Pensata

Hélio Schwartsman

07/11/2002

O nazista e o pedófilo

Sujeira pouca é bobagem. Como já defendi um nazista, não fico constrangido em amparar também um pedófilo. Calma! Eu me explico. Não estou advogando pela eliminação dos judeus nem louvando o estupro de criancinhas, mas apenas afirmando que as pessoas têm o direito de expor suas idéias, mesmo que elas tenham caráter racista, e de descrever suas fantasias, ainda que envolvam atos libidinosos com menores de idade.

Acredito que o Estado só deve interferir se o propalador das teses nazistas fizer algo para implementá-las ou se o candidato a pedófilo tentar pôr em prática sua parafilia. Ainda que não existam liberdades absolutas, a liberdade de expressão precisa ser forte, ou deixa de fazer sentido.

Trago essa reflexões a propósito de um caso recente ocorrido na França, onde entidades de proteção à criança tomaram medidas judiciais contra o romance "Rose Bonbon", de Nicolas Jones-Gorlin, no qual um narrador pedófilo descreve em detalhes suas aventuras sexuais com garotinhas. O episódio desencadeou na França uma ampla discussão sobre a censura. Quem quiser mais detalhes pode ler no site Trópico o texto de meu amigo Alcino Leite Neto seguido de entrevista com Jones-Gorlin.

Mas deixemos a pedofilia com os franceses e voltemos à questão da liberdade de expressão forte. Se formos sustentar que autores devem limitar-se a escrever coisas que as pessoas querem ouvir, que não despertem polêmicas nem choquem os mais sensíveis, então nem haveria necessidade de estabelecer a liberdade de expressão. Esse instituto foi concebido exatamente para permitir que eu, "Monsieur" Jones-Gorlin ou qualquer outro possa publicar coisas que não serão aceitas por alguns segmentos sociais. No limite, a liberdade de expressão existe para que tenhamos o direito de falar, escrever, encenar, filmar ou enviar por sinais de fumaça ou telepatia coisas que despertem a sincera ira de virtualmente toda a sociedade.

Democracia, como todos sabemos, não é apenas a expressão da vontade da maioria, mas também a defesa intransigente de direitos e garantias fundamentais. Assim, mesmo que 99,9% da população de um dado país fosse favorável ao estabelecimento de algum tipo de censura, este suposto Estado, para permanecer plenamente democrático, teria de colocar-se contra a maioria e permanecer como zeloso guardião da liberdade de expressão de alguns poucos e hipotéticos cidadãos.

É claro que eu estou raciocinando em termos teóricos. Na prática, vários países que consideramos democráticos colocam empecilhos à liberdade de expressão. Na Alemanha, por razões fáceis de adivinhar, é proibido defender posições nazistas. O Reino Unido tem uma lei de censura bastante severa. Até na França, pátria da "Révolution", existem mecanismos legais que poderiam proibir a venda de livros tidos como pornográficos a menores de idade. (Felizmente, o governo conservador francês desistiu de censurar "Rose Bonbon").

O Brasil, evidentemente, não é uma exceção. A Constituição defende a liberdade de expressão de forma vigorosa em pelo menos dois artigos: "É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença" (art. 5º, IX) e "A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição" (art. 220). O parágrafo 2º deste artigo vai além: "É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística".

Na prática, porém, a própria Carta autoriza uma série de limitações à liberdade de expressão. É proibido, por exemplo, fazer propaganda de remédios controlados para o público não-especializado. Os reclames de cigarros também foram há pouco tão limitados que estão virtualmente proibidos. (Não sou a favor desse tipo de publicidade e desconfio um pouco do conceito de "liberdade de expressão comercial", mas, para sermos consequentes e manter a honestidade intelectual, precisamos considerar essas restrições como uma diminuição da liberdade de expressão).

Se olharmos mais atentamente, os constrangimentos pululam. Já escrevi neste espaço vários artigos em favor da descriminação das drogas do Brasil. Se, por acaso, um delegado, promotor ou juiz de menores que perca seu tempo lendo minhas coisas tivesse julgado que eu incorri em apologia de entorpecentes, poderia não só limitar meus meios de expressão como ainda me encaminhar para o xadrez. Uma liberdade de expressão robusta exigiria, por exemplo, que os conceitos de apologia e incitação ao crime fossem banidos do Código Penal.

Trouxe ao leitor essas pequenas antinomias concernentes às liberdades com o intuito de demonstrar que não existem direitos absolutos. Para sustentar a plena liberdade de expressão comercial, por exemplo, o Estado deveria permitir que laboratórios multinacionais anunciassem em horário nobre na TV reclames sugerindo que é bom usar morfina, que ela torna as mulheres mais bonitas, e os homens, mais másculos. Até acredito que a morfina e os opióides em geral (exceto, talvez, pelo fentanil russo) tenham esse poder, mas temos de convir que esse tipo de publicidade poderia criar um belo problema de saúde pública. E a saúde, convém lembrar, é outro direito definido na Constituição (art. 196).

Receio ter-me perdido um pouco ao escrever esta coluna, pois cheguei muito perto de defender um argumento contrário à minha tese. O fato é que, mesmo reconhecendo que é real e complexo o problema do conflito de direitos, acho que a liberdade de expressão deve ser postulada numa formulação forte, ainda que não absoluta.

Em termos teóricos, isso é mais uma dificuldade do que uma solução. Não creio que seja possível definir tecnicamente "a priori" quais são os limites aceitáveis. Temo que seja necessário produzir decisões caso a caso, o que significa tirar o problema da alçada exclusiva do legislador para compartilhá-lo com o juiz.

Admitir essa ambiguidade no estatuto dos direitos não isenta a nós, democratas e amantes da liberdade, de pelejar ao máximo pela mais ampla liberdade de expressão, mesmo que isso signifique defender coisas que nos repugnem pessoalmente, como o direito do nazista de propagar idéias racistas ou o do pedófilo de imaginar cenas dissolutas com crianças. A alternativa a essa posição pode significar a morte da literatura e do livre-pensar.

PS - Vou levar os meninos para a praia, de modo que não escrevo na semana que vem. Retomo a coluna no dia 21 de novembro.

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

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