistema de classes representado apropriadamente, só temos os desafortunados economicamente, das classes mais baixas. Não temos a classe alta, os futuros membros do Departamento de Estado, os futuros membros da América corporativa. Os filhos da classe privilegiada não estão nessa guerra. Entre os 500 membros do Congresso só um ou dois têm [filhos na guerra].

Folha - Por que a qualidade da imprensa caiu nos EUA?

Talese -
Os jornalistas hoje têm muito mais estudo. Sua educação é melhor, freqüentam melhores faculdades. Isso os fez ficar mais parecidos com as pessoas que estão no poder. Quando eu era jovem era diferente. Eu sou de família italiana, Halberstein é judeu, Salisbury é do meio-oeste.

Todas as pessoas com as quais eu trabalhei quando comecei no "New York Times" eram das camadas mais baixas. Seus pais, na maioria dos casos, não estudaram em faculdades. Nós não viemos das escolas de elite, éramos "outsiders", víamos o mundo com ceticismo. Hoje, quem cobre o poder estudou em Yale, Princeton, Harvard, Stanford. Seus pais são advogados, suas mães são líderes de empresas. Socialmente, o jornalismo está num nível mais alto. Veja o exemplo de Herbert L. Mathews. Ele foi acusado de ser usado por Fidel quando foi a Cuba. Foi considerado um comunista, mas não era. Mas tinha uma atitude independente. E foi vilificado, assim como Salisbury e Halberstein.

Não vejo ninguém assim hoje em dia, talvez Seymour M. Hersh, da [revista] "New Yorker".

Folha - O sr. ainda se considera um "outsider"?

Talese -
Sim. Eu jamais seria um "embutido". Não posso culpar os jornalistas que o fizeram, eles foram enviados para uma missão. Os donos dos jornais e editores tomaram a decisão de permitir que os repórteres viajassem nos tanques e escrever sobre a chamada "vitória militar". E eles continuam usando a palavra "vitória". Eles também seqüestraram a palavra. Recentemente eu contei 44 vezes a palavra vitória em um discurso de Bush. Continuam martelando.
 

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