Pensata

Hélio Schwartsman

08/01/2004

A terra e o mal

"Eu fui uma boa muçulmana, rezei para Allah todos os dias. Não sei a razão pela qual tudo isso me aconteceu." A frase é da iraniana Alma Sepehr, sobrevivente do terremoto que atingiu o sudoeste do país no último dia 27, matando entre 30 mil e 50 mil pessoas, e foi proferida junto à vala em que ela acredita terem sido enterrados 21 parentes seus, entre eles o marido, uma filha, um filho e vários irmãos.

Sepehr não é a única a ter-se feito questionamentos dessa natureza. Na verdade, com sua dúvida, a infeliz iraniana adentra num terreno já percorrido por dois dos maiores filósofos de todos os tempos. Falo da célebre polêmica entre Voltaire e Rousseau acerca do terremoto de Lisboa.

O ano é 1755. Às 9h40 do dia 1º de novembro, um grande sismo atinge a cidade de Lisboa, então a quarta maior da Europa. Era Dia de Todos os Santos e, por isso, a maioria dos moradores estava na missa. Muitos morreram sob os escombros de igrejas que ruíram. As áreas baixas da cidade foram rapidamente engolidas por ondas gigantescas. Como se não bastasse, seguiu-se um terrível incêndio, que destruiu boa parte do que havia sido poupado pelo tremor. O fogo durou seis dias. O total de mortos jamais será conhecido. As estimativas variam muito. As mais altas mencionam a cifra de 70 mil; as menores indicam 30 mil. Um bom "chute" parece ser 60 mil (pelo menos é o "chute" da "Britannica"). Voltaire, em seu "Poema sobre o Desastre de Lisboa" chega a falar em 100 mil, mas trata-se obviamente de uma licença poética --o sacrifício da precisão dos fatos às precisões da métrica.

Além dos alicerces de Lisboa esse megassismo fez tremer o fervilhante mundo intelectual do século 18. Mais ou menos como a nossa Alma Sepehr, Voltaire --o pseudônimo de François-Marie Arouet (1694-1778)-- se perguntou como um Deus benevolente e onipotente --era assim que algumas das mais populares igrejas da época O descreviam-- teria permitido tamanho desastre. No dia 24 de novembro, apareceu seu "Poema sobre o Desastre de Lisboa" (o "link" vai em francês mesmo, pois não encontrei o texto em português), cujo subtítulo é: "ou o exame do axioma: 'tudo está bem'".

Emerge dos versos uma boa dose de indignação. Se Deus é bom, por que permitiu tal tragédia, que não poupou nem as criancinhas? No fundo, Voltaire coloca uma questão que todos já nos fizemos: como compatibilizar o mal com a idéia de um Deus benfazejo? "É preciso dizer: o mal está na terra:/ Seu princípio secreto é desconhecido/ Do autor de todo bem terá ele partido?", diz o poema.

Com efeito, a contradição entre a idéia de um bem absoluto e o mal visível é conhecida desde a Antiguidade. Sigo agora algumas das idéias expostas pelo professor José Oscar de Almeida Marques, da Unicamp, no interessante "paper" "Facing the Epicurean Dilemma: Rousseau and Voltaire in Search of Providence". Atribui-se a Epicuro o seguinte dilema: Se Deus é bom e onipotente, não poderia haver mal sobre a Terra; havendo, ou Deus não quer acabar com o mal --e não é benevolente-- ou não pode fazê-lo --e não é onipotente. (Poderíamos, é claro, reduzir o dilema a um problema de linguagem e, portanto, a um falso paradoxo: a questão é insolúvel porque foi mal formulada; não posso exigir nem de um Ser Supremo que aja contraditoriamente. Mas, com essa interpretação, perderíamos toda a graça do debate metafísico).

A dificuldade levou teólogos cristãos e filósofos a reduzir o mal a uma aparência. Quando achamos que algo representa o mal, na verdade, estamos fazendo uma leitura equivocada do fenômeno. Nós, humanos, não podemos, como Deus, enxergar as coisas em suas reais dimensões. Não podemos dizer que alguém sofre injustamente se não conhecemos, como Deus, todos os seus pecados. Tampouco sabemos quais são os planos divinos para o futuro. O que hoje parece o mal poderá ser compensado no futuro. Depois, não devemos nos limitar ao plano individual. Deus pensa grande --ocupa-se de toda a Criação--, e certos sacrifícios são necessários.

