Pensata

Hélio Schwartsman

04/11/2004

Democracia, aristocracia e Bush

"O modo de escolha do magistrado-chefe [presidente] dos Estados Unidos é praticamente a única parte importante do sistema [constitucional] que escapou de severas censuras e que até foi objeto de sinais de aprovação por parte de seus oponentes [...] Vou ainda um pouco mais longe e não hesito em afirmar que, se a maneira não é perfeita, é pelo menos excelente". Essas palavras foram escritas em 1788 por Alexander Hamilton (1757-1804), um dos "founding fathers" (pais fundadores) dos EUA. Como se vê hoje, seu prognóstico não poderia estar mais errado.

O presidente George W. Bush triunfou no pleito de terça-feira, mas o fantasma do malogro de 2000 rondou também esta eleição. Em pelo menos três Estados, a diferença entre os dois candidatos foi reduzida o suficiente para fazer os democratas adiarem até a tarde de ontem o reconhecimento da derrota. Em Ohio, ainda existe a possibilidade matemática de John Kerry reverter a situação com a contagem dos sufrágios enviados pelo correio e dos votos provisórios, o que lhe daria a vitória no colégio eleitoral, mas, considerada a tendência do escrutínio no Estado, são menos do que desprezíveis as chances de isso ocorrer.

Lamentavelmente, teremos mais quatro anos sombrios com Bush na Casa Branca. A América decididamente foi para a extrema direita. Desta vez, Bush venceu também no voto popular --e com uma vantagem de mais de 3,5 milhões de sufrágios. Em 2000, o presidente levou sem vencer. Se, desta vez, tendo ganhado, não ficasse com a Presidência, estaríamos diante de um caso único de justiça poética. As musas, porém, não estão com essa bola toda.

Voltando ao colégio eleitoral, depois do grande fiasco eleitoral de 2000 e da demora para a definição neste ano, se há um consenso em torno do sistema é o de que ele se tornou um instrumento inadequado para a escolha do presidente, em que pese o fato de ter funcionado sem tragédias maiores por 200 anos.

Se não recearmos ser indelicados com Hamilton, o principal autor de "O Federalista", a série de 85 comentários clássicos à Constituição norte-americana --o excerto acima faz parte do ensaio de número 68 --, podemos até afirmar que o modelo apresentava pelo menos uma falha grave desde a origem.

Pode parecer meio estranho, mas os "founding fathers" faziam parte daquela categoria de democratas que teme o povo. Sua principal meta ao determinar que a eleição do presidente se desse através de um colégio eleitoral era evitar que a população definisse diretamente seu líder federal. Hamilton fala com pavor da possibilidade de "tumulto e desordem" numa eleição direta e proclama em alto e bom som que o sistema norte-americano foi desenhado para evitar dar força aos demagogos, que ele descreve como "talentos para a baixa intriga e as pequenas artes da popularidade".

Hamilton e seus colegas imaginavam diminuir o risco de manipulação da opinião pública se a população elegesse não o presidente e o vice, mas apenas o "corpo intermediário de eleitores" que os escolheriam. E isso em 13 processos separados em cada uma das colônias que originalmente se associaram para formar os EUA.

Por via das dúvidas, também estabeleceram que apenas proprietários de terras teriam direito de votar e tentaram por todas as maneiras barrar o surgimento de partidos políticos. Essas duas medidas não tiveram vida longa. Já em 1800, todos os homens livres tinham direito de votar e facções políticas estavam formadas.

Para contornar um outro perigo --o de corrupção e fisiologismo-- os federalistas fizeram com que a decisão sobre o primeiro mandatário não coubesse ao corpo permanente de legisladores (Câmara e Senado), como alguns constituintes haviam proposto, mas a um grupo escolhido especialmente para esse fim e que se dissolveria depois de concluída a tarefa. Para garantir, ainda proibiram que os "grandes eleitores" tivessem cargos no Legislativo ou na administração.

Não eram preocupações insensatas. Seria uma temeridade deixar nas mãos do Congresso a decisão sobre a reeleição ou não do presidente. Como nós brasileiros tivemos a ocasião de constatar uma vez, a tendência é a de que o magistrado-chefe ofereça toda espécie de acepipes aos parlamentares. Fazer com que esse processo se repetisse periodicamente seria algo bem próximo à loucura.

