Pensata

Hélio Schwartsman

12/04/2001

O "design" ontológico

Antes de mais nada, peço perdão ao leitor por voltar ao assunto Darwin X criacionismo. Sempre procurei pautar esta coluna pela variedade e pela ligeireza, mas acredito que o tema é importante e vale o risco de eu tornar-me repetitivo.

Vários leitores que me mandaram e-mails por conta dos textos "Fé é fé e ciência é ciência", de 29/03/2001, e "O vento será tua herança", de 22/03/2001, utilizaram um mesmo argumento. Sugeriram que a teoria evolucionista era insuficiente para explicar a sofisticação e a complexidade do ser humano. Para eles, apenas o curso da evolução, que opera com elementos aleatórios, é pouco para dar conta de tamanha "perfeição".

Confesso que a coincidência de argumentação, de início, não me chamou a atenção. Mas, navegando pelo "The New York Times" neste fim de semana, topei com uma interessante matéria intitulada "Evolucionistas combatem nova teoria da criação", que expõe a contenda entre evolucionistas e os novos criacionistas, os quais preferem ser chamados de partidários da teoria do "design" inteligente.

Como meus missivistas, eles sustentam que a complexidade do homem, de outros animais e das plantas é tanta que a vida tem de ser obra de um criador (fica melhor no inglês "designer") inteligente.

Esses neocriacionistas já não propugnam pela literalidade do Gênesis, mas estão dispostos a enxergar Deus nas menores frestas do darwinismo. Aceitam que a Terra tem 4,6 bilhões de anos e reconhecem, até certo ponto, a evolução, mas não admitem que ela tenha, por si só, possibilitado o advento de animais e plantas ditos superiores. Em princípio, utilizam-se, como os darwinistas, de argumentos científicos. Esses neocriacionistas, como seus adversários, têm PhDs nas melhores universidades norte-americanas.

Um dos mais proeminentes defensores da tese do "design" inteligente é William Dembski, com doutorado em matemática pela Universidade de Chicago. Para ele, uma série de números pode parecer perfeitamente aleatória, mas possuir, na verdade, um padrão apenas distinguível com o auxílio de complexos testes matemáticos. Trata-se de um problema recorrente na criptografia e nas ciências da computação.

Dembski desenvolveu então o que chamou de "filtro explanatório" matemático, que, segundo ele, é capaz de diferenciar o que é aleatório daquilo que é resultado de complexidade concebida por um agente inteligente. Dembski aplicou seu filtro a estruturas bioquímicas de células e concluiu que Deus existe.

Como bem definiu Leonard Krishtalka, biólogo e diretor do Museu de História Natural da Universidade do Kansas, "A teoria do 'design' inteligente nada mais é do que criacionismo vestido num 'smoking' barato".

O "filtro explanatório" de Dembski não explana coisa nenhuma. Nenhum evolucionista sério afirma que as teorias darwinistas estão isentas de problemas. Na verdade, a própria idéia de ciência pode e deve ser questionada pela epistemologia. É óbvio que existem dificuldades ainda por explicar na biologia evolucionista bem como em todas as disciplinas. Mas o grau de complexidade dos seres vivos certamente não é uma delas. O fato de um sistema ser complicado (e é apenas isso que Dembski "provou" com seu filtro) não significa, em absoluto, que não se possa ter chegado a ele de modo aleatório.

Esse neocriacionismo torna-se mais diabólico porque pretende possuir o estatuto de ciência: usa linguagem científica, tem defensores nos meios científicos, mas nem por isso é ciência. Não dá para identificar o que parece ser uma dificuldade do evolucionismo e a partir dela inferir um Arquiteto do Universo. Ou melhor é obviamente possível fazê-lo, mas esse não é um procedimento científico.

Na verdade, ele lembra um pouco um dos melhores momentos da boa e velha metafísica, a prova ontológica da existência de Deus, concebida por santo Anselmo (1033?-1109). "Grossíssimo modo", ela diz que a existência da idéia de perfeição é ela mesma uma prova da existência deste ente perfeito, Deus. Numa versão menos abstrata, a argumentação fica mais ou menos assim: eu tenho várias idéias, destacando-se entre elas a de um ser perfeito; ora, como há necessariamente mais razão na causa do que no efeito, a idéia de perfeição não pode proceder senão da própria perfeição, de Deus em pessoa. A perfeição só é verdadeiramente perfeita se contar entre seus atributos a existência.

Só que a prova ontológica vai bem na filosofia, mas não na ciência. Na verdade, seria até possível escrever uma história da filosofia medieval e moderna apenas mostrando como cada pensador tratou o argumento ontológico, tamanha foi a sua importância até Kant. Mas, desde que as chamadas ciências naturais se consolidaram como disciplinas separadas da filosofia natural o que só se deu há pouco mais de cem anos, não podemos mais ficar utilizando teses metafísicas. Ou melhor, poder, podemos, mas daí estamos fazendo filosofia e não ciência.

Eu pessoalmente até acho a metafísica bem mais saborosa do que a ciência, mas não me parece correto que uma fique tentando tomar o lugar da outra. Da mesma forma que não podemos extrair uma bioquímica da alma, não devemos trazer Deus para explicar cada dificuldade que surja no caminho da biologia ou da física.

E, infelizmente, é isso que faz o neocriacionismo. Dembski e seus associados propagam suas idéias através do Discovery Institute, de Seattle. Essa organização, que tem orçamento anual de US$ 1,1 milhão, é majoritariamente financiada por fundações cristãs conservadoras. Neste caso, o "cui prodest" (a quem interessa) é eloquente.

Desconfio que o plano geral seja fazer com o que os meios acadêmicos aceitem o neocriacionismo como ciência, hipótese em que poderia ser ensinado nas escolas. Hoje, por força de decisão da Suprema Corte (Epperson vs. Arkansas, de 1968), a escola pública não pode ensinar religião.

O presidente George W. Bush, obviamente, é a favor do ensino do criacionismo em pé de igualdade com o darwinismo. Na verdade, segundo o instituto Gallup, 90% dos norte-americanos acreditam que Deus desempenhou algum papel na criação (45% acham que tudo se passou exatamente como narrado no Gênesis, de acordo com outras pesquisas). Entre os membros da Academia Nacional de Ciências dos EUA, são só 10% os que crêem em Deus.

Considerar que só se pode acreditar em Deus se a ciência provar que Ele existe ou afirmar peremptoriamente que tudo no mundo, inclusive a queda de cada gota de chuva, é a expressão atual de uma vontade divina também atual constitui a prova de que o intelecto humano não é assim tão perfeito. Ele apresenta problemas, está cheio de "bugs". Difícil acreditar que uma mente capaz de tais destemperos seja a expressão de um "design" inteligente.

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

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