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  24 de outubro
  Como uma montadora pode virar sinônimo de causa-mortis
  Morre-se de muita coisa. De câncer, de Aids, de infarto, de tiro, de velhice, do diabo. Pois descobriu-se uma nova causa-mortis: pelo menos duas pessoas morreram de GM. Repetindo: morreram de General Motors as coitadas.

Cautela, caldo de galinha e cinto de segurança, sabemos todos, não fazem mal a ninguém. Desde que o cinto não seja do Corsa ou do Tigra, automóveis da GM.

Graças a um erro de fabricação, os cintos de (in)segurança dos bancos dianteiros desses dois carros converteram-se em atalho para a morte. Submetidos a fortes impactos, podem se romper.

A GM soube em abril do ano passado que seus carros eram arapucas letais. Fez a descoberta da forma mais cruel: graças à morte de um de seus clientes. Às voltas com um acidente, o sujeito foi abandonado à própria sorte pelo cinto de (in)segurança de um Corsa, que se soltou do trilho sob o banco, onde fora fixado.

Depois de se dar conta de que circulavam pelas ruas do país outros 1,3 milhão de carros com o mesmo defeito, a GM portou-se com imprudência comparável à de um motorista bêbado ao volante.

Em vez de pôr a boca no trombone, a empresa calou-se, arriscando o pescoço de sua clientela. Na surdina, a GM desenvolveu uma nova peça para fixar os cintos malfeitos. Sanou o problema na linha de carros 2000.

Mas só na semana passada, com pelo menos um ano e meio de atraso, a direção da multinacional veio a público para tratar dos carros defeituosos que havia despejado antes na praça. Era tarde demais, porém, para pelo menos mais um brasileiro, morto em junho passado, a bordo de outro Corsa.

Além das duas mortes, contabilizaram-se 25 registros de acidentes graves com o Corsa antes que a choldra merecesse da GM a gentileza de um aviso. Sem mencionar as trombadas e eventuais óbitos que, por desconhecimento, não tiveram seus registros associados ao problema do cinto de (in)segurança.

No sítio que mantém na Internet a empresa abre assim os festejos de mais um aniversário de sua instalação no Brasil: “Nesta página, você vai encontrar um pouco da história da General Motors do Brasil (GMB), construída nestes 75 anos com muita dedicação ao trabalho e o máximo respeito ao consumidor (...)” Na linha seguinte, os clientes são chamados de “parceiros fiéis” da GM.

Pena que a “fidelidade”, no caso dos usuários de Corsa e Tigra, tenha se revelado uma pista de mão única. O “respeito” que a GM devota aos seus consumidores pode ser medido pela mensagem que se abre para o internauta no instante em que ele penetra o sítio da empresa.

O maior recall de toda a história da indústria mereceu o destaque de 11 escassas linhas. Trata-se de um tributo à falta de transparência.

Desde o triste episódio dos anticoncepcionais de farinha, não se tinha notícia de semelhante vexame praticado por uma gigante da iniciativa privada. De certo modo, o caso atual é ainda mais grave do que o anterior.

As pílulas de farinha davam origem à vida, ainda que indesejável. O cinto fajuto conduz à morte. As mães fertilizadas pela inépcia da Shering, de resto, estão por aí, desfrutando das indenizações a que a empresa foi condenada.

Quanto aos cadáveres produzidos pela leviandade da GM, é improvável que desçam à Terra para atender ao recall da multinacional. A morte, como se sabe, é para sempre.

Riobaldo, personagem de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, dizia que algum “norteado” tem de existir no mundo. “Se não, a vida ficava sendo sempre o confuso dessa doideira que é.”

Olha-se para um lado, olha-se para o outro e não se encontra o “norteado” que guiou a decisão da GM de guardar para si o segredo do cinto bichado. As explicações da empresa deixaram no ar a impressão de que a inteligência dos consumidores foi insultada.

OK, era preciso criar uma nova peça para a fixação do cinto. Mas alguém poderia ser escalado pela empresa para responder às seguintes perguntas:

1) Por que não se deu ciência do defeito aos usuários do Corsa e do Tigra assim que o problema foi detectado?

2) Por que a equipe técnica da GM agiu com a ligeireza de uma tartaruga manca, consumindo 11 meses para desenvolver a nova peça?

3) Por que tanta falta de transparência? Por que manter em sigilo os nomes das vítimas fatais, cujas famílias a GM diz ter indenizado?

O blablablá produzido pela GM até o momento só injetou complicação em algo que é simples. Mais simples do que se imagina. Um bebê compreenderia o que se passa.

Veja como é simples: neste mundo em que todo o poder é drenado da esfera estatal para o campo da iniciativa privada, a empresa erra, ela mesmo investiga, descobre que seu equívoco mata e se absolve. Simples assim. Se você ainda não entendeu, chame um bebê, depressa.


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