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09/07/2006 - 04h30

Programa nuclear faz de Irã "santuário", diz analista

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JOÃO BATISTA NATALI
da Folha de S.Paulo

Em linguagem militar, "santuário" é um local tão protegido que nenhum inimigo ousaria invadi-lo. Pois ao se esforçar para chegar à bomba atômica, o Irã procura se "santuarizar". E o faz com "a certeza de impunidade", já que a China e a Rússia jamais votariam sanções econômicas de peso no Conselho de Segurança da ONU.

É o que diz o cientista político francês Frédéric Tellier, formado em Harvard e Chicago, ex-adido cultural da embaixada da França em Teerã e hoje pesquisador no Iris (Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas), de Paris.

A seu ver, seriam duvidosos os resultados de uma operação de bombardeio para a destruição de laboratórios ou centros de enriquecimento de urânio do regime islâmico. Eis trechos de sua entrevista à Folha.

Folha de S.Paulo - Há a possibilidade de o Irã aceitar o plano de assistência nuclear, em troca do fim do enriquecimento de urânio, feito pelos membros do Conselho de Segurança?

Frédéric Tellier -
A possibilidade é mínima, já que o próprio aiatolá Ali Khamenei, líder supremo do Irã, descartou a idéia de diálogo com os Estados Unidos. Tratava-se de um dos avanços mais significativos que a comunidade internacional fez na direção do Irã. Também sou pessimista porque depois de 2002, quando soubemos da extensão do programa nuclear iraniano, o país não foi objeto de nenhuma pressão decisiva para interromper o avanço tecnológico obtido na área. O regime islâmico sabe que o Conselho de Segurança está dividido, o que lhe assegura uma impunidade permanente. Isso explica sua intransigência.

Folha de S.Paulo - O sr. citou os EUA. Mas eles não aceitaram o diálogo bilateral. Estão na retaguarda diplomática de iniciativas francesas ou britânicas.

Tellier -
Washington adotou uma atitude prudente. Foram desperdiçadas nos últimos anos muitas oportunidades para que ocorresse um diálogo bilateral. A começar do Iraque, onde, caso Teerã tivesse uma política construtiva, a administração Bush teria aceito a abertura de um diálogo direto. Não tanto para restabelecer relações diplomáticas, mas ao menos para esboçar um processo de reaquecimento. No establishment iraniano a idéia de ir até o fim no processo de obtenção da bomba atômica é bem mais forte que a vontade de dialogar com Washington. O Irã considera o programa nuclear prioritário para a sobrevivência do regime. Ele quer, em verdade, a "santuarização" de seu território. Os EUA sabem disso, e assim evitam o desgaste de uma tentativa de diálogo.

Folha de S.Paulo - Ou seja, o Irã quer realmente chegar à bomba atômica?

Tellier -
Com certeza. Existem indícios suficientes coletados pela AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica) para diluir quaisquer dúvidas. Há pesquisas e atividades sem relação com um programa civil e essencialmente pacífico. A motivação iraniana é a esse propósito bastante complexa.

Folha de S.Paulo - Qual a complexidade?

Tellier -
O programa nuclear foi relançado em 1984 pelo aiatolá Khomeini. O Irã estava em guerra com o Iraque, cujas tropas chegaram a invadir seu território. Surgiu então um consenso entre o clero e as classes dirigentes de que só um programa nuclear militar daria ao país a "santuarização". Trata-se de garantir a sobrevivência e a perenidade do regime, afastando toda ameaça militar que venha de fora. O Irã está hoje numa situação de cerco geopolítico, e apenas a posse da bomba permitiria dar aos EUA o recado de que o regime não pode ser militarmente destruído. A arma nuclear é uma ferramenta para a sobrevivência do regime.

Folha de S.Paulo - Até que ponto os ocidentais não precisam apostar suas fichas nas divergências internas?

Tellier -
Circula nos EUA um plano de fortalecer os reformistas, que teriam sobre tudo isso uma concepção mais elástica. Mas não creio que seja uma boa estratégia. Em primeiro lugar, a política nuclear não está nas mãos do presidente Mahmoud Ahmadinejad. Quem manda é o aiatolá Khamenei. A eleição de Ahmadinejad, em junho de 2005, quando ocorreu o último confronto político entre reformistas e ortodoxos, não teve um impacto direto sobre os planos nucleares. Eram planos definidos havia mais tempo.

Folha de S.Paulo - Um presidente reformista não modificaria esses rumos?

Tellier -
Nada mudaria, inclusive se Mohammad Khatami [presidente reformista até o ano passado] estivesse ainda no poder. As grandes decisões relativas às atividades nucleares "sensíveis" são consensuais entre os grupos que convivem dentro do regime. É para eles uma questão de sobrevivência política. As divergências entre reformistas e conservadores têm pouco valor.