Mais complicado é o caso da eleição indireta. Os "founding fathers" procuraram, em seu sistema, dar resposta à longa tradição de críticas à democracia que começa com Platão, para quem o povo não era o mais indicado para segurar as rédeas do poder. O cidadão comum, julgava o filósofo, inevitavelmente se deixa manipular por falsas promessas e pela boa retórica. O sofista, uma vez eleito, rapidamente se converte num tirano. Para Platão como para grande parte da filosofia política grega e latina, o regime ideal era a aristocracia, na qual os melhores ("hoì áristoi") assumem o comando e conduzem os demais. Desnecessário dizer que, para Platão, os melhores eram evidentemente os filósofos platônicos.

Retomando essa linha de crítica à demagogia e procurando inscrevê-la em seu sistema de correções através de pesos e contrapesos ("checks and balances"), os federalistas acabaram por criar o colégio eleitoral. Era uma tentativa de tornar a democracia um pouco mais aristocrática.

É claro que boa parte das objeções platônicas à democracia permanecem válidas. Podemos ir um pouco mais longe e afirmar que a ciência da demagogia, agora com valiosos aliados representados pelos meios de comunicação de massa e pelo marketing, evoluiu mais do que os sistemas de governo ao longo dos últimos 2.500 anos. Só que é um pouco difícil advogar pela democracia opondo-se a eleições.

Outro aspecto que contribuiu para a consolidação do sistema indireto foi o pacto federativo que vigia entre as 13 colônias originais, todas elas ciosas de sua independência. O modelo dava uma dose extra de poder às sócias minoritárias, contribuindo para contornar o receio de que fossem engolidas por suas homólogas mais populosas. Fixou-se, assim, que cada Estado teria, no colégio eleitoral, tantos votos quanto a soma de seus senadores e deputados. Nenhuma entidade teria, portanto, menos do que três votos (dois senadores e um deputado). As distorções então inauguradas perduram até hoje. No Wyoming, Estado em que votaram cerca de 240 mil eleitores, cada um dos três votos eleitorais representa 80 mil cidadãos. Na Califórnia, com seus quase 10 milhões de votantes, cada um dos 55 votos eleitorais responde por 181 mil cidadãos.

Voltando ao jovem Bush, o fato de ele ter vencido também na votação popular confirma a tese tão apregoada de que a população muitas vezes "erra" na escolha de seus líderes. Deveremos ter agora na Casa Branca um Bush ainda mais conservador do que o do primeiro mandato. No contexto de uma campanha acirrada, em que o presidente não escondeu suas posições mais à direita, ele arrebatou nas urnas o mandato para seguir suas inclinações naturais. Foi consagrado pelos Estados do Sul, das Rochosas e de parte do Meio-Oeste, a América profunda que carrega rifles em camionetes e acha que representa o bem em luta contra o mal. Os democratas venceram na Costa Oeste, no Nordeste e em parte do Meio-Oeste, a América sabichona da Ivy League e da vida sofisticada e cosmopolita de Nova York e Hollywood.

Se é lícito imaginar uma segunda gestão ainda mais à direita --quando se chega ao extremo, é difícil avançar--, devemos esperar investidas ainda mais duras em temas como pesquisa com células-tronco, aborto e casamento homossexual. No plano externo, o presidente poderia sentir-se tentado a seguir com sua política unilateral e atacar o Irã, por exemplo. Há razões, porém, para que não o faça. Até para os EUA é problemático sustentar três fronts a dezenas de milhares de quilômetros de casa. Uma outra guerra enfrentaria a oposição da ala fiscalmente responsável do Partido Republicano. Vale lembrar que Bush, possuidor de um toque de Midas às avessas, assumiu o poder com um superávit de quase 3% do PIB que conseguiu transformar em déficit da mesma magnitude.

Os federalistas até tiveram a intuição correta. Perceberam os riscos da democracia e tentaram erguer barreiras contra esses perigos. Só que, além de o colégio eleitoral não ter quase que desde a origem funcionado como eles planejaram, a empreitada equivale a perseguir a quadratura do círculo. Se aceitamos a democracia --e estou convicto de que devemos acatá-la como o menos pior dos sistemas políticos--, precisamos nos conformar com seu corolário maior, que é o de que cabe à população escolher soberanamente suas lideranças, ainda que freqüentemente se engane ao fazê-lo. A introdução de um árbitro externo capaz de definir o que é "enganar-se" mina a idéia mesma de democracia.

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

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