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Não
é por acaso que se diz que a língua é elemento fundamental na criação
de uma identidade nacional. Não só por tornar a comunicação possível,
mas também por evidenciar aspectos do inconsciente coletivo. Não
só pelos tropeços cometidos no uso da linguagem, como já mostrava
o avacalhado, digo, afamado Dr. Freud, mas também por aquilo que
uma língua tem de particular.
Nas línguas em que conheço, há sempre uma idiossincrasia, um termo
único, intraduzível e que pertence unicamente àquela língua, como
é o caso dos vinte e tantos termos que os esquimós têm para falar
de neve, algo tão onipresente em seu dia-a-dia quanto mulheres rechonchudas.
O inglês, por exemplo, é verdade, tem uma variedade vocabular bem
maior do que o Português. E é verdade que existem centenas de vocábulos
ingleses intraduzíveis, mas há dois que chamam a atenção. Um é "obnoxious",
o outro é "successful". Successful é simples: literalmente, "cheio
de sucesso". É palavra que sai da boca de onze entre dez estudantes
americanos quando perguntados o que querem ser quando crescerem.
O engraçado é que termo tão popular e tão simples não encontra correlatos
de mesma aceitação em Português. Há "exitoso", mas é tão pouco usado
que nem conta.
O outro termo é obnoxious, um adjetivo que qualifica um estágio
todo especial, entre arrogante e pedante, mas com mais uma certa
maldade. É também muito usado nas terras do Tio Sam, freqüentemente
para descrever alguém muito successful.
O espanhol, por sua vez, ganha em diversidade por suas colorações
regionais. Na Colômbia, por exemplo, a gíria para legal, bacana,
"cool", é "chévre" - isso mesmo, aquela marca de queijo francês.
Diz muito sobre um país quando a sua população usa a imagem de um
queijo fedorento para descrever o que há de melhor. Na Argentina,
a expressão campeã é o "boludo", tão ambígua para os portenhos como
o "filho da mãe" pode ser do lado de cá do Prata. É freqüente a
exclamação "Pero no seas boludo, boludo!", uma pérola de riqueza
e sintaxe digna de deixar um Borges cego e surdo, e carregada de
toda a ambiguidade e falicismo capazes de empregar a comunidade
psicanalítica portenha por una bida entera, boludo. Já na Espanha,
onde a única frescura tolerada é o cuspezinho saído quando se pronuncia
"zumo" com a língua raivosa entre os dentes da frente, a expressão
mais representativa me parece o "fatal". Essa palavra negra, tão
pouco usada nos trópicos, pula na boca dos espanhóis como palito
na de caminhoneiro. Quando a recepção telefônica está mal, me dizem:
"No te oigo nada, tio, que esa línea está fatal!". Parece El Cordobés
enfiando uma espada na testa do touro.
Mais pacíficos e malemolentes como nós são os italianos. E imagino
que algum desocupado conversador da terra de Dante e Petrarca tenha
criado o maravilhoso termo "chicaccherare", quase onomatopéico.
Serve para descrever esporte comum entre italianos, que é de se
sentar num café de alguma piazza perdida e jogar conversa fora,
mas agitadamente e com ares de grande importância.
Pues, depois de analisar assim as línguas dos outros e tentar extrair
delas o termo intraduzível que melhor expressasse sua inconfessável
alma, fiquei pensando sobre o nosso Português. Cheguei a conclusão,
entre uma lágrima e um riso de esgar, que os únicos termos da terrinha
que nunca consegui traduzir para língua nenhuma foram "malandragem"
e "sacanagem", e seus derivativos. Também pensei em "jeitinho",
é verdade, mas aí entramos no ramo dos diminutivos, e a comparação
seria...bom, sacanagem.
* * *
Cantinho do Energúmeno
Falando em traduções, um energúmeno que sempre dá a cara pra bater
é o tradutor, especialmente o de títulos de livros e filmes. Nos
filmes, o tradutor brasileiro sempre quer dar mostras de sua criatividade
e raramente contenta-se em traduzir o título original. Sempre dá
uma enrolada. "Good Will Hunting" vira "Gênio Indomável", "The Silence
of the Lambs" ficou sem os carneiros mas com os "Inocentes" no Brasil.
Sem falar na irresistível tentação de usar um apodo irrelevante.
Os filmes no Brasil vêm volta e meia acompanhados de um " - A Missão"
ou " - Duelo Final" ou " - Um Lutador" que nunca existiram no original.
Devia ser proibido. O direito autoral é do autor da obra, e não
cabe ao tradutor mudar seu título. O troféu vai para o tradutor
do livro "The Physician", traduzido para "O Físico" no Brasil porque
o tradutor não deve gostar muito da palavra "médico".
Leia
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27/12/2000 - Reencontro
ou falsidade?
20/12/2000 - O jornalismo e a estatística
13/12/2000 - Europa por £1 por dia
06/12/2000 - O onipresente
03/12/2000 - É uma câmera
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