Folha de S.Paulo - Até que ponto seria eficaz uma operação militar que destruísse os sítios nucleares iranianos?

Tellier -
Caso se entenda por operação militar uma invasão terrestre do Irã, estaremos no campo do delírio. Não é algo realizável, e tampouco podemos imaginar que os EUA queiram abrir uma segunda frente, paralelamente às dificuldades que encontram no Iraque. A única opção séria estaria no bombardeio aéreo dos sítios nucleares. Mas tal operação traz incertezas tremendas. O programa nuclear iraniano foi geograficamente bastante descentralizado. Foi concebido de maneira oposta ao que Saddam Hussein desenvolvia no Iraque, com laboratórios e instalações num mesmo lugar, o que facilitou o trabalho de Israel, ao bombardear, em 1991, o reator em construção Osirak. No Irã há dezenas de sítios nucleares, alguns deles em locais desconhecidos, construídos ao longo de 22 anos. Em caso de bombardeio, não há garantias de que o programa nuclear se aniquilaria. Ele estará, no máximo, submetido a um atraso.

Folha de S.Paulo - E o Irã não responderia, se atacado por forças estrangeiras?

Tellier -
Com certeza. Os EUA estariam sujeitos a retaliações contra seus militares no Iraque. E há também os atos terroristas, tomando por alvo os países implicados.

Folha de S.Paulo - Acredita que o Conselho de Segurança chegue a um acordo em torno de sanções?

Tellier -
Teerã acredita, e com razão, poder contar com o veto da Rússia e da China, em caso de projeto de resolução que tente impor sanções econômicas importantes, como o embargo sobre o petróleo ou o congelamento dos investimentos iranianos no exterior. Moscou e Pequim são sinceros na tentativa de proteger a República islâmica. O Irã é o segundo fornecedor de petróleo da China, que necessita de energia abundante em razão das altas taxas de crescimento econômico. Além disso, a Rússia, a China e o Irã têm uma visão conjunta sobre seu meio ambiente geopolítico. Todos procuram limitar a influência dos EUA no Oriente Médio e na Ásia.

Folha de S.Paulo - Como assim?

Tellier -
Não é um acaso se no ano passado, na mesma semana em que Ahmadinejad foi eleito, a Rússia e a China admitiram o Irã como observador da SCO (Organização de Cooperação de Xangai), uma aliança regional cujo objetivo implícito é o da marginalização da influência americana na Ásia. Estamos assistindo nesse início de século 21 à emergência desse bloco, com interesses políticos e econômicos convergentes. Para resumir, estou pessimista quanto à possibilidade de sanções que coloquem o Irã de joelhos em razão de seu projeto nuclear. Os debates no Conselho de Segurança se paralisarão rapidamente, a não ser que se votem sanções com um peso meramente simbólico.

Folha de S.Paulo - Estaríamos então assistindo de braços cruzados o parto de uma nova Coréia do Norte?

Tellier -
A comparação com a Coréia do Norte é pertinente, já que naquele país o Ocidente está sem poderes para deter um programa nuclear bem mais avançado ou dissuadir os norte-coreanos de testar mísseis. Com relação ao Irã é preciso construir uma estratégia de longo prazo, que não procure derrubar o regime islâmico ou aniquilá-lo por via militar. É preciso, ao contrário, investir na sociedade civil, em sua juventude, que demonstra a vontade de democracia e laicidade. Infelizmente essa juventude recebe uma quantidade reduzida de "recados" do Ocidente. Nada se diz aos estudantes, que são hoje os únicos a se dissociar das ambições nucleares.

Folha de S.Paulo - Há a seu ver, nisso tudo, algum risco para Israel?

Tellier -
Infelizmente que devemos interpretar ao pé da letra as declarações escandalosas do presidente iraniano ("varrer Israel do mapa", negação do holocausto, proposta de deportação dos israelenses à Áustria). O Irã não lançaria uma bomba atômica contra Israel, que é por sua vez capaz de responder à altura. Com a bomba atômica, o Irã se blindaria para exercer políticas destinadas a prejudicar os israelenses. O governo iraniano apóia os que combatem Israel, sobretudo os que lançam mão do terrorismo. Tal ingerência se multiplicaria caso o Irã tenha a certeza de que, em razão da bomba, não seria atacado. A Revolução islâmica teria novo fôlego para exercer a expansão de seu sectarismo ideológico. Em solidariedade ou em oposição a ela, o Oriente Médio mergulharia num período de radicalizações.

Especial
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