O texto de Voltaire é, na verdade, uma crítica a sistemas que postulam um certo otimismo filosófico. Os alvos são o alemão Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716) e, em menor escala, o inglês Alexander Pope (1688-1744), que versificou e popularizou idéias do alemão. Num resumo extremamente grosseiro, o filósofo tedesco postula que o mundo em que vivemos é o melhor dos mundos possíveis. O Deus sábio e necessário --e, portanto, existente--, dentre todos os mundos possíveis, criou o melhor de todos. Tudo está bem.

É exatamente contra esse esse axioma que Voltaire se insurge no "Poema". A crítica a Leibniz é um tema que o filósofo francês retomará com muito mais ironia --e, portanto, sabor-- em seu célebre romance filosófico "Candide", de 1759.

Quem leu o "Poema" e encontrou problemas foi Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). A resposta veio em 18 de agosto de 1756 sob a forma de carta, a "Lettre sur la Providence" (essa é uma versão parcial da epístola em francês; surpreendentemente não consegui achar o texto integral na internet). Aí o bom Jean-Jacques, para isentar o bom Deus e a gentil mãe-natureza de toda a culpa, prefere atribuí-la aos homens, processo que resulta numa visão bastante moderna do problema dos terremotos. Como bem observa o cidadão genebrino, não foi a natureza que, numa área relativamente exígua "reuniu 20 mil casas de seis ou sete andares". Ele vai ainda mais além e pergunta-se "quantos infelizes pereceram neste desastre, porque quiseram pegar, um suas roupas, outro, sua papelada, outro, seu dinheiro?".

Embora hoje pareça óbvio que as consequências de um terremoto --ou mesmo de um furacão, uma enchente e vários outros desastres "naturais"-- são inseparáveis do tipo de sociedade na qual ocorre a tragédia, essa era uma idéia original no século 18. Com efeito, se cidades não fossem cidades e os homens não fossem homens, o terremoto de Lisboa não teria sido o terremoto de Lisboa. Estou, evidentemente, fazendo pilhéria com Rousseau (eu sempre torço por Voltaire!), mas a nova interpretação proposta pelo genebrino é de fato um marco nas ciências humanas. Vários autores vêem aí o surgimento da abordagem sociológica desse tipo de fenômeno.

E o sismo teve importantes implicações sociológicas. O marquês de Pombal encontrou a oportunidade que procurava para remodelar Lisboa e a própria estrutura de poder do Estado português e lançar o pequeno país no que era então a modernidade. De quebra, aproveitou a reação dos jesuítas ao cismo (a recomendação de mais rezas e mais penitência) para expulsar a ordem de Portugal e seus domínios.

Afora imprevistos como o terremoto, eram tempos de otimismo. As ciências naturais começavam a reclamar o papel de destaque que ocupariam a partir do século seguinte. Logo viriam as revoluções norte-americana e francesa e, com elas, a maioridade política do homem.

Como Voltaire, tendo a desconfiar de otimismos. Não sei se foi um Deus benevolente e onipotente quem concebeu o mundo, mas, se esse foi o melhor trabalho que Ele pôde realizar, precisamos rever nossos conceitos de benevolência e onipotência. Terremotos, como o de Lisboa e mais recentemente o do Irã, atestam para além de qualquer dúvida que existem coisas más sobre --e sob-- a terra. É claro que o termo "mal" aqui deve ser pensado, não em termos absolutos, mas como o que contraria os interesses de um bom número de seres humanos. Pior, como o contraste entre a indiferença da natureza e os tormentos últimos de uma legião de homens, mulheres e crianças. Concordo com Rousseau que a gentil mãe-natureza não pode ser responsabilizada pela forma como construímos nossas cidades e gerimos nossos assuntos. Mas o mesmo se pode dizer dos filhos da iraniana Alma Sepehr, que pereceram sem ser culpados. Se o mal não existe, eu não saberia imaginá-lo.

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

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