Pensata

Eliane Cantanhêde

16/01/2008

Seis casos, cinco mortes

Ontem, terça-feira, 15 de janeiro, já estavam confirmados seis casos de febre amarela no país neste ano, com cinco mortes, o que me remete a uma história bastante educativa de 30 anos atrás.

Governo Ernesto Geisel, regime militar, censura à imprensa. O ministro da Saúde daquela época, porém, era um dos melhores que já passaram pela pasta em toda a sua história: o sanitarista Paulo de Almeida Machado, que deixou políticas, operações e princípios de saúde pública que vêm sendo respeitados até hoje por todos os seus (os bons) sucessores.

Eis que, devagar, sorrateiramente, o país começou a viver uma epidemia de meningite, com crianças morrendo e todo mundo em silêncio, até que Almeida Machado me deu uma corajosa entrevista reconhecendo a epidemia, falando sobre os riscos e alertando as pessoas sobre como agir nas circunstâncias.

Naquela época, usávamos máquinas de escrever e telex. Pois não é que a entrevista foi censurada pela ditadura antes mesmo que o longo telex chegasse inteiro à sede da revista "Veja" em São Paulo? Por quê? Versão: porque não havia vacinas e seria "alarmar a população inutilmente". Fato: além disso, queriam "proteger a imagem do governo". Na cabeça estúpida dos censores da ditadura, era mais importante manter as pessoas ignorantes sobre os riscos do que ensiná-las a tentar diminuí-los ao mínimo possível. E eles, os censores, às vezes eram mais realistas do que o rei.

Quando cobrei do ministro o corte da reportagem, ele ficou indignado. Telefonou a Geisel, que também ficou indignado, e me chamou de volta ao gabinete para repetir tudo de novo. Pena que não deu mais tempo para aquela edição e só entrou na semana seguinte --mas entrou. Almeida Machado já tinha encomendado ao exterior lotes de emergência da vacina. Não eram suficientes, e ele se concentrou nos locais mais afetados. Era um médico abnegado e também um estrategista em saúde pública.

Trinta anos depois, essa história vem a calhar diante da atual situação da febre amarela no Brasil. Ainda é oriunda da área silvestre, mas estava crescendo, não se sabia ainda em que dimensão e, assim, lancei o alerta aqui há uma semana, na quarta-feira passada, para que todos se vacinassem. Em saúde, já dizia Almeida Machado, prevenção é tudo.

Pois sabe o que aconteceu? Os censores de hoje, armados não com tesouras, mas com a internet, passaram não só a me censurar, mas a me insultar em e-mails com coisas delicadas como "vagabunda", "quenga", "prostituta", "vendida". E, por mais ridículo que pareça, me acusando de chamar o presidente Lula de "Aedes aegypti". Seria de morrer de rir, não fosse de morrer de chorar.

Para quem quiser ler, está aí, na Pensata da Folha Online. Escrevi --e repito-- que as pessoas deveriam se vacinar, sim, e que a febre amarela deveria servir de alerta para que o governo tentasse salvar as verbas da Saúde e da Educação neste momento crucial de cortes de gastos, concluindo com um apelo: "Senão, Lula, o Aedes aegypti vem, pica e mata sabe-se lá quantos neste ano --e nos seguintes". Ou seja: Lula, não corte na Saúde e na Educação, porque, senão, a Saúde vai sofrer e a febre amarela vai piorar e matar mais e mais.

Claro e transparente assim. Só não vê quem não quer. Se fosse só burrice, a gente até perdoava. Mas é má-fé de quem é pago para confundir e desqualificar, fingindo defender altruisticamente idéias, pessoas e governos. Uma covardia. E, mais uma vez, mais realista do que o rei.

Às pessoas que escreveram realmente criticando, discordando ou perguntando, decentemente, respondi o que escrevo aqui, agora. Há uma epidemia de febre amarela? Não. Ou ainda não. E cabe às autoridades dizer que não. Mas à imprensa e aos jornalistas o importante é informar que há casos, explicar a doença e os sintomas, mostrar como é possível evitar e estimular a vacinação. Para nós, não interessam apenas as estatísticas, interessa cada indivíduo também.

Pergunte à família de Graco Carvalho Abubakir, que morava no meu bairro e morreu de febre amarela na semana passada, aos 38 anos, se ele deveria ou não ter sido vacinado. Abubakir e os quatro outros mortos não eram números. Eram pessoas.

Se você não quiser se vacinar, o problema é seu. Mas a mim compete alertar as pessoas para que se vacinem, sim. Aliás, como Lula já tinha se vacinado, e eu também.

PS - Atualização: na própria quarta-feira à noite, já estavam confirmados 10 casos e 7 mortes nos primeiros dias do ano, o que é mais do que 2006 e 2007 somados.

Eliane Cantanhêde é colunista da Folha, desde 1997, e comenta governos, política interna e externa, defesa, área social e comportamento. Foi colunista do Jornal do Brasil e do Estado de S. Paulo, além de diretora de redação das sucursais de O Globo, Gazeta Mercantil e da própria Folha em Brasília.

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