Pensata

Hélio Schwartsman

06/06/2002

Marx, Hegel e a Copa do Mundo

Em tempos de Copa do Mundo, acho que é apropriado perguntar se o futebol é mesmo o ópio do povo?

Antes que me tomem por lunático, convém lembrar os mais jovens de que essa discussão já não foi tão absurda como parece hoje. Na Copa de 70, por exemplo, não foram poucos os intelectuais de esquerda que ficaram divididos, temendo que torcer para o Brasil significasse, ao mesmo tempo, trair a revolução socialista e emprestar apoio ao regime militar.

E, talvez, os vínculos entre futebol e política nem sejam tão anacrônicos. Li no Painel da Folha que a equipe de marketing de José Serra trabalha com duas "linhas" de propaganda. Se o Brasil for bem na competição, o candidato dirá que o país está melhorando e vai melhorar ainda mais. Na hipótese contrária, o discurso muda para dizer que já é hora de corrigir os erros do passado.

Não creio que o governo tenha a cara-de-pau de sugerir, caso o Brasil vença a competição, que a conquista do penta é uma "obra" da atual administração. Acho que só o Maluf chegaria a tal extremo. Mas os marqueteiros de Serra parecem considerar importante o efeito que o desempenho da equipe brasileira, do escrete canarinho, terá sobre o humor da população. É um raciocínio que não acompanho inteiramente, mas que não desprezaria.

A expressão "ópio do povo" foi cunhada por Karl Marx (1818-1883), não para qualificar o futebol, mas a religião. Como, no Brasil, o amor a Deus e a devoção ao time do coração caminham bastante perto um do outro segundo o ditado, são o futebol e a religião que não se discutem, não foi difícil adaptar o chiste marxista para o esporte bretão.

Numa leitura finalista, tanto Deus quanto Zagallo tinham por missão manter o povo ocupado, rezando e torcendo, respectivamente, e, assim, retardar a chegada da inexorável revolução.

É o próprio Marx quem coloca a idéia em termos mais poéticos (ele era um excelente escritor, quando queria): "O sofrimento religioso é, a um único e mesmo tempo, a expressão do sofrimento real e um protesto contra o sofrimento real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração e a alma de um estado sem alma. Ela é o ópio do povo". Esse célebre trecho está em "Uma Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel" (1844).

Para entender um pouco melhor a colocação do autor de "O Capital", precisamos recuar um pouco na filosofia, mais especificamente até Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), de quem Marx tira boa parte de seus fundamentos teóricos.

O primeiro deles é a dialética, um método que, segundo Hegel, explica o progresso da história e das idéias. Numa simplificação grosseira, estamos diante de um movimento dialético quando encontramos uma idéia (tese), confrontamo-la com a sua negação (antítese), e obtemos uma terceira idéia (síntese), que mantém elementos das duas anteriores, mas é essencialmente diferente de ambas.

Hegel conserva de Kant a noção de que a forma como percebemos o mundo através de nossas mentes passa ela mesma a fazer parte do mundo, a influir sobre a realidade por nós percebida. Mas Hegel vai bem além. Se, para Kant, as categorias com que nossa razão opera são fixas, para Hegel elas são mutáveis e, por vezes, contraditórias. São resultados de processos dialéticos.

As implicações não são nem um pouco triviais. Para Hegel, não importa tanto como cada indivíduo pensa o mundo; muito mais significativa é a forma como todos o pensam. Existe uma espécie de consciência humana comum que é determinada pelo choque dialético entre idéias contraditórias e suas sucessivas superações (sínteses) ao longo do tempo.

No final das contas, a própria história será, para Hegel, uma experiência universal em que um espírito absoluto tenta entender a si mesmo. Quando ele conseguir fazê-lo, teremos a liberdade absoluta, e a própria história chegará ao fim. (É aqui que entraria Francis Fukuyama com sua teoria de que, com o capitalismo, a história acabou, mas não vou perder meu tempo nem o do leitor com essa bobagem).

Bem, voltando a Hegel, enquanto a história não chega a um acordo com o espírito absoluto para entender a realidade, as pessoas têm de se conformar em sofrer. É que suas idéias ficam fragmentadas, desligadas do todo, da realidade ideal do espírito absoluto. Em uma palavra, estão alienadas. As pessoas vivem alienadas e, por isso, sofrem.

Um dos exemplos usados por Hegel para explicar a alienação é justamente a idéia de que há um Deus incognoscível separado da humanidade. Essa idéia opera de modo a fazer com que as pessoas se sintam desligadas do todo, da realidade. É a ideologia.

É com base nesse arcabouço conceitual hegeliano que Marx poderá afirmar o caráter alienante da religião. Mas não precisamos temer. A dialética marxista também nos garante que é inexorável o fim do capitalismo e a chegada de uma sociedade sem classes, onde a religião, bem como outras manifestações ideológicas equivocadas, não teria lugar.

Pelo menos em alguns aspectos o futebol não se diferencia tanto da religião. O sofrimento futebolístico, que a maioria de nós experimentou logo depois do gol da Turquia, na manhã de segunda-feira, é, como o religioso, "a expressão do sofrimento real e um protesto contra o sofrimento real".

De fato, nós sofremos quando o nosso time perde, mas não deixamos de torcer por ele quando é derrotado; ao contrário, tendemos a transformar nossa dor numa manifestação, não contra o time, mas contra os que o conduzem. Xingar o cartola, imprecar contra o Felipão ou pedir Romário na seleção são atitudes que satisfazem esse campo mais negativo da dialética futebolística.

Seguindo com Marx, diríamos que o futebol "é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração e a alma de um estado sem alma. É o ópio do povo".

Até aqui, as conclusões do autor de "Manifesto Comunista" não me incomodam. O que me preocupa é o passo seguinte. No marxismo, a religião como "felicidade ilusória" do povo precisa ser eliminada para dar lugar à "felicidade real", que viria com o comunismo. Se o mesmo se aplica ao futebol, isso significaria acabar com o glorioso Sport Club Corinthians Paulista, de tantas e tão maiúsculas vitórias, o que é evidentemente absurdo.

Até admito que o futebol atue, sob determinadas circunstâncias, como "ópio do povo". Só que o corolário do pensamento marxista no que diz respeito a esse esporte é tão inaceitável a eliminação do Corinthians, que temos de colocar toda a teoria sob suspeição.

Falando sério agora, essa volta extemporânea ao tema "o futebol é o ópio do povo" serve para nos lembrar das limitações de que padecem os grandes sistemas filosóficos, como o de Marx ou Hegel, que acabam reduzindo a complexidade do mundo a uns poucos esquemas. Apesar de engenhosos, eles permanecem problematicamente reducionistas. Nossa "revisita" também serve para nos lembrar de que viver a vida talvez requeira um bocadinho de ópio de vez em quando.

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

FolhaShop

Digite produto
ou marca