Pensata

Hélio Schwartsman

19/05/2010

Ficha Limpa, entre o inócuo e o ilógico

A pedidos, comento hoje a aprovação do projeto de lei Ficha Limpa, que amplia as restrições à candidatura de políticos que têm problemas com a Justiça.

Agrada-me a ideia de que uma proposta concebida e desenvolvida pela chamada sociedade civil tenha finalmente chegado ao Legislativo através da figura do Projeto de Lei de Iniciativa Popular (PLP). Não é uma empreitada fácil. Para valer, PLPs precisam ser encampados por no mínimo 1% do eleitorado nacional, distribuído por pelo menos cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles --normalmente, é muito mais simples encontrar entre os 594 parlamentares um que subscreva o teor do projeto e o apresente como se fosse seu.

Seja como for, os organizadores do movimento Ficha Limpa optaram pelo caminho mais difícil, mas também mais fortemente simbólico do PLP, e conseguiram a façanha de, em pouco mais de um ano, reunir 1,6 milhão de assinaturas. Mobilizando um bocadinho a opinião pública, fizeram também com que os parlamentares, por instinto contrários a tudo o que possa embaraçar-lhes os movimentos, votassem a favor da proposta pelos significativos placares de 76 a 0 (no Senado) e 388 a 1 (na Câmara; o deputado solitário ao que tudo indica se confundiu na hora de apertar os botões), ainda que modificando-a substancialmente.

Receio, porém, que se encerrem por aqui meus elogios ao Ficha Limpa. Entrando no mérito do projeto, ele fica entre o inócuo e o ilógico.

Levantamento feito pela Folha com os 70 deputados federais paulistas, os 3 senadores pelo Estado mais os 37 líderes partidários no Congresso revelou que, desses 110 apenas um, Paulo Maluf, estaria impedido de concorrer se o projeto já estivesse em vigor. Maluf é o único que já foi condenado por crime considerado grave para políticos (delitos como racismo, homicídio, estupro, tráfico de drogas, desvio de verbas pública) em órgão colegiado. Na versão original da proposta, qualquer condenação bastava para tornar o sujeito inelegível. Os deputados, contudo, alteraram o projeto para que a proibição só ocorresse após sentença proferida por tribunal de segunda instância (ou superior).

Não se pode afirmar que seja um despropósito completo. Por este Brasil afora, não é muito difícil imaginar um poderoso cacique local aliando-se a um juiz, um promotor e um delegado (basta um de cada) para providenciar o flagrante e a condenação do político rival, banindo-o assim da vida pública por oito anos. Digamos que, com a exigência do órgão colegiado, conluios desse tipo ficariam mais custosos.

Creio que exista também um problema de lógica por trás do projeto. Pelo menos de acordo com o ideal racionalista clássico, numa democracia representativa é função do eleitor --e de mais ninguém-- selecionar o candidato no qual depositará sua confiança. É claro que o mundo não funciona exatamente como preconizavam os filósofos iluministas. Mas, mesmo assim, tendo a desconfiar de soluções que procurem "corrigir" o cidadão. E o pressuposto do Ficha Limpa, vamos admiti-lo, é o de que o eleitor é incapaz até mesmo de distinguir bandidos de pessoas honestas. Cuidado, não estou afirmando que ele saiba. Se soubesse, não teríamos os mandatários que temos. Parece-me, porém, complicado tentar suprir com leis e regulamentos o que falta em informação/educação.

De resto, o resultado é um pouco cartorialista. Digamos que o controle exercido pelo Ficha Limpa só ocorre "a posteriori" e de forma imperfeita. Não possuir condenações não significa em absoluto que o sujeito não seja um bandido. Nosso sistema judicial é compatível com inúmeros adjetivos, mas não com termos como "eficiente" ou "certeiro", em especial quando lida com acusados poderosos. Para dar uma ideia, de acordo com o site da Transparência Brasil (www.transparencia.org.br), dos 110 parlamentares que fizeram parte do levantamento da Folha, 36 (Maluf excluído) já haviam sido condenados em primeira instância ou eram réus em processos ou haviam sido indiciados por crimes que, se confirmados por tribunais, os tornariam inelegíveis.

Como já propus numa coluna recente, acho que a chave para o problema é fazer com que o partido assuma responsabilidade pelas atitudes de seus filiados eleitos: se o político deslizar, tanto ele quanto a sigla são punidos. Em relação ao sujeito, a pena já está estabelecida: cassação do mandato e inelegibilidade por oito anos. É preciso, então, discutir a sanção que cabe ao partido. No caso dos cargos majoritários, acho que poderíamos pensar em proibir a agremiação de apresentar postulantes ao mesmo posto pelos mesmos oito anos. Se um senador pelo partido P se revelou um crápula e foi merecidamente cassado ou condenado pela Justiça em crime relacionado à função, aí P ficaria por oito anos impedido de lançar qualquer candidato a senador por aquele Estado. Seria preciso bolar algo parecido para os cargos proporcionais (deputados e vereadores).

Percebam que há uma diferença grande entre esse sistema e o Ficha Limpa. Enquanto o projeto recém-aprovado apenas pune quem já cometeu o delito e foi condenado em segunda instância, o mecanismo que proponho levaria (pelo menos em teoria) as legendas a investigar um pouco melhor os postulantes a cargos públicos e a barrar as pessoas que cheiram a encrenca. De alguma forma, desjudicializaríamos (sei que a palavra é horrível) o processo, o que me parece positivo.

Encerro, porém, com uma mensagem de ceticismo. Apesar de estar eu próprio propondo uma alteração no sistema, tendo a ver com desconfiança a tal da reforma política, que costuma ser vendida como a redenção de todos os problemas nacionais. Exceto pelo fim do voto obrigatório e do teto de representantes na Câmara, que me parecem mudanças necessárias, receio que discussões como financiamento público de campanha e voto distrital misto apenas nos levariam a trocar dificuldades conhecidas por atribulações ignotas. Pode até ser divertido, mas não é solução. Acredito até que não existam soluções. Como já tive a oportunidade de escrever neste espaço, pesquisas no campo da neurociência revelam um eleitor cada vez mais passional e pouco dado a reflexões políticas e até mesmo racionais. Nesse cenário, a democracia é boa não porque traduza num cálculo desapaixonado a vontade geral das pessoas, mas simplesmente porque é um sistema que consegue com certa eficiência promover algum tipo de alternância no poder e assim pacificar a sociedade.

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

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