Pensata

Luiz Caversan

23/08/2003

Estrangeiro

Para puro deleite literário, reli dia desses "O Estrangeiro" (1942), o maravilhoso clássico de Albert Camus. Quem não leu, leia: traz a história de um homem, absolutamente inadequado a seu mundo, que acaba assassinando um outro homem, mas que é julgado --ou isso é o que mais pesa em seu julgamento e condenação à guilhotina-- pelo fato de não ter demonstrado consternação diante da morte da mãe idosa, ocorrida pouco antes.

Matar é menos ruim do que não chorar a perda da mãe...

Poucas obras da literatura universal conseguem isso, ser tão universais quanto o livro do franco-argelino Camus (1913-1960), que ganhou o Prêmio Nobel de 1957.

É pleno de verdades, algumas paranóias e muito existencialismo, típico do autor. Mas inspira e dá o que pensar, sobretudo se fizermos conexões com o mundo de hoje de muita coisa que está ali.

A parte que trata do julgamento de Meursault, o personagem que narra suas vicissitudes na primeira pessoa, não por acaso é exemplar.

De um lado está o promotor tentando provar (ele consegue...) que um homem que não chora a perda da mãe é culpado de tudo. Do assassinato em que ele se envolveu e até mesmo de um parricídio que seria julgado no dia seguinte, envolvendo outras pessoas!

Do outro lado, um advogado atônito, que se desespera diante da quase desfaçatez de seu cliente frente ao mundo --o causídico acaba por advogar culpa com atenuantes para seu cliente, mas perde.

Em determinado momento, em meio à batalha verbal e às inquisições do juiz, Meursault divaga: "Mesmo estando no lugar do réu, é sempre interessante ouvir falar de nós mesmos".

Talvez seja este o momento de maior identificação daquele homem, estrangeiro em seu próprio planeta, com o restante da raça humana.

Afinal, ali ele consegue ser socialmente alguém, ainda que réu, por intermédio "do outro", do que o outro diz dele, do que pensam a seu respeito aquelas pessoas, mesmo que sejam seus algozes.

Aparentemente não tem absolutamente nada a ver uma coisa com a outra, mas lembrei-me da televisão de nossos dias --acho que isso seria até um insulto a Camus, talvez.

Fiquei pensando no quanto as pessoas estão dispostas a se expor, desde que consigam que delas se fale qualquer coisa, que se exiba, que se exponha, por mais ridículo, atentatório ou desumano que seja, seus improváveis "dotes".

Nos shows-baixaria das tardes, nas pegadinhas pegajosas, nas exposições de glúteos dos pops-shows-leões da TV aberta, estão todos ali pedindo desesperadamente para serem expostos, ainda que seu destino, depois de toda a zorra, seja a guilhotina moral. Nada mal para aquelas vidinhas medíocres...

O estrangeiro de Camus, o oposto desses personagens, com quem tem em comum apenas o fato de momentaneamente apreciar a exposição pública, revela toda a transcendência possível, permissível ao ser humano diante de sua sina existencial, do vazio desprovido de sentido em que se dá uma trajetória no mínimo pessimista, no máximo brilhante do ponto de vista da observação aguda dos desvãos da mente humana.

Os personagens da TV, bem, pobres diabos, destino mais nobre teve o guilhotinado de Camus.

Mas, como ele mesmo diz a dada altura, louvando o fato de ter conseguido melhorar sua audição enquanto ficava à espera do som dos passos de seus carrascos, nunca se é completamente infeliz...

Luiz Caversan é jornalista, produtor cultural e consultor na área de comunicação corporativa. Foi repórter especial, diretor da sucursal do Rio da Folha, editor dos cadernos Cotidiano, Ilustrada e Dinheiro, entre outros. Escreve aos sábados para a Folha Online.